Violência e pilhagem sempre foram anátemas no judaísmo. O que deu errado?
Trabalhadores palestinos cruzam ilegalmente da Cisjordânia para Israel (foto de 2020).
Cada menção ao sofrimento palestino é vista como um perigo para o Estado.
Existe uma crescente percepção nos últimos anos de que a Ocupação não é temporária, mas uma subjugação militar que já durou mais de meio século e cujo final não é visível no horizonte. O prolongamento da Ocupação afeta a liberdade de milhões de pessoas e está desmantelando a identidade coletiva de uma nação inteira. E quanto mais arraigada se torna, mais é percebida como uma característica substantiva de Israel. Daí, a resistência a ela é percebida como resistência à própria existência do Estado. Qualquer menção ao sofrimento de palestinos é vista como ameaça ao Estado.
Muitas pessoas religiosamente observantes são envolvidas ativamente em promover e justificar a Ocupação. Representantes do movimento “Religioso-Sionista”, uma força dominante no exército atual, validarão moralmente e em termos de halachá (Lei religiosa tradicional) cada operação do Exército de Defesa de Israel [EDI] e cada ação de assentamento. Às vezes parece que a posição religiosa natural é apoiar essas ações. Hoje, também, quando o ethos sionista-religioso do assentamento em colinas rochosas tornou-se mais uma vida burguesa, e quando extensas campanhas militares foram substituídas pelo policiamento diário para controlar uma população despida de direitos – ainda parece que aqueles que usam kipá estão à frente da ideologia da superioridade étnica.
Muitas décadas após as mortes do Rabino Abraham Isaac Kook e do seu filho, Rabino Zvi Yehuda Kook, a concepção que vê o EDI como um exército sagrado e as guerras de Israel como uma obrigação religiosa tem apoio entusiástico entre círculos religiosos. Nos últimos anos. essa obrigação também tomou a forma de normas haláchicas permissivas do “procedimento do vizinho” (o uso de palestinos como escudos humanos), pilhagem de terras privadas, violação do Shabat em benefício de assentamentos, transgressões cometidas para acomodar as necessidades do Serviço Secreto Shin Bet, violência civil contra palestinos e mais.
Porém, a atitude da tradição judaica para o uso de violência é totalmente incompatível com o ethos manifestado pelos sionistas religiosos. A halachá permite que se envolva em auto-defesa, em alguns casos mesmo ao preço de transgredir outro mandamento, mas a violência é percebida como um ato negativo e um comportamento não-judaico, que deve ser evitado.
‘Machané Israel’
A tentativa de atingir um equilíbrio entre os dois princípios – auto-defesa vs. resistência a violência – moldou escritos rabínicos no passado. Um exemplo anterior à fundação do Estado de Israel de um trabalho que abordou esses princípios é o livro “Mahané Israel.” Poucos rabinos conseguiram ser aceitos pela maioria das correntes religiosas ainda durante suas vidas; um deles é o autor deste livro, Rabino Israel Meir Hakohen Kagan, conhecido com “Chofetz Chayim.” Seus livros “Mishná Brurá” e “Shmirat Halashon” estão nas bibliotecas de judeus religiosos das mais diversas correntes – Ashkenazim e Mizrahim, Hassidim e Mitnagdim, Sionistas e Haredim.
“Mahané Israel,” escrito em 1881, é o primeiro livro judaico destinado especificamente para soldados. Foi escrito em hebraico, para soldados a serviço do exército do Czar russo. e foi traduzido para o inglês para uso dos soldados ingleses e americanos nas guerras mundiais, A primeira parte do livro inclui questões haláchicas e respostas relacionadas às rotinas diárias;; a segunda parte é voltada para moralidade e filosofia: como um soldado deve ser comportar com seus camaradas na unidade, e existe também uma oração pela para e pela redenção do povo judeu.
>> leia ++ (inglês) >>
- In the name of ‘family values,’ an Israeli coalition is trying to derail gay rights and gender equality
- A revolutionary East Jerusalem experiment offers an effective alternative to police brutality
No início do livro o autor escreve, “Como sabemos, soldados necessitam da misericórdia divina mais do que qualquer coisa, durante a guerra e situações semelhantes, muito frequentemente”. O soldado não é forte, é desamparado. Ele precisa da misericórdia divina. A vida de um indivíduo religioso deve se realizar fora do exército, dentro de uma comunidade religiosa, Quando uma pessoa religiosa está no sistema militar, ele precisa se cercar do mundo da Torá, que o protegerá e funcionará como uma âncora que o amarra ao seu mundo religioso.
“A que isto é comparável?’ pergunta Chofetz Chaim, que responde, “A alguém que por causa de certo assunto é forçado a deixar seu vinhedo e seu gado para vigiar outros vinhedos”. Voltar ao seu vinhedo logo que possível não é escapar do exército, mas a forma em que um soldado judeu pode se proteger durante o combate.
Chofetz Chaim é contra a visão do serviço militar como um período alegre e como oportunidade para demonstrar força: “Deixe que ele seja muito cuidadoso para não pensar em seu coração quando vai à guerra, ‘Bem, heróis somos nós e homens de valor para guerra’. Ele deve ver apenas D’us como seu principal baluarte e fé n’Ele para ajuda, pois assim está escrito, ‘Ele não se deliciou com a força do cavalo; Ele não teve prazer com as pernas de um homem. O Senhor teve prazer naqueles que O temem, naqueles que esperam pela Sua misericórdia”.
Alguns enxergam a devoção religiosa como passividade e falta de uma atitude crítica. Mas Chofetz Chaim demanda que o soldado tome uma decisão ativa, diariamente: Ele deve viver conforme um conjunto de valores diferentes do sistema normativo em que se encontra. O autor demanda que o judeu que serve no exército resista às normas, aos costumes e à ordem violenta ditada pelo ambiente militar.
O “Mahané Israel” é relevante para o EDI? A situação de um soldado religioso servindo no EDI ou a de um soldado-civil nos assentamentos não é a de um soldado judeu no exército do Czar. Por uma coisa, é mais fácil no exército de Israel observar os mandamentos, tanto individualmente como em grupo. Israel é um Estado secular, mas apesar disto, os rabinos do sionismo religioso decidiram que as guerras de Israel, incluindo a conquista dos territórios, são guerras de mandamento.
Mas, além da maior facilidade na observância, a dificuldade de manter um mundo religioso separado dentro do mundo do exército cresceu enormemente. Para comprar a alegoria de Chofetz Chaim, o soldado judeu do EDI. e particularmente o soldado religioso, não sente mais que está tomando conta de dois vinhedos, mas que supervisiona apenas um. O exército não é o do monarca russo, é o “nosso” exército. A unificação dos vinhedos é a hipótese básica definitiva de população nacionalista-religiosa em Israel.
‘Nosso direito como povo’
O livro de 1976 “Leis do Exército e da Guerra” [Laws of the Military and Warfare] , dos Rabinos Shlomo Min-Hahar, Issachar Goelman e Yehuda Aizenberg, foi um dos primeiros trabalhos escritos para soldados a serviço do EDI – um tipo de equivalente israelense de “Mahané Israel.” O principal argumento colocado por esses rabinos do movimento sionista-religioso é institucional. Chofetz Chaim lidou com a moralidade do soldado judeu, enquanto esses rabinos colocam o Estado judeu acima disso. O soldado deve esquecer seus entendimentos e seu ponto de vista, sendo parte de uma organização que toma decisões éticas pos ele a nível institucional.
“O soldado servindo nos territórios conhece uma nova guerra e novo inimigo: Ele atira num terrorista e vê sua mãe e sua irmão chorando sobre o corpo; ele prende um terrorista e vê seus pequenos filhos se arrastando atrás dele quando ele é levado da casa.
“Um soldado que passa por campos de refugiados vê uma pobreza horrível, e lembra que ele ou seus amigos vivem num lugar onde essas pessoas podiam ter vivido antes deles.
“O ódio em seus olhos se torna mais concreto que a medida da justiça em nossos atos. O problema moral aflora e se torna mais agudo. E ele se pergunta: Por que eles estão famintos e sem teto, e nós estamos saciados? Por que nós os dominamos contra a vontade deles? Que direito temos nós para empunhar nossa força?
“As questões morais só existem quando julgamos nossas ações com um olhar estreito, que apenas vê um segmento do presente.
“A justificativa para os nossos atos na Terra de Israel, para nosso direito de impor nossa vontade sobre uma população hostil, para nosso direito de nos assentar em qualquer lugar da Terra de Israel, para o nosso direito de atirar em terroristas e explodir suas casas mesmo quando apareçam num lugar onde haja mulheres e crianças – a justificativa para tudo isto não encontraremos na atividade diária. Nosso direito a isto é encontrado num nível completamente diferente: no nosso direito a existir como um povo, e no nosso direito à Terra de Israel.”
A maioria dos israelenses acha que sua liberdade depende da subjugação de outros, e que sem a Ocupação, não podem ser livres. Esta noção precisa ser reconsiderada.
A justificativa para nossas ações na Terra de Israel, argumentaram os autores – e seus sucessores pensam igual até hoje – é religiosa, incorporada no “direito à Terra de Israel”. Esse direito supera em importância a consciência do indivíduo judeu, e o obriga a ignorar ativamente a sua educação. Existe algo de irônico sobre o fato de que a forma “examinar as coisas com os olhos abertos” é fechando os olhos da pessoa ao sofrimento. O “ver” requerido do tradicional soldado judeu reside em colocar o nacionalismo israelense secular como soberano, ao qual – exclusivamente – devemos fidelidade. Esta é a importância da justificativa do “nosso direito a existir como povo”.
Israel é um Estado secular, mas apesar disto, os rabinos do Sionismo Religioso decidiram que as guerras de Israel, incluindo a conquista sos territórios, são guerras ‘por mandamento’. Ou seja, são guerras em que a participação nasce não de um decreto real mas do fato de que a iniciativa da guerra é de D’us.
Assim, por exemplo, o rabino Yaakov Ariel, um dos mais importantes árbitros do Sionismo Religioso, escreveu em 2017, “Fiel à sua trilha, de que o mandamento de se assentar na terra inclui também a conquista e defesa da terra, o Sionismo Religioso vê o serviço militar, em princípio, como um mandamento da Torá”.
A linguagem do Sionismo Religioso, pela qual o Estado é um Estado judeu, gerou uma contradição religiosa básica, uma negação completa dos princípios judaicos da guerra. Esses princípios colocam a decisão de D’us no centro, enquanto as lutas do EDI obedecem a ordens de generais e à decisão de políticos. A questão haláchica não é simples: Como é possível determinar que as guerras de Israel são guerras ‘por mandamento’, na ausência de um mecanismo que decida que esses são de fato mandamentos divinos – como a ordem de um rei nomeado por um profeta em um Sanhedrin?
Então, como agora, isto foi possibilitado por uma unificação do Estado secular e o “povo judeu” no sentido religioso. O governo se torna rei, o soldado (religioso ou secular) incorpora o Cohen (sacerdote). Dois processos perigosos revelados: O indivíduo desaparece (e com ele a tradição judaica, e amiúde a própria halachá, que é dirigida ao crente), , e a comunidade secular adquire um valor religioso (e com ele a mobilização de um apoio sem fim à força militar). Não é uma “religionização” do Estado. É uma “nacionalização” da religião.
Rabi Yaakov Ariel
Subjugação | Justificação?
Mesmo que não seja possível usar o termo ‘guerra por mandamento’ no contexto israelense, resta a justificativa das guerras de Israel como guerras de defesa, Esta justificativa permite que indivíduos religiosos combatam mesmo que não haja uma “guerra por mandamento”, pois a tradição judaica permite a auto-defesa. O argumento da auto-defesa também é o que prevalece entre seculares na Ocupação.
O conceito israelense de liberdade pode ser formulado da seguinte forma: ‘A liberdade no Estado de Israel – segurança pessoal e comunal para todos nós – não pode existir sem algum tipo de dimensão de domínio sobre palestinos’.
A maioria dos israelenses acha que suas liberdades dependem da subjugação de outros, e que sem a Ocupação não podem ser livres. O desejo dos palestinos por seu próprio Estado nos obriga a subjugá-los. Com o tempo, esse argumento revela-se atemporal. A liberdade dos palestinos, por si, nos põe em perigos. Assim, seremos compelidos a subjugá-los para sempre.
Esta noção deve ser reconsiderada. A tradição judaica de fato tem algo a dizer sobre a capacidade de a soberania secular nos dissuadir de necessidades imaginárias.
Não somos ocupantes porque precisamos ocupar; somos ocupantes porque podemos ocupar. A Ocupação não é o impedimento para alguma ação específica contra nós, mas um fenômeno violento que está acompanhando as nossas vidas e que aparentemente nos sustenta. Mas, privar um povo de sua liberdade por medo de que a usarão contra nós é uma distorção moral que está muito longe da nossa tradição. Subjugar sem fim por causa de um medo de ser atacado não é algo amparado por nenhum padrão ético ou tradicional, que vê a auto-defesa como legítima apenas contra uma ação concreta.
O resultado deste pecado moral, além do sofrimento intenso que estamos causando a milhões do outro povo, é a criação de uma contradição interna na linguagem da moralidade religiosa, Nossa liberdade é ligada à subjugação de outros. Como pode ser a liberdade um conceito positivo, se o nosso Estado existir apenas por força da negação de liberdades?
Se entendermos o preço que está sendo pago, que deve ser pago, por milhões de pessoas para nossa liberdade, se entendermos o significado da subjugação, não seremos capazes de viver nossas vidas normais.
Se internalizássemos nossa responsabilidade pela fome na Faixa de Gaza, a escassez de água nas colinas ao sul de Hebron, a condição de vida dos trabalhadores nas tamareiras do Vale do Jordão, pelo fato de mães e pais árabes não se sentirem seguros em suas casas em Hebron, se entendêssemos a dor das dezenas de milhares de famílias cortadas ao meio porque seus pais e filhos passaram anos em detenção administrativa, se entendermos o significado familiar de ter sua casa invadida no meio da noite por uma patrulha, uma prisão, o mapeamento de um local pelo Shin Bet ou apenas um exercício, a falta de segurança básica – se enxergarmos e internalizarmos que tudo isto está acontecendo diretamente por nossa causa, não por necessidade mas como resultado do nosso poder – não seremos capazes de fucionar assim.
Como pessoas religiosas observantes, somos obrigados a ver a realidade em nosso entorno. A única forma de fazê-lo é observar a realidade, não através do prisma do Estado, mas pelos prismas do indivíduo e da comunidade religiosa. A obrigação do indivíduo religioso é antes de tudo internalizar o fato de que a subjugação de palestinos não vem da necessidade, mas da capacidade e do desejo: a capacidade de negar a liberdade para fins de segurança, e o desejo de gozar os prazeres de dominar, tanto na terra como no âmago nacional-simbólico do setor Sionista-Religioso.
Se aspiramos ser bons judeus, não podemos fundamentar nossas vidas na cegueira e na força bruta.
Mikhael Manekin é diretor da “Alliance for Israel’s Future”. Escreveu o livro “The Dawn of Redemption: Ethics, Tradition and Jewish Power” (hebraico).
[ por Mikhael Manekin | publicado no Haaretz | 03|09|2021 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]