Descolonização Reacionária

Hamas, Netanyahu, Putin e Trump subvertem o conceito de esquerda em exaltação racista de direitos de ‘grupos nativos’

[ por FÁBIO ZUKER * | Folha de SP | 7./jul/2024

  • Antropólogo e jornalista, com doutorado pela USP e pós-doutorado pela Universidade de Princeton. Autor de “Vida e Morte de uma Baleia-minke no Interior do Pará e Outras Histórias da Amazônia”

[RESUMO] As noções de descolonização e decolonialidade, forjadas no pensamento crítico latino-americano, vêm sendo apropriadas por movimentos autoritários cujos projetos nativistas, sustenta o autor, concebem uma relação essencializada da população com o território que ocupa, o que impulsiona o ódio contra grupos considerados invasores e medidas que podem resvalar em extermínio.

As primeiras décadas do século 21 têm sido marcadas por um fenômeno curioso e assustador. Novos movimentos autoritários encontraram nas ideias de descolonização e decolonialidade uma justificativa para seus projetos políticos.

São movimentos ultraconservadores de amplo apoio popular na Rússia, na França e nos Estados Unidos ancorados em uma ideia de nativismo. Essa apropriação também tem sido feita pelo sionismo messiânico judaico em Israel e pelos grupos jihadistas na Palestina, cada um almejando estabelecer um Estado nativo entre o mar Mediterrâneo e o rio Jordão.

Grafite crítico a Vladimir Putin em fachada de edifício destruído por bombardeio em Borodyanka, na Ucrânia – Francisco Proner – 17.abr.24/Folhapress

Originada no campo acadêmico por intelectuais latino-americanos de esquerda como Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Enrique Dussel, preocupados em criticar o traço multifacetado e contínuo do poder colonial, a ideia de decolonialidade encontrou terreno fértil na extrema direita. Trata-se de uma essencialização da relação de pertencimento entre um grupo étnico e um território que leva o nacionalismo anterior à formação dos Estados-nações ao campo da supremacia étnico-religiosa com os Estados já formados.

Esse movimento de apropriação de conceitos críticos elaborados pela esquerda, subvertendo o seu significado original, também definiu a extrema direita no século passado. Não é à toa que o Partido Nazista se chamava, precisamente, Partido Nacional-socialista dos Trabalhadores Alemães.

Como defende Hannah Arendt, os nazistas, enquanto erigiam um partido e um governo para transformar a estrutura do Estado alemão e torná-lo antibolchevique e antijudaico, propositadamente tornaram obsoletas denominações políticas ao incorporar a palavra socialismo no nome de seu partido.

Em um curto ensaio publicado recentemente, a historiadora das ideias políticas Miri Davidson apontou o que ela chama de “descolonização da extrema direita”. Para que não sobrem dúvidas: essa apropriação da ideia de decolonialidade vem a serviço de projetos políticos retrógrados, racistas e muito distantes do espírito crítico que moveu os intelectuais latino-americanos mencionados que forjaram o conceito.

Líderes de ultradireita e populistas na Europa

RÚSSIA

O caso de Vladimir Putin é significativo. A invasão da Ucrânia é defendida pelo presidente-czar e seus ideólogos como um movimento anticolonial e, simultaneamente, parte de um projeto imperialista.

O que permite a articulação dos dois conceitos contraditórios é o entendimento de que a ordem global existente é fruto de um imperialismo norte-americano que opera em termos culturais, econômicos e militares. Daí, segundo essa lógica, o imperialismo russo ser decolonial, se contrapondo ao imperialismo dominante, chamado de atlantismo pelo místico russo Alexander Dugin.

É impossível compreender a racionalidade política da Rússia contemporânea sem entender Dugin, considerado o mais influente filósofo político do país e responsável por moldar, no século 21, sua ideologia pós-soviética. Dugin tem grande inserção na elite russa e defende que o país não é nem ocidental nem oriental, mas uma civilização própria que luta para estabelecer um império eurasiano ancorado em uma mística cristã ortodoxa.

Assim, enquanto os EUA e seus aliados europeus trabalhariam pela extensão de um império centrado em uma ideia de um espaço vazio, neutro e homogeneamente concebido, a territorialidade russa e seu império estariam baseados em uma concepção concreta, em que um povo particular é inseparável do território que ocupa.

A batalha russa contra o imperialismo ocidental não seria, portanto, uma batalha política qualquer. Para Dugin, se trata de uma luta espiritual, uma batalha existencial pela alma russa, já que a globalização exportada pelos Estados Unidos seria uma forma de mascarar o lado “espiritual” do imperialismo, marcado pela imposição dos valores liberais norte-americanos em todo o globo.

Dessa forma, na sua visão, o surgimento de movimentos nativistas ao redor do mundo acontece como vulcões que entram em erupção um depois do outro, desfazendo a promessa de paz almejada pelo duplo projeto democracia liberal/economia de mercado. Para a Rússia, é fundamental minar o imperialismo norte-americano, fomentando movimentos populistas isolacionistas nos EUA —daí o apreço por Donald Trump— e a extrema direita europeia.

Ao lado do renascimento da Eurásia, Dugin prevê também uma ala islâmica, uma xiita, uma africana, uma chinesa e uma latino-americana, completando o quadro. Trata-se de um projeto geopolítico centrado na descolonização dos povos ao redor do globo e em uma ideia fascista da relação entre povos e territórios.

Putin visita Kim na Coreia do Norte e assina assina pacto de defesa mútua

O presidente russo, Vladimir Putin, é recebido pelo ditador norte-coreano, Kim Jong-un, em sua chegada ao aeroporto de Pyongyang, na Coreia do Norte

TEORIA DA GRANDE SUBSTITUIÇÃO

Longe de se restringir à Rússia, ideias similares têm sido disseminadas amplamente na França e nos EUA. O escritor francês Renaud Camus é o autor de “A Grande Substituição” (2012), livro em que defende a tese racista e islamofóbica de que a Europa está sendo invadida por árabes e africanos. Aqui, a ideia de descolonização da Europa se volta contra a suposta invasão que tiraria o caráter nativo do povo branco e cristão.

A teoria tem sido apropriada por movimentos supremacistas brancos na Europa, nos EUA, na Austrália e na Nova Zelândia e utilizada frequentemente para legitimar marchas neonazistas ou assassinatos em massa. Este foi o caso do terrorista australiano que, depois de postar um manifesto inspirado na teoria da grande substituição, transmitiu online o massacre em uma mesquita em Christchurch, na Nova Zelândia, em que assassinou 51 pessoas.

Nos EUA, a teoria da grande substituição deixou de ter uma circulação marginal e passou de grupos supremacistas brancos para o mainstream do Partido Republicano, a ponto de Trump estar propondo medidas de deportação em massa caso seja eleito em novembro. Na versão norte-americana, os judeus seriam os principais responsáveis por traficar latinos e outros povos para destruir o caráter branco e cristão do país.

O fato de os EUA terem se tornado, nas últimas décadas, um país mais diverso é utilizado por políticos ultraconservadores para amedrontar a população branca, afirmando que eles perderiam seus privilégios e que seus votos se tornariam menos valiosos. Para grupos extremistas dos EUA e de diversos países da Europa, descolonizar passou a ser sinônimo de projetos autoritários em defesa da população branca “nativa”.

Apoiadores de Trump invadem Congresso dos EUA

Manifestante invadem prédio do Congresso americano em Washington

Manifestante invadem prédio do Congresso americano em Washington WIN MCNAMEE/Win McNamee – 6.jan.2021/AFPMAIS 

ISRAEL E PALESTINA

Talvez em nenhum outro lugar a cooptação reacionária da ideia de descolonização tenha gerado tanta violência quanto no conflito Israel-Palestina. A extrema direita israelense e movimentos islâmicos teocráticos como Hamas e Jihad Islâmica têm travado uma brutal dança da morte na disputa a respeito de quem tem o direito de ser descolonizado.

Se há uma simetria no desejo de varrer o outro da terra com o propósito de extirpar aquele considerado invasor, há uma assimetria brutal no que diz respeito às capacidades militares e ao apoio internacional para de fato fazê-lo. Assim, de um lado, o genocídio perpetrado por Binyamin Netanyahu e seu governo é, em grande medida, guiado pelo delírio fundamentalista que vislumbra que a construção de uma Grande Israel precipitaria a vinda do Messias e o fim dos tempos.

Complementarmente, Yahya Sinwar, Ismail Haniya, Mohammed Deif e demais líderes do Hamas são corresponsáveis nesse genocídio, já que usam as mortes de palestinos alheios ao movimento para a efetivação de um projeto político teocrático. Para tanto, afirmam que a autodeterminação judaica sob um Estado nacional equivaleria a um projeto colonial a ser extirpado.

retorno de Netanyahu ao cargo de premiê ocorreu em 2022, apenas um ano e meio depois da sua saída. Acuado pelo Judiciário em acusações de suborno e corrupção, o político do partido tradicional de direita Likud avançou em sua virada para a extrema direita ancorando seu governo em siglas extremistas como os partidos Religioso Sionista e Poder Judaico.

Anos antes, Netanyahu já havia aprovado a controversa lei que estabelece que Israel é um Estado exclusivo aos judeus, entendida por muitos como uma norma que institui um regime de apartheid, já que cerca de 20% da população israelense é composta de árabes cristãos e muçulmanos.

Figuras outrora marginais da política israelense, como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir, que construíram suas carreiras políticas incentivando a violência de colonos israelenses contra palestinos na Cisjordânia e em Gaza, foram alçados a cargos centrais no governo Netanyahu. Smotrich é ministro das Finanças, e Ben-Givr comanda a pasta da Segurança Nacional. Ambos dedicam suas vidas à empreitada de “descolonizar” o território localizado entre o Mediterrâneo e o rio Jordão, defendendo a formação de um Estado com território ampliado em que judeus sejam considerados indígenas e árabes, invasores.

Guerra em Gaza eleva tensão na Cisjordânia

Combatente palestino caminha pelas ruas do campo de refugiados de Jenin em cortejo fúnebre de dois combatentes do Jihad Islâmico mortos na noite anterior

A arqueologia, nesse sentido, se tornou em Israel uma ciência a serviço não apenas do Estado, mas de uma visão radical e expansionista do país, baseada em uma espécie de destino manifesto, mobilizado para justificar décadas de ocupação ilegal da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. A situação é particularmente drástica em Jerusalém, onde estudos arqueológicos conduzidos por grupos de colonos em busca de vestígios da cidade do rei Davi são usados para expulsar bairros palestinos inteiros.

O Hamas também tem um projeto reacionário e teocrático de descolonização. Seus inimigos são tanto os judeus quanto as organizações palestinas seculares e de tendência socialista.

A criação de um Estado islâmico na Palestina, do rio ao mar, está apoiada na ideia racista de que os judeus não pertencem ao Oriente Médio, apesar de a maior parte dos judeus que vivem em Israel ter origem no Norte da África, na região do Levante (da qual a Palestina histórica faz parte) e na Península Arábica. Entre os anos 1940 e 1970, cerca de 800 mil judeus sofreram limpeza étnica em países árabes e muitos encontraram refúgio em uma Israel em plena formação.

Além disso, ninguém é nativo do território entre o rio e o mar, já que todos os impérios dos últimos 3.000 anos que dominaram a região forçaram pessoas a irem para um lado e para o outro, dos babilônios aos britânicos.

A perspectiva fundamentalista do Hamas, que ganha adeptos de esquerda ao redor do mundo, trabalha precisamente para apagar que a ideia de formação de um Estado judaico surgiu concomitantemente a outros nacionalismos, à medida que os impérios de Habsburgo, Otomano e Russo iam se esfacelando.

No caso do Império Otomano, a emergência de nacionalidades modernas, sejam as hegemônicas (turcas e árabes), sejam as minoritárias (entre as quais a judaica), buscaram estabelecer uma lógica de Estado-nação avessa à dos impérios multiétnicos, que foi atrasada pelo colonialismo britânico e francês.

Historicamente, as mesmas tendências políticas que defendiam a criação dos Estados árabes eram a favor do Estado judaico. Do contrário, seriam saudosistas do otomanismo ou simpáticas à colonização pelas potências europeias. A criação de um pequeno Estado judaico em meio à vastidão de Estados árabes era lida como um projeto anti-imperial e anticolonial, inclusive por líderes árabes. A tragédia é que Israel esteja há décadas se valendo de táticas coloniais para impedir a emergência de um Estado palestino como vizinho —o que, invariavelmente, implicará a concessão de terras.

Ao longo das décadas, a cooptação de dois movimentos anticoloniais legítimos por grupos extremistas gerou dois projetos de descolonização mutuamente excludentes, que têm minado qualquer possibilidade de diálogo e coexistência de dois povos cujo destino histórico foi entrelaçado, em grande medida, independentemente da sua vontade.

A fome em Gaza

Em nome da descolonização, tudo se tornou superlativo. O ataque de 7 de outubro foi o maior assassinato de judeus em um só dia desde Auschwitz. A resposta de Netanyahu é uma carnificina sem precedentes e já assassinou quase 40 mil palestinos, com bombardeio indiscriminado em Gaza e o uso da fome como arma de guerra —ações que levaram a Corte de Haia a determinar medidas contra atos de genocídio em Gaza, embora as decisões pareçam ter surtido poucos efeitos concretos em deter a máquina de guerra israelense.

Estamos diante de um fenômeno político novo. Os novos autoritarismos ganham tração na Europa, na Rússia e nos EUA, bem como junto aos movimentos fundamentalistas judaicos e islâmicos, cada qual justificando seu projeto político no nativismo e na essencialização do pertencimento étnico-religioso a um território.

Esses casos tornam evidente que a apropriação da lógica da descolonização pela extrema direita pode rapidamente resvalar em projetos supremacistas, que, para prosperar, dependem do cultivo do ódio e, em última instância, do extermínio do outro.

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