Desde 7 de outubro, está cada vez mais claro: Israel deve concordar com uma Solução de Dois Estados.

[ por Zehava Galon | Haaretz 14|10|2024 | tradução Amigos Brasileiros do PAZ AGORA | www.pazagora.org ]

Não, eu não fiquei sóbria. Obrigada por perguntar. Fiquei horrorizada – isso, sim. Eu sei a profundidade da crueldade a que os seres humanos podem chegar. Perdi muitos dos meus parentes para pessoas que caíram nessas profundezas. Então não fiquei surpresa que os seres humanos sejam capazes disso. Mas fiquei surpresa com a intensidade do ódio e da cegueira.

O ataque de 7 de outubro foi um soco no estômago. Posso entender as pessoas que perderam a confiança em um acordo diplomático, que acham que não há nada para falar e ninguém com quem conversar.

Mas, se há alguma coisa que o terrível ano que passou só fortaleceu, foi a minha convicção de que podemos continuar a derramar o sangue um do outro por mais 20 anos, mas nunca houve e nem haverá outra solução além de um acordo diplomático.

Sim, uma Solução de Dois Estados. Com os palestinos. Sim, incluindo os moradores da Faixa de Gaza. Sim, é possível que as pessoas tenham que ver os vilões que abusaram e assassinaram seus entes queridos sendo libertados. Talvez eles até mostrem um sinal de V de vitória.

Este é um preço que teremos que pagar para que possamos finalmente parar de oferecer sacrifícios humanos ao conflito, em nome da justiça. Os palestinos terão que pagar o mesmo preço. Cada lado terá que ver pessoas que detesta continuarem vivendo como se nada tivesse acontecido. E será terrível, mas valerá a pena.

Os belicistas deram à paz um nome ruim, como se fosse uma ilusão de tolos ingênuos que não conseguem lidar com a dura realidade da região. Desculpe, mas isso é besteira. A escolha da guerra perpétua não é pragmática. É o sonho lunático de pessoas que não aprenderam nada com a História e estão convencidas de que a História obedece à lógica dos filmes de ação dos anos 1980.

Em setembro de 2023, antes que tudo desmoronasse, escrevi um artigo de opinião no Haaretz em hebraico sobre o 50º aniversário da Guerra do Yom Kipur e como Benjamin Netanyahu substituiu sua ideia fixa sobre “administrar o conflito” pelo enfraquecimento da Autoridade Palestina.

“A Guerra do Yom Kipur é a prova de que não há vácuos”, escrevi. “Em um lugar onde as pessoas se recusam a falar sobre paz, outras pessoas tomarão medidas desesperadas e pegarão em armas. … E qualquer um que não consiga encontrar coragem para compromissos e reconciliação em tempos de calma se verá lutando por sua vida no campo de batalha.”

O primeiro-ministro andava de cabeça erguida naquela época, gabando-se de ser a pessoa que “removeu o problema palestino da agenda”. Nem ele nem seus parceiros podem me ensinar sobre pragmatismo.

Os israelenses têm falado muito sobre ideias corretivas desde 7 de outubro, mas permitam-me acrescentar mais uma: a suposição de que nunca seremos fracos.

“Viveremos pela espada para sempre”, disse Netanyahu naquela época. A História viu muita coisa. Viu megalomaníacos obcecados por poder, narcisistas, avarentos, ditadores terríveis, vendedores vestidos como comandantes do exército. Só há uma coisa que ainda não viu: algo que dure para sempre. Mesmo que sejamos fortes agora, no devido tempo todos nós tropeçaremos.

Podemos construir muros, armar-nos até os dentes, enviar soldados para postos de controle, emitir autorizações de trabalho, assumir posições em lares palestinos. Mas em algum momento, nós também seremos fracos. Em algum momento, nossas agências de inteligência também serão arrogantes, presunçosas e arraigadas em suas suposições. Em algum momento, nossos líderes também serão estúpidos e egoístas e destruirão o país em um momento de pico de tensão de segurança, enquanto tentam promover seus próprios interesses feios e mesquinhos.

Em algum momento, nós também elegeremos políticos racistas, gananciosos e mesquinhos que tirarão quase tudo de nós sem sentir nem um pingo de culpa. Há momentos assim na história de cada nação.

E se não for tudo isso, será outra coisa – terremotos, crises econômicas, mudanças geopolíticas. Toda família que economiza para um dia chuvoso sabe disso. Só nossos líderes insanos nunca ouviram falar disso. E eles têm a coragem de chamar isso de “pragmatismo”.

Pragmatismo é saber que o poderio militar é apenas uma faceta do poder, e uma faceta fraca. Em seu livro de leitura obrigatória em hebraico “Beyond the Iron Wall: The Fatal Flaw in Israel’s National Security”, o Prof. Uri Bar-Joseph explica que a recusa teimosa e consistente de Israel em resolver o conflito e chegar a acordos diplomáticos — isto é, aceitar a fórmula dos Dois Estados — nos deixa sob constante ameaça.

O problema não é nossa falta de poderio militar, mas nossa falta de vontade de apoiá-lo com acordos — isto é, com outras formas de poder.

Um momento de fraqueza não precisa ser uma ameaça existencial. Mas se torna uma se você insistir em viver em conflito perpétuo, convencido de que tudo sempre sairá do seu jeito. E é para lá que a direita nos levou.

Pragmatismo significa olhar para os países que nos ajudaram no ano passado e lembrar que alguns deles foram nossos piores inimigos ontem e ainda poderiam sê-lo hoje se nossa história não tivesse incluído pessoas de estatura e visão — virtudes com que Netanyahu não foi agraciado.

Como essa guerra teria parecido, se também tivéssemos que lutar contra a Jordânia e o Egito? Já que agora temos piromaníacos no banco do motorista, ainda poderíamos descobrir.

Então, não fiquei sóbria. Obrigada. Não sei se é possível chegar a acordos com todos e cada um dos atores no Oriente Médio – provavelmente não. Mas sei que é do nosso interesse chegar a um acordo com o máximo possível deles, e sei que os palestinos não são uma questão marginal que pode ser adiada, “administrada” e descartada.

A Solução de Dois Estados é a chave para chegar a acordos com os outros países da região. Ouvimos isso recentemente refletido em comentários do Ministro das Relações Exteriores da Jordânia, Ayman Safadi, e em um artigo publicado pelo Ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita, Faisal bin Farhan, no Financial Times da Grã-Bretanha.

É assustador ver esse governo mantendo todos os erros que nos levaram ao dia 7 de outubro.

Em vez de trazer os 101 reféns para casa, acalmar as várias frentes e, assim, liberar mão de obra essencial, ele incendiou mais e mais frentes, partindo do pressuposto de que sempre haverá reservistas suficientes para enviar para apagar os incêndios, assim como dinheiro suficiente para financiar o palacete do primeiro-ministro em Cesaréia e para satisfazer o ministro de extrema direita Orit Strock.

Mas não é o suficiente. Precisamos ter clareza sobre onde essa intoxicação com o poder nos levará. Então não exijam que eu fique sóbria. Exijam isso de vocês mesmos.

* ZEHAVA GALON foi líder do partido Meretz. Hoje é co-dirigente da ONG ZULAT – IGUALDADE E DIREITOS HUMANOS

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