Paulo Blank | Pessach com Leibowitz e Lévinas

Na mesma mesa, reunidos para a noite do Seder, cercados pela curiosidade de sábios de todas as gerações, Yeshayahu Leibowitz e Emanuel Lévinas conversavam animados estranhando nunca terem se encontrado antes. Nascidos na Lituânia no inicio do século e falecidos em meados da década de noventa, o primeiro em Jerusalém, o outro em Paris, o primeiro, um guerreiro disposto acombater qualquer tentativa de sacralizar homens e terras, argumentando que “só o que se encontra alem da realidade pode ser sagrado no judaísmo”, transformou-se numa figura exemplar no cenário religioso e político do Estado de Israel.

Lévinas com a paixão ética do seu pensamento, foi reconhecido como um dos principais filósofos do século XX. Judeu praticante, dirigiu uma escola judaica até o final da vida, deixou estudos do Talmud de enorme importância atual, uma obra filosófica cada vez mais estudada e difundida e um pensamento sem ilusões sobre a natureza da vida humana e a realidade das guerras. Dois guerreiros, cada um ao seu modo, ambos, na mesma mesa e eu olhando feliz por terem aceito o meu convite.

Começamos falando do Seder, ou da ágape, o banquete onde os gregos se reuniam para filosofar juntando o sabor ao saber. Foi esta a maneira que os talmudistas encolheram para formatar a noite em que cada um de Israel deveria entrar na pele de um escravo saindo do Egito. Livres, recostados em almofadas como faziam os gregos e depois os romanos, e não de pé como os nossos antepassados que, de ouvido atento, protegidos pela marca do sangue de um cordeiro sacrificado pintado no batente de suas portas, esperavam a passagem da morte. Audaciosos aqueles homens. Além de sacrificarem um animal que era sagrado no Egito, ainda usavam o seu sangue para marcar as casas assumindo de público que ali morava um membro de Israel.

Se há milênios atrás éramos escravos, hoje, sem pressa, participamos de uma conversa sobre a saída da escravidão. A Hagadá nos convida para encontrarmos no corpo a sensação de estarmos saindo do Egito, experimentando tanto a alegria quanto a angústia de um escravo em fuga, recomendando que quanto mais nos dedicarmos a falar do assunto, melhor será.

Nesta proposta, os sábios talmúdicos parecem obedecer ao mesmo princípio que usavam para a leitura da Torah. Quando decidiram que na escritura sagrada não haveria nem antes e nem depois, eles libertaram os pensamentos e as frases de suas molduras que assim puderam escapar da narrativa de um tempo ordenado, permitindo aos leitores “descobrirem” afinidades entre textos escritos a séculos de distância uns dos outros.

Afinidades que abrem passagens entre épocas, inaugurando um agora anacrônico construído de pontes onde antes existiam tempos intransponíveis. Como se, ao lermos a Torah, sempre fosse possível reverter a narrativa a um tempo que diz respeito ao leitor em sua experiência atual, substituindo “o era uma vez” por um “aqui e agora”. Postura semelhante nos leva a conceber a noite do Seder, como uma vivência dedicada a sermos escravos em saída do Egito. Proposição extraordinária se considerarmos que foi sugerida a um Israel oprimido pelas nações em que habitavam. Uma verdadeira prescrição terapêutica. Para pessoas submetidas às nações onde habitavam nada melhor do que sentir-se saindo do Egito, escapando da vida vivida em corpos subjugados e experimentando naquela noite a mesma liberdade que um dia poderiam conhecer.

Na primeira noite do Pessach, terminada a narrativa da saída do Egito e após o conselho da Hagadá para não economizarmos em falar da libertação, ela nos leva ao encontro de Rav Eliezer. Este, com outros sábios do Talmud, se dedicavam a cumprir a orientação da fala infinita sobre a libertação, conversando e meditando durante toda a noite, sem repararem que já era hora da oração matinal. Um tanto decepcionado, Rabi Eliezer declara que, já tendo setenta anos de idade, nunca alcançou a graça de comentar (toda) a “saída do Egito nas noites” do Pessach. Ben Zoma lhe diz: “para que lembres a saída do Egito durante toda a tua vida, não só nas noites de Pessach, mas em todas as noites, e não só nelas, e sim durante todas as noites e dias da tua vida. Enquanto outros sábios ainda acrescentariam, todos os dias de tua vida até que seja trazido o Messias”

Toda a vida faz pensar na necessidade da atenção permanente com a frágil construção humana chamada por Lévinas de difícil liberdade. Aceitando a Torah, os hebreus estavam sendo convocados a olhar o mundo através de uma nova ótica. Tratava-se da invenção do outro e do primeiro esforço racional de pensar no envolvimento responsável por ele. Preocupação com o boi do outro, a casa do outro, a vida do outro, a viúva, o órfão, a terra que deve descansar ser cuidada e redividida para que ninguém fique sem o seu sustento, o cego que não deve ser enganado, o pássaro que tendo ovos em seu ninho não pode ser morto. Tratava-se da inauguração de um modo de pensar que tornaria a idéia do outro além de mim, o cerne de um modo diferente de perceber o mundo. Um mundo que não me pertence e no qual sou passageiro e sócio de todos os outros viajantes. Assunto inesgotável.

Fala infinita que nos acompanhará enquanto o messias não chega para resolver as questões pendentes. Pensamento onde o filosofo Emanuel Lévinas percebeu a ética e os fundamentos da primeira filosofia. Diferente, no entanto, de outras filosofias que têm a ética como uma conseqüência possível, mas não inevitável.

Prática que transformou a espiritualidade de Israel, distanciando-a até hoje das espiritualidades que através do êxtase e da dissolução dionisíaca do eu buscam a ligação com o divino. Objetivo estranho a uma proposta que precisa da consciência para efetuar escolhas e compromissos. No êxtase há sempre uma submissão, na medida em que a consciência desaparece e a mente, dominada pelas emoções, vive a esplendorosa sensação de uma entrega imediata ao absoluto quando todas as aflições se dissolvem.

– Sheiavo, que virá! Exclamava exaltado Yeshaayahu Leibowitz, toda vez que era perguntado sobre o profeta Elias, anunciador da chegada do Messias. Virá, virá, repetia o sábio incomodado com uma idéia que lhe cheirava a idolatria. Afinal, todo Messias que chega oferecendo salvação, se revela um falso Messias, prometendo um novo mundo e uma nova lei, tentando abolir as responsabilidades do pacto da Torah aprofundado pelos sábios do Talmud. Contra a Torah prometia-se a fácil liberdade da salvação individual, onde um ato de declaração de fé libera a alma de seus pecados, enquanto, para Israel, a espiritualidade se revela na responsabilidade com o outro.

Por ser esta espiritualidade um ato de escolha, nem vozes e raios sedutores e muito menos milagres e advertências puderam substituir a decisão do aderir consciente ao pacto com a Torah.

Nunca alguém adotou uma forma de viver de acordo com a nova espiritualidade por causa de milagres, repetia Leibowitz um de seus muitos argumentos provocadores. Mesmo a geração que segundo a Torah teria presenciado fenômenos como o do mar se abrindo por intervenção divina, precisou de poucos dias para superar a tremenda impressão causada por um Deus revelado através de uma manifestação na história real das suas vidas. Dias depois de libertados, Israel buscou no bezerro feito de ouro, que eles mesmos coletaram entre si, a excitação produzida pelo rito pagão imediato e palpável. O conflito com o paganismo e a crença em espíritos persistiu para sempre como parte do embate interno do monoteísmo. É possível que a dificuldade de lidar com linguagens abstratas que não conheciam, fosse uma dificuldade que até hoje acompanha a mente humana.

Até aqui a nossa conversação ainda se encontra no campo do conhecido. No entanto, a releitura permanente transforma a Torah em uma revelação que se atualiza sempre. Foi assim que, com a ajuda dos talmudistas e de novos interpretes que se somaram à conversa infinita, aprendemos que a saída do Egito não transcorreu com homens ávidos de liberdade. Em seus comentários sobre a Torah, Leibowitz nos coloca em contato com mestres que, lidando com as mesmas passagens que conhecemos, demonstram a possibilidade de compreênde-los de uma maneira adulta e de viver a religião e seus ensinamentos sem os chauvinismos e a exaltação dos comentadores que circulam pelo judaísmo virtual da internet.

Quando os talmudistas leram na Torah que Israel não deu ouvidos a Moisés “por causa da angústia do espírito e pela dura servidão” (me kotzer ruach vê avoda kashá), eles se espantaram perguntando se, por acaso, “existe alguém que recebendo uma boa nova não se alegre?”. Ao invés de seguirem intérpretes que viam naquela atitude o resultado de uma vida sofrida capaz de transtornar a razão, eles preferiram enfrentar o texto de modo afirmativo. Por acaso não conheciam a antiga tradição prevendo que Israel seria escravizado no Egito e mais tarde libertado? Por isto está escrito: não ouviram a Moises. Não ouviram, nem deram atenção porque ele falava algo que já sabiam. Por que? Por causa da Avoda Kasha, interpretada no texto talmúdico como Avoda Zará! É preciso retornar ao texto hebreu para apreciar a interpretação. Avoda Kasha, o trabalho pesado é assim entendido por ser Avoda Zará, trabalho estranho ou idolatria, eis aí o verdadeiro significado do trabalho pesado.

Aculturados no Egito, eles não deram ouvidos a Moisés por que estavam imersos na pratica da idolatria e não por que sofriam! Continuando na leitura do texto o Talmud se apega ao uso da palavra “ordenarás” Vaietzavem, estranhando que fosse necessário dar ordens a quem recebe boas novas.

E qual a ordem?

A resposta se encontra no Talmud de Jerusalém no tratado de Rosh Hashaná no comentário sobre o toque do Chofar no ano da abolição das dívidas e dos escravos. Aqui, novamente encontramos a expressão Vaietzavem, referindo-se mais uma vez a ordenarás a Israel. Este trecho que trata da libertação do escravo hebreu, nos levará ao profeta Jeremias que viveu oitocentos anos após a saída do Egito.

Em suas advertências ele relembra ao povo que no dia da sua redenção Deus pactuou com Israel um acordo através do qual libertariam o escravo hebreu no sétimo ano de sua escravidão, mas os hebreus romperam com o pacto que, no entanto, era condicional. Ainda, enquanto escravos, Israel recebeu a primeira mitzvá que comprometia o seu futuro de homens livres em sua terra caso não guardassem a condição imposta.

Esta mitzvá indicava que a libertação foi Al Tnai – em condição e não um presente caído dos céus no colo de pessoas que precisaram receber uma ordem para saírem da escravidão em que viviam. Responsabilizar-se pela liberdade do outro, eis a condição para que o escravo possa garantir a própria liberdade e a posse da sua terra.

Ideais éticos criados por pessoas dominadas podem sofrer transformações quando elas se encontram no poder. Só nesta condição é possível saber a verdadeira afinidade entre o ideal e os seus criadores. Foi Rav Iehuda Halevi, o grande poeta medieval, quem, no século 12, recolocou esta questão em evidência na sua obra “O Kuzari”. Nela o rei Kazar ouve sábios de diferentes tradições para decidir por qual religião monoteísta deveria optar.

Em determinado momento o sábio hebreu fala ao rei Kazar sobre a vida no exílio e a humildade de Israel que não mata e nem se ocupa de guerras. De maneira surpreendente, Halevi dá ao rei Kazar a seguinte fala “Esta afirmação estaria correta se vocês aceitassem o estado de miséria em que vivem de livre vontade. No entanto, se pudessem destruir os seus inimigos seguramente o fariam”. Ou seja, se estivessem livres e vivendo na própria terra, aí sim, poderiam comprovar se era autêntico o seu espírito “humilde e sofredor”.

Em outubro de 1953 Yeshaiahu Leibowitz entra nesta longa conversação, através do seu mais importante posicionamento acerca da afinidade entre política e preceitos religiosos. Dias antes, em resposta a inúmeros atos terroristas realizados por fedaim vindos de um vilarejo jordaniano chamado Kivia, um destacamento do exército de Israel liderado pelo então oficial Ariel Sharon, chegou à aldeia aparentemente deserta e implodiu mais de quarenta casas como ato de retaliação e advertência.

No dia seguinte, descobriram sessenta e nove corpos de crianças e velhos que não conseguiram fugir e se escondiam nas casas. Leibowitz, homem religioso e reconhecido por sua militância a favor da Torah, tendo perdido um filho na guerra de independência, não hesita em entrar no debate milenar sempre repetindo que a sua preocupação não com a ética, um conceito ateu, e sim com os preceitos da religião.

O seu célebre artigo “Leahar Kivia” (Depois de Kivia), tem inicio com uma afirmação que nos soa familiar: “Kivia e tudo que está envolvido neste fato fazem parte da enorme experiência a que estamos sendo submetidos após a independência nacional, a criação de um Estado, de uma força instituída, enquanto nação, sociedade e cultura que, durante gerações, pode usufruir de uma vida espiritual e cultural no exílio, sendo governado por outros povos e sem alternativa pessoal, vivendo por gerações, do ponto de vista da moral e da consciência, em uma encubadeira artificial onde pudemos desenvolver valores e conteúdos de sabedoria que não foram expostos à prova da realidade” A condição da prova de realidade atravessa um tempo onde não existe nem antes e nem depois.

O mesmo argumento do Kuzari/Halevi, a mesma preocupação dos talmudistas diante dos primeiros libertos do Egito, a mesma advertência do profeta Jeremias alcança nos dias atuais o nosso pensamento nos levando a tomar parte da conversação acerca da exigente liberdade proposta e aceita por Israel.

Durante o Shabat do Pessach nas sinagogas costuma-se ler o Cântico dos Cânticos. Nele existe uma passagem que descreve o ventre da amada e seu umbigo. “Teu umbigo é uma taça redonda, onde nunca falta o vinho misturado. Teu ventre é um monte de trigo cercado por uma sebe de rosas.” Este versículo é retomado no Talmud como sendo uma metáfora do tribunal do Sinédrio.

No corpo da amada viam Israel e no seu umbigo a Jerusalém terrestre, centro do universo, de onde os sábios legislavam para o mundo, distribuindo a sua sabedoria, como o vinho que não falta jamais. Sentados em semi-circulo, eles se viam todo o tempo. Num lugar assim, ninguém consegue esconder-se, nem vender o seu voto sem ser percebido ou desligar-se de sua responsabilidade com a viúva, o órfão, os desprotegidos.

No Talmud os ensinamentos do Sinédrio foram comparados ao monte de feno protegido pela cerca de rosas que aparece no cântico. Já imaginaram proteger algo com uma cerca de rosas? Estranha maneira de dizer que as leis da Torah não podem impor-se por si mesmas. Nem raios e nem trovões podem impor o que não se quer. O cercado-tentação que as protege é frágil e mesmo que tenha espinhos, é só pular a cerca e saltar por cima dos ensinamentos que protegem a convivência social. Além disso, as próprias rosas são tão sedutoras que dá vontade de arrancá-las.

Através dessa metáfora, a lei e o pacto se revelam frágeis e só a decisão e o comprometimento com os princípios da Torah podem garanti-lo. Mesmo não sendo o meu próximo o meu semelhante, pois ninguém neste mundo pode ser o meu semelhante, ele é meu vizinho com quem devo conviver e por quem sou responsável. Para praticar esta exigente mudança de posição fui eleito entre as nações.

Não há milagres, somente a difícil liberdade de uma religião feita para adultos com vontade de praticá-la sem esperar recompensas além de uma vida protegida por um cercado de rosas. Mas, nem todos querem participar da conversação celebrada na noite do Pessach quando festejamos a exigente liberdade de pertencer a um Israel aberto a todo aquele que se disponha a ultrapassar a simplicidade espiritual de uma esperança infantil.

Deferências bibliográficas.

EMANUEL LÉVINAS

  • Mas Allá Del Versículo
  • Difficult Freedom
  • Quatro Leituras Talmudicas
  • Algunas reflexiones sobre la filosofia del hitlerismo.

YESHAYAHU LEIBOWITZ

  • Sichot Al haguei Israel Umoadaiv
  • Sheva Shanim shel Sichot Al Parashat Hashavua

PAULO BLANK, membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA é psicanalista e escritor. Doutor em Comunicação e Cultura, dedica-se ao estudo do pensamento judaico

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