[ por Avraham (Tito) Milgram* | 30|06|2023 ]
Fiz aliá [imigração a Israel] em março de 1973, há cinco décadas, que somam dois terços da vida do Estado de Israel, que este ano festeja 75 anos de independência.
Inevitavelmente, o que me vem à cabeça, nos tumultuados dias que vivemos, pesa mais. E certamente determina minhas lembranças do que vi e vivi em Israel. Sou objetivo quanto aos tempos presentes e provavelmente injusto em relação as minhas vivências passadas. Nisso não sou diferente de outros memorialistas. Por essa mesma razão, o que escrevo tem um sentido relativo ad hoc.
Em meados de 1974, quando eu estudava história na Universidade Hebraica de Jerusalém e recém-chegado no país, participei pela primeira vez de uma manifestação política. Antes dessa, tinha ido aos protestos estudantis contra a ditadura militar em São Paulo, em 1968, na altura em que o general Costa e Silva instituiu o famigerado AI 5 que catalisou o arrocho militar.
A manifestação em Jerusalém, ao contrário do Brasil, não era para protestar contra o governo, de Yitzchak Rabin, com o qual eu me identificava, porém contra o recém-formado movimento de jovens religiosos, idealistas messiânicos desvairados denominado Gush Emunim. Com ímpeto político-religioso pretendiam redimir a terra santa numa versão moderna e judaica dos antigos cruzados. Dinâmicos, energéticos, impetuosos, se pareciam (até hoje) com os fascistas europeus das décadas de 20 e 30 do século passado. Produzidos pela vitória e a conquista da Guerra dos Seis Dias, se iniciaram durante o governo trabalhista de Rabin e Peres. Triste paradoxo.
Com o passar do tempo, respaldados pelo governo, exército e instituições voluntárias, o Gush Emunim se embrenhou na cobiça de terras alheias com retóricas nacionalistas, religiosas e etnocêntricas. Seu sucesso ao longo das últimas décadas foi magistral.
Vários estudos mostram como eles se transformaram no fator político e ideológico mais consistente da sociedade israelense. Muitos simpatizam com seus propósitos, mas poucos se dispõem a viver onde eles vivem. O sucesso demográfico do outro lado da Linha Verde [fronteira com a Jordânia até a guerra de 1967] se deve à migração de religiosos, em grande parte antissionistas, para cidades ortodoxas como Beitar Ilit, Modiin Ilit, Elad e a heterogênea cidade de Ariel. A demografia “ideológica” do Gush Emunim ficou a desejar em termos numéricos, mas não geográficos. Encontram-se por todos os lados.
Nos anos que precederam a minha aliá, se questionava em Israel e na tnuá [movimento juvenil] se os territórios ocupados em 1967 eram “conquistados” ou “libertados”? Não era apenas uma questão semântica e tampouco polarizou os israelenses, como nos dias de hoje, entre esquerda e direita, visto que havia setores kibutzianos como o Achdut Haavodá que apoiavam ideologicamente a colonização do “grande Israel”, e mesmo no MAPAI [partido trabalhista, até então majoritário desde a Independência] havia quem simpatizasse com essa ideia. Intelectuais, escritores e professores universitários justificavam ou invalidavam a expansão colonialista. Eliezer Schweid e Moshe Shamir (ambos com raízes no sionismo pioneiro trabalhista) se identificaram com o “novo chalutzianismo” ao passo que pensadores como Yeshaiahu Leibowitz e o historiador liberal Yaakov Talmon logo perceberam as implicações políticas, demográficas e amorais do domínio sobre milhões de árabes.
Ocorre muitas vezes que um país entra paulatinamente no lodo. Os americanos, depois do Vietnam se enlamearam no Iraque e depois no Afeganistão. Que memória curta a dos yankees! A nossa não é muito melhor. Com nossa experiência no Líbano, de lá saímos após dezoito anos com o rabo no meio das pernas. Os territórios conquistados são outra ópera, não menos estridente e dificilmente nos livraremos dessa corcunda pútrida e irremediável após 56 anos…
Há anos que a extrema-direita faz tudo para acumpliciar a sociedade israelense com o apartheid – tolerado – que ela instituiu nos territórios a leste da Linha Verde. Lá se foram água abaixo nossas pretensões de normalizar o Povo Judeu, deixar nossa condição de minoria e construir um Estado majoritariamente de judeus, respeitando direitos de minorias, religiões etc., condição sine qua non para que haja uma democracia decente e íntegra.
Mas não, Israel se constituiu numa entidade binacional, experiência que fracassou em todos os lados, vide o que ocorreu no Líbano nos anos 70, na Bósnia-Herzegovina nos anos 90, Ruanda em 1994 e em outros lugares com anomalias similares, onde nascem e crescem ódios étnicos, religiosos, raciais e se derrama sangue.
Em novembro de 2022, após as últimas eleições que resultaram no pior governo desde 1948, vários órgãos governamentais se ocupam em doutrinar e ‘evangelizar’ jovens gerações de israelenses seculares. Ser israelense era uma categoria válida no passado e hoje desacreditada. Em Israel, in é ser judeu, acordar com Deus no coração e espada na mão.
Israel é hoje mais complexa do que quando a conheci, antes da Guerra de Yom Kipur. Guerras são referências temporais obrigatórias. Israel de hoje é mais interessante que outrora, mas, ao mesmo tempo, insuportável. Pode-se morrer de muita coisa, de náuseas por exemplo, mas não de tédio.
A verdade é que não sinto saudades do Israel dos anos 70. Naquela altura, o país tinha algo de bolchevique. Por exemplo, éramos obrigados a pagar imposto para viajar ao exterior, estávamos proibidos de ter moeda estrangeira ou conta bancária fora do país. Imaginem que Yitzchak Rabin, primeiro-ministro de Israel, teve que renunciar em 1976, porque sua esposa, Leah Rabin, possuía uma conta bancária com 2.000 dólares nos EUA! Em compensação era cômodo estacionar nas ruas, pois poucos cidadãos tinham automóveis, os apartamentos eram pequenos, mais ou menos uniformes, sem graça, excetuando os da alta burguesia de Savion ou Kfar Shemariahu, onde se concentravam, até hoje, ricos com grandes mansões.
Israel se modernizava e as mudanças começaram antes mesmo das eleições que levaram Menachem Begin, o carismático líder da direita-liberal ao poder em maio de 1977. Naquela época tínhamos sérias reservas a Begin. Hoje, com o ar infestado de fascismo e etnocentrismo, lembramos e enfatizamos sua ética democrata e respeito pela democracia, pelas minorias não-judaicas e o papel imprescindível da Suprema Corte de Justiça.
Nunca imaginei que um dia iria elogiar Begin, que hoje seria considerado persona non grata no seu partido. Na aberração partidária do Likud atual, é preciso, antes de dar qualquer passo, demonstrar fidelidade ao Führer, manter postura ultranacionalista, criticar o sistema judiciário, odiar liberais, esquerdistas, árabes, refugiados, ONGs pró direitos humanos, a mídia e as elites. Xingá-los e demonizá-los é uma mais valia.
Enfim, não é preciso ser de esquerda para se sentir incômodo em Israel. As medidas etnocêntricas, antidemocráticas e clericais fazem qualquer ser normal sentir-se estranho em sua própria casa. Conhecendo Israel, me perguntei várias vezes nos últimos dois anos se voltaria a fazer aliá. É uma pergunta que agora, passados 50 anos, não faz sentido, mas o fato de questioná-la é um sintoma de que “há algo de podre no reino da Dinamarca”.
Não há certeza, mas estamos nos encaminhando a uma ‘democradura’, pois como ‘eles’ dizem: “a maioria decide e manda”, “vencemos nas urnas portanto aceitem o desígnio do povo”, e para Bibi, l’etat c’est moi! Não invejo os árabes, mulheres, LGBT, refugiados e outros desqualificados civis. No populismo, fake news é praxe. Tampouco faltam inimigos internos, imaginários e instrumentais, assim como na Hungria, Polônia e no imaginário trumpista e bolsonarista. Tampouco falta vergonha num país governado por sem-vergonhas.
Por ora há verbas nas finanças para assegurar o bem-estar relativo de milhares de parasitas que acreditam piamente que isso se deve à Providência Divina, que terão futuro no país sem contribuir com trabalho, segurança e conhecimento escolar básico. Odeiam o Estado que os sustenta. “E quando teremos nós a nossa guerra civil?” perguntou Assi Cohen, humorista da TV. “Afinal, aqui todos se odeiam e todo povo normal passou por guerra civil”. Então Assi, você não perdeu por esperar, pois finalmente estamos vivendo a nossa kulturkampf. As propostas de leis antidemocráticas por um lado e a reação pavloviana de milhares nas ruas por outro lado, é cataclísmico.
Só que dessa vez “nossos” fascistas foram longe demais. Pisaram nos calos identitários dos israelenses que literalmente sustentam e defendem o país. O ultraje é insuportável. As manifestações massivas nas ruas são a grande surpresa e o que há de mais significativo desde os grandes protestos que ocorreram em Tel Aviv em 1982 pelo morticínio de palestinos pelas falanges cristãs em Sabra e Chatila.
No Pasarán! – é o lema subentendido no clima das manifestações dos liberais, laicos, democratas e patriotas israelenses – evocado a cada final de sábado pelo país afora, principalmente na rua Kaplan de Tel Aviv, símbolo da oposição do campo liberal.
Minha preocupação é existencial. Temo pelo perigo de nos desqualificarem, e pelos “outros”, desclassificados pela Lei da Nacionalidade. Me incomoda a ambivalência do campo democrático. Porque centenas de milhares de cidadãos, que semanalmente se manifestam nas ruas contra o golpe judicial da extrema direita não se manifestaram quando foi promulgada a famigerada Lei da Nacionalidade em 2018? A cidadania, absoluta para judeus é relativa quando se trata de minorias.
Contudo, me irrito mais com a prepotência da extrema direita e sua idiossincrasia racista que se alastra como praga a olhos vistos. Nós judeus, vítimas categóricas da discriminação na história, deveríamos estar vacinados, mas, pelo visto, também podemos ser transmissores. Sabemos usar e abusar ad nauseam da nossa vitimização. Nesse aspecto somos unidos e solidários; quando se trata do presente e futuro a conversa é outra. Hoje, se contesta a ideia de que somos um único povo, unido e solidário. Essa é uma imagem da qual apenas antissemitas partilham, e claro, políticos em Israel. Haja pulmão para aguentar tanta poluição nacionalista, religiosa, fanática e racista dos circuncidados do rito judaico.
Simplesmente desandamos, não somos melhores que outros povos, e, como muitos deles, também somos incapazes de partilhar uma vida em comum em nossa própria casa. Precisamos dos goim que nos infernizaram a vida no galut, necessários para condicionar o ideal da solidariedade judaica. George Steiner provavelmente me daria razão. O Israel ao qual nos encaminhamos nos afronta.
Na minha percepção, o início e o final desses cinquenta anos estão conectados pelo golem judeu-nazista que emergiu há cinquenta anos atrás, reforçado por setores ortodoxos. Como se o tempo não contasse, apenas a angústia de um mundo transtornado. Temores e incertezas vêm à tona. Acordo suado e digo para mim, não se preocupe, afinal é apenas um pesadelo, tudo é passageiro y no pasarán, mas, que acontecerá si pasan? Que hago? Que hacemos?
*Avraham (‘Tito’) Milgram nasceu em Buenos Aires em 1951, cresceu em Curitiba e emigrou para Israel em 1973. Cursou o bacharelado, mestrado e doutorado em história judaica na Universidade Hebraica de Jerusalém. Milgram foi historiador e pesquisador sênior do Museu do Holocausto Yad Vashem e do Pavilhão Judaico nº 27 em Auschwitz. Publicou vários livros sobre judeus no Brasil e Portugal no século XX, editou a Enciclopédia dos Justos das Nações, a coletânea Fragmentos de Memórias (2010) e os Encantos e Desencantos (Amazon Brasil 2021). Deve sua formação humanista ao movimento juvenil sionista-socialista Dror/Ichud Habonim. Avraham Milgram é historiador independente, vive em Tzur Hadassa, é casado com a Beth e seus filhos e netos nasceram em Israel.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel, onde foi inicialmente publicado.