2024 precisará de pacifistas radicais para dar fim a espiral de guerras
[ por Jamil Chade | UOL | 31/12/2023 ]
Em abril de 1955, o físico Albert Einstein e o filósofo Bertrand Russell viviam uma angústia profunda. A Segunda Guerra Mundial havia terminado dez anos antes. Mas a proliferação de armas nucleares abriu uma fase inédita para a humanidade: a da possibilidade de destruição total.
Aqueles dois gênios decidiram reunir outros cientistas e publicaram um manifesto pela paz. Nele, a pergunta era simples:
“Devemos acabar com a raça humana; ou a humanidade deve renunciar à guerra?”…
Décadas depois, a pergunta parece mais pertinente do que nunca.
Como repórter, sou obrigado a me ater aos fatos. E os fatos que nos esperam em 2024 são terríveis. Duas guerras que abalam as estruturas internacionais continuarão a existir, enquanto as estruturas internacionais fracassam em dar respostas.
2023 deixa como legado um gasto recorde em armas e um número assustador de ogivas nucleares. Poucas vezes tantos civis morreram num só ano. Nunca, desde 1945, o mundo contou com tantos refugiados e deslocados como agora.
A guerra contra o planeta também passou a ser evidente e não dará trégua a partir de 1 de janeiro. Os últimos nove anos foram os mais quentes já registrados e 2024 não deve escapar dessa tendência.
A paz, portanto, se impõe. Não como uma opção. Mas como único caminho para uma sobrevivência…
Certamente serei acusado de idealista ao falar de paz a partir do ponto de vista de meus privilégios evidentes. Afinal, quem vai convencer as potências, os grandes poluidores do planeta, o crime organizado, os charlatães e tantos outros a optar pela paz? Quem convencerá uma família de um israelense morto pelo Hamas a não buscar vingança? Quem convencerá uma criança palestina que perdeu todos seus irmãos a optar pelo caminho da paz?
Não estou falando da pacificação imposta pelos vencedores. Não estou falando do restabelecimento do status quo, repleto de opressão. Estou falando de uma paz desenhada com base em direitos, justiça e na promessa de um futuro.
A paz não é a ausência da guerra. O projeto da paz é a construção de um mundo no qual, com a justiça de olhos bem abertos e pés forjados de dignidade, a guerra passa a ser implausível.
Desconfio sempre daqueles que, em seu pessimismo arrogante, temem que a guerra é parte da natureza humana. Estudos recentes têm mostrado que é a colaboração, inclusive entre espécies, que permite a sobrevivência numa floresta. Há dois bilhões de anos, a vida passou a ser possível quando células aprenderam a caminhar juntas. Há 12 mil anos, a civilização passou a existir quando comunidades emergiram.
No egocentrismo de uma era de redes sociais, vitrines permanentes, do império da imagem e de um sistema econômico cruel, nossa geração poderia se inspirar no princípio traduzido do Ubuntu pelo filósofo africano J. S. Mbiti:
“EU SOU PORQUE NÓS SOMOS”
Incompatível com a construção do individualismo que marca nossos padrões? Certamente. Mas eu não abrirei mão de minhas utopias em 2024!
Só a renúncia da guerra e o reconhecimento da dignidade do outro permitirão que tenhamos recursos suficientes para dar respostas à pobreza, à fome e as mudanças climáticas. Esses sim os grandes desafios existenciais do século 21.
A reconstrução de uma paz duradoura baseada num sentimento de fé mútua exigirá de nós a busca por resgatar o projeto de construção do conceito de Humanidade. Nos últimos anos, essa noção foi enterrada entre os escombros das bombas e do vírus, do nacionalismo e do negacionismo. Ela foi vítima da destruição promovida pela ganância e pela obscenidade do desprezo.
Recuso as medalhas no caixão como compensações pelo assassinato de utopias íntimas.
Rejeito a bandeira solenemente entregue a uma mãe órfã do sonho de ver seu filho crescer.
Não há tempo a perder nessa longa obra do resgate da paz que o destino encomendou para nossa geração.
Tenho pressa.
Feliz Ano Novo!
Jamil
Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, o jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparência Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Vivendo na Suíça desde o ano 2000, Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se.