PALESTINA É, SIM, UM ESTADO


[ por Thiago Amparo * | Folha de São Paulo pg.A2 | 23 de maio de 2024 ]

* Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Não há dúvidas legais de que a Palestina seja um Estado. Seja pela teoria constitutiva —que prega que o reconhecimento por outros Estados é imprescindível (mais de 140 países a reconhecem) —, seja pela teoria descritiva — que prega que ser um Estado é uma situação de fato (a Palestina possui território, governo e população) —, o Estado palestino existe. Nem Israel tinha território pleno definido quando foi aceito na ONU; à época os EUA disseram que não havia problema algum.


Se a lei internacional, aliás, vale mais do que o papel em que foi escrita, os líderes de Israel e do Hamas deveriam ser presos. Não há qualquer equivalência aqui: no Tribunal Penal Internacional (TPI), a responsabilidade que se apura é individual. A cada um a parte que lhe cabe: a Netanyahu e a seu ministro da Defesa, prisão por usar a fome de seres humanos como arma de guerra e por executar mais de 30 mil; aos líderes do Hamas, prisão por sequestrar, violentar sexualmente e matar seres humanos como parte de um ataque.


Chefes de Estado possuem imunidade? Não, diz o Estatuto de Roma em seu artigo 27: “A qualidade oficial de chefe de Estado (…) em caso algum eximirá a pessoa de responsabilidade criminal”. Se Al-Bashir não pode praticar limpeza étnica em Darfur, no Sudão, e se Putin não pode deportar ilegalmente crianças da Ucrânia para a Rússia, tampouco o premiê israelense pode cometer atrocidades. A base legal para prender Putin é a mesma utilizada para prender Netanyahu.

O TPI poderia emitir uma ordem de prisão para líderes de um país não membro (Israel)? Sim, a jurisdição da corte se aplica a territórios de Estados que a reconheceram e, em 2015, a Palestina o fez. Logo, o que ocorre lá está sob o poder do tribunal internacional. É obrigação dos Estados-partes prender acusados pelo TPI que estejam em seu território.

Manter a Palestina como território subjugado apenas interessa a quem não vê ali seres humanos dignos de proteção internacional; àqueles cabe a escória da história e a prisão em Haia.

Iniciativa do procurador do Tribunal de Haia ergue balizas morais
[ por Maria Hermínia Tavares* | Folha de S.Paulo 23/05/2024 pg.A2 ]

* Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Visitando uma amiga querida, bati o olho em um de seus ímãs de geladeira. Ao lado de um mapa que juntava, numa única mancha vermelha, os territórios de Israel, a Faixa de Gaza e as disputadas áreas da Cisjordânia, uma palavra de ordem: “Palestina livre”.

Essa a versão compacta do slogan desafiador “Do rio ao mar, a Palestina será livre” que me impede de simpatizar com as manifestações contra a guerra que sacodem universidades americanas, europeias e, como seria de esperar, a brasileira USP.

Todos quantos se horrorizam, seja com a violência indiscriminada da resposta de Tel-Aviv à abominável incursão do Hamas em outubro passado, seja com a ambiguidade dos protestos que incluem juras de morte a Israel — seja, enfim, com as cenas explícitas de antissemitismo —, devem ter recebido com alívio as notícias vindas do TPI (Tribunal Penal Internacional).

Na segunda-feira (20), Karin Khan, procurador daquela corte, pediu a prisão de três líderes do Hamas (Yahya Sinwar, chefe da organização no enclave; Mohammed Diab Ibrahim al-Masri, comandante de sua ala militar; Ismail Hanyieh, chefe do seu escritório político). Pediu idêntica providência em relação ao primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, e ao ministro da Defesa do país, Yoav Gallant —aqueles e estes igualmente acusados de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Acolhida a solicitação, será decretada a prisão dos cinco, que assim poderão ser detidos em qualquer um dos 123 países signatários do Estatuto de Roma, que criou o TPI, em 2002, para processar acusados daqueles crimes — e de genocídio.

Mas há obstáculos de sobra. A Corte de Haia, como o tribunal ficou conhecido, é o ponto mais alto a que se chegou na institucionalização do princípio da universalidade dos direitos básicos das pessoas e da possibilidade de fazê-los respeitados em qualquer circunstância, acima das fronteiras nacionais. Por isso mesmo o TPI não é reconhecido pelas grandes potências —e também por Israel. Sua eficácia depende das realidades do poder e dos cálculos geopolíticos que movem a interação dos países.

Mesmo que não leve à punição dos denunciados, a iniciativa do procurador Khan contribui para restabelecer as balizas morais derrubadas por defensores viscerais de palestinos e israelenses. Sua denúncia reconhece que os dois lados do conflito têm demandas legítimas por justiça e que a lei deve protegê-los igualmente.

A saída —se é que haverá algo que se lhe pareça— para estabelecer o convívio pacífico entre os dois povos, divididos pelo rancor e desprezo mútuos, começa com o reconhecimento dessa verdade elementar.

Mesmo que não leve à punição dos denunciados, a iniciativa do procurador Khan contribui para restabelecer as balizas morais derrubadas por defensores viscerais de palestinos e israelenses. Sua denúncia reconhece que os dois lados do conflito têm demandas legítimas por justiça e que a lei deve protegê-los igualmente.

A saída — se é que haverá algo que se lhe pareça — para estabelecer o convívio pacífico entre os dois povos, divididos pelo rancor e desprezo mútuos, começa com o reconhecimento dessa verdade elementar.

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