Genocídio em GAZA ?


[ por DANIEL GOLOVATY, historiador e psicanalista, é membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA | www.pazagora.org | Revista ROSA | 13/11/2023 ]

Está circulando pelas redes um documento denominado “Manifesto de intelectuais, artistas e acadêmicos brasileiros pelo fim do genocídio e pela libertação imediata do povo palestino — Petição para o Governo do Brasil”1 (doravante, ‘petição’).

Em tal petição, os intelectuais e artistas que a assinam alegam estar se desenrolando atualmente em Gaza, sob os olhos do mundo, nada menos do que “um dos mais brutais genocídios que a humanidade já viu”. Eu, como tenho formação em História e me interesso particularmente pelo conflito israelense-palestino (tenho familiares próximos que vivem em Israel e há mais de 20 anos participo de movimentos judaicos contra a Ocupação israelense dos territórios palestinos e por uma paz justa entre ambos os povos) entrei imediatamente em estado de alarme. Será que tudo que eu estou acompanhando sobre esta guerra está errado? Será que esses intelectuais e artistas teriam informações que a “grande mídia” estaria ocultando? Mas, quando li o manifesto até o final, percebi que não é nada disso. Como procurarei demonstrar:

  1. trata-se aqui de uma acusação falsa;
  2. trata-se de uma falsidade baseada em uma posição hipócrita/cínica de duplo padrão moral;
  3. trata-se de uma acusação movida, em grande parte, por uma falsa solidariedade aos palestinos.

A acusação

Quando o conceito de genocídio foi inventado, ainda antes do final da Segunda Guerra Mundial, pelo jurista judeu-polonês Raphael Lemkin, ele visava dar nome ao que acreditava ser crimes inéditos, que estavam sendo perpetrados pela Alemanha nazista em sua ocupação da Polônia, bem como no território soviético, a partir da Operação Barbarossa, em junho de 1941. Quais suas características distintivas? Intenção de extermínio, total ou parcial, de um povo. Intenção esta, necessariamente, seguida de uma prática sistemática de extermínio. Prática sistemática esta que, por sua vez, produziria o extermínio propriamente dito em sua amplitude.

Antes de comentar o atual ataque (na verdade, um contra-ataque) de Israel em Gaza, é preciso fazer algumas considerações sobre a acusação de que Israel estaria cometendo um genocídio contra o povo palestino. Esta acusação não é nova. Pessoalmente, eu a ouço, ao menos, desde a minha adolescência, quando estourou a Primeira Intifada (1987). Ela entrou em “latência” durante o período dos acordos de Oslo, para retornar com toda a força após o fracasso das negociações de Paz em Camp David, que foi seguido pela Segunda Intifada (2000). Ora, em relação a um povo que estaria sofrendo um processo de genocídio por tantas décadas, ao menos uma evidência teria que ser constatada: sua população estaria sendo reduzida em termos absolutos. Mas esse não é o caso da população palestina, que sempre apresentou um grande crescimento demográfico. Só essa constatação trivial já basta para refutar, ao menos até aqui, a acusação de genocídio promovida por Israel — uma acusação que atravessa as décadas.

Agora, analisemos o caso da atual ação militar israelense em Gaza. Segundo os critérios mencionados acima, o que teria que estar acontecendo para que se pudesse constatar a prática de genocídio por Israel? Tentarei responder a esta pergunta. Para ser um genocídio, a aviação israelense teria que estar atacando Gaza com todo o seu poder destrutivo, usando-o para matar indiscriminadamente e, também, para maximizar as mortes de civis. Além disso, esses bombardeios teriam que estar orientados por um programa de exterminar o povo palestino. Na história do século XX, temos alguns exemplos de bombardeios indiscriminados, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial (Stalingrado, Leningrado, Dresden, Tóquio). Nenhum destes bombardeios, contudo, é considerado, isoladamente, genocídio.2 Foram, não há dúvida, grandes crimes de guerra. Ao leitor que tiver interesse em constatar, para efeito de comparação, o número de mortes que eles causaram, relativo ao seu tempo de duração, convido a realizar sua própria pesquisa.

O que vemos em Gaza, uma das regiões mais densamente povoadas do mundo, após um mês de intensos e ininterruptos bombardeios israelenses? Cerca de 10 mil mortos.3 Se Israel estivesse bombardeando Gaza de forma totalmente indiscriminada, é evidente que o número de mortos a essa altura deveria ser, ao menos, dez vezes maior. Provavelmente, muito mais. Além disso — e eis aqui um ponto muito importante — é necessário precisar que não se pode simplesmente culpar Israel por todos os civis palestinos mortos. Cerca de 20% a 30% dos foguetes do Hamás falham e caem dentro de Gaza, ferindo e matando muita gente. O Hamás também usa como tática de guerra misturar seus combatentes e suas bases de operação com a população civil de Gaza, o que o torna culpado pelas mortes de grande quantidade de civis palestinos, pois esse é um procedimento considerado crime de guerra.

Assim, sobre os mortos de Gaza, acredito que podemos constatar, seguramente, até este momento, três coisas: 1) uma parte deles se deve a crimes de guerra de Israel; 2) uma parte deles se deve a crimes de guerra do Hamás; 3) uma parte deles é constituída por mortes não intencionais de civis (mal chamadas de “danos colaterais”), não sendo, portanto, crimes de guerra de nenhuma das partes beligerantes. Estas últimas são decorrentes do horror da guerra — uma guerra que foi contratada pelo Hamás, o qual já havia, de antemão, “precificado” as mortes de civis palestinos, seus mártires involuntários.

Assim, sobre Gaza, a conclusão que se impõe até o momento é que Israel comete crimes de guerra, mas não bombardeia sistematicamente de forma indiscriminada. Com certeza, “horror” é a palavra que mais bem descreve a vida dos habitantes de Gaza neste momento. A crise humanitária é indubitável e é preciso, sim, mobilizar a opinião pública mundial para que cobre medidas urgentes para proteger os civis palestinos. Mas também é preciso que, ao falar sobre o tema, se tenha alguma prudência e preocupação real com a análise dos fatos. Sobretudo por parte daqueles cuja ocupação deveria ser o trabalho de pensar e de fazer pensar.

O Estado de Israel, certamente, é culpado por muitos crimes. O mais grave deles é sua política colonialista na Cisjordânia. Mas não é culpado de genocídio. Muito menos de “um dos mais brutais genocídios que a humanidade já viu”.

Duplo padrão moral

Uma vez demonstrada a mentira da acusação de genocídio, bem como exposta a facilidade com que ela é refutada, impõe-se a pergunta: por que pessoas, em tese, tão inteligentes, aceitam com tanta facilidade subscrever uma falsa acusação tão grave como essa contra Israel? Há tempo venho alertando para o fato de que há um deslocamento, que aliás não é novo, de todos os significantes do antissemitismo clássico para o antissionismo. São eles: “superpoder”, “conspiração”, “provocação de guerras”, “dominação mundial”, “dominação da mídia”, “perversidade”, “perfídia”, “artificialidade nacional/racial”.4 Não se pode esquecer também que um dos temas do antissemitismo clássico é a atribuição, aos judeus, de uma perversidade ímpar e da prática de crimes monstruosos, sobretudo ligados ao assassinato intencional e premeditado de crianças.5 Como Adorno e Horkheimer demonstraram de forma brilhante em sua Dialética do esclarecimento, trata-se aí do mecanismo projetivo, chamado por estes autores de “falsa projeção”.

Como muitas reações ao massacre de 7 de outubro demonstraram aos mais incrédulos, os elementos do antissemitismo de Adorno e Horkheimer continuam extremamente atuais. Inclusive, nessa mesma obra, Adorno e Horkheimer já falavam do antissemitismo na esquerda.6 Só não previram, creio, a dimensão que esse fenômeno poderia tomar e nem o fato de que ele assumiria a forma de antissionismo, isto é, de um antissemitismo que não se assume enquanto tal.

Este antissionismo, como demonstrei em outro lugar, é típico do discurso de certa esquerda, dita “antiimperialista”, uma esquerda que transformou seu antiimperialismo em uma verdadeira cosmovisão de tipo maniqueísta e — como todo maniqueísmo — calcada no ódio ao Inimigo absoluto.7 Eu devo dizer que conheço alguns desses professores que assinam essa petição e sei que eles são de esquerda, mas não pertencem a este tipo de esquerda. Também não me passa pela cabeça que todos os signatários da petição sejam empedernidos antissemitas. Mas não é preciso ser antissemita para possuir preconceitos antissemitas — o que se tem chamado de “antissemitismo estrutural”8 ou “inconsciente coletivo antijudaico”.9 E, num momento grave como este, não é difícil que tais preconceitos levem pessoas inteligentes e corretas a assinar documentos como o que estou agora analisando — um documento típico dessa esquerda antissionista e de seu antissemitismo, o qual agora se apresenta de forma mais despudorada. O que segue abaixo, portanto, é uma análise das características dessa esquerda antissionista e de como elas aparecem na forma como apresenta o conflito israelense-palestino. Muitas dessas características estão no texto da petição, mas faço o alerta aqui de que elas não devem ser automaticamente atribuídas a todos os seus assinantes.

Uma das características da esquerda antissionista é que seus ataques a Israel possuem um cunho fortemente moral. Com efeito, tais “antiimperialistas” costumam assumir a posição de arautos dos direitos humanos, do direito internacional, do princípio da autodeterminação dos povos, enfim, da justiça, da liberdade e da fraternidade universais. Entretanto, quando nos atentamos para suas posições ideológicas, bem como para seus posicionamentos concretos relativos aos conflitos internacionais, nos deparamos com o fato de que nos meios desse tipo de esquerda observa-se um insólito revival stalinista e também uma grande simpatia pela figura de Vladimir Putin. Não deveria ser preciso lembrar de que Stálin — que era antissemita —, além de ter sido um dos piores déspotas da história, foi também um grande opressor e massacrador de povos, fato que não impediu seus adeptos de conferir-lhe o honorável título de “guia genial”. E se Stálin foi o “guia genial dos povos”, Putin bem que poderia ser cognominado de “O Nivelador”, pois, de fato, “nivelou” três grandes cidades: Grozni, Alepo, Mariupol. Além disso, poderia ser também uma boa ideia conferir ao autocrata russo o título de “campeão do Sul Global”, sobretudo por usar um exército de mercenários para fazer política neocolonial na África. Também o fascínio pela ditadura chinesa é algo extremamente disseminado nessa esquerda. E é preciso lembrar que o regime chinês também oprime povos, como o uigur e o povo do Tibet.

Mas não é só isso. Um fenômeno muito presente nessa esquerda, dita antiimperialista, é a simpatia, quando não o apoio ferrenho, ao chamado “eixo da resistência”, uma coligação de países e grupos paramilitares do Oriente Médio formada por: Irã, Síria, Hezbollah, milícias Houti do Yemen, Hamás, Jihad Islâmica e, recentemente, também o Afeganistão do Taleban. O que todos esses regimes e grupos têm em comum? Três coisas: o fundamentalismo islâmico (com a única exceção do regime de Assad, na Síria), um antissemitismo radical, que está na base do seu esforço conjunto para destruir Israel e, por fim, a oposição às políticas americanas na região, isto é, o alegado “antiimperialismo”.10

Portanto, o que salta aos olhos diante desses “antiimperialistas” de esquerda é a desconcertante contradição entre, de um lado, sua autopercepção como defensores dos mais altos valores morais e, de outro, seu apoio a alguns dos regimes e grupos mais despóticos e assassinos, tanto do passado quanto do presente. Em psicanálise, esse fenômeno é chamado de “dissociação”.

Aqui seria interessante um breve comentário de um texto publicado no jornal Folha de S.Paulo, com o título “Ter coragem para evitar o pior”. Esse texto aparece assinado por Arlene Clemesha, signatária da referida petição e também professora de História Árabe da USP, cujo apoio à “luta armada” e “resistente” do Hamás é de conhecimento público. Com ela, assinaram o texto também outros três signatários da petição, todos igualmente professores da Universidade de São Paulo. O artigo começa assim: “Enquanto assistimos horrorizados à intolerável perda de milhares de vidas e ao sofrimento do povo palestino”.

Então, leitor, sentiu falta de alguma coisa? Não, você não está enganado. Se duvidar, acesse o artigo e o leia na íntegra. Nele não há nenhuma alusão ao Hamás, nem tampouco ao massacre perpetrado por este em 7 de outubro, fato, aliás, que, para começo de conversa, foi o responsável por iniciar esta guerra. Aparentemente, para os autores do texto, apenas o sofrimento palestino é que tem valor. Da mesma forma, neste conflito, ao que parece, para eles são apenas as vidas palestinas que, quando perdidas, são dignas de causar luto ou consternação. Um verdadeiro tapa na cara dos judeus brasileiros, bem como de todos aqueles capazes de se indignar com a iniquidade de textos como esse.

Também não deixa de ser sintomático que o texto em questão termine com uma citação de José Saramago, esse escritor humanista que, por quase toda a sua vida, empenhou seu apoio a regimes totalitários de esquerda e, por óbvio, também à causa palestina. Quanto a essa causa, o Nobel da língua portuguesa sempre fez questão de deixar muito claro que seu problema não era apenas com o Estado de Israel, mas com o próprio povo judeu:

… contaminados (os judeus) pela monstruosa e enraizada “certeza” de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores passados e dos medos de hoje, todas as ações próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista; educados e treinados na ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que padeceram no Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se tratasse de uma bandeira.11

E ainda:

“Aquilo que Israel está fazendo, do meu ponto de vista, é perder o capital da simpatia, da admiração e de respeito que o povo judeu merecia pelos sofrimentos porque passou. Já não são dignos desse capital. Deixaram de ser dignos desse capital”.12

Como vemos, vários dos temas do antissemitismo clássico estão aí: “povo eleito”, “racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista”, caráter “monstruoso” dos judeus, o “capital dos judeus” (aqui não na forma-dinheiro)” — ao que se acrescenta essa obscenidade mais contemporânea do discurso antissemita, presente sobretudo no antissemitismo de esquerda: a de usar Israel para esfregar o tempo todo o Holocausto na cara dos judeus, alegando, ato contínuo, que são “eles” que fazem isso com os outros. (Voltarei a este tema, central para o entendimento da petição).

O texto da petição, como já mencionei, classifica a ação militar israelense em Gaza, com seus atuais 10 mil mortos, como um dos “mais brutais genocídios que a humanidade já viu”. Ok, exagero retórico, diria o leitor compreensivo.13 Mas o que ocorre em Gaza deve ser, ao menos, o maior massacre do século XXI. Certo? Errado. Bastaria que os signatários da petição dessem um google para descobrirem eventos como os massacres de Darfur, perpetrado no Sudão por milícias árabe-islâmicas contra povos africanos não árabes (mais de 300 mil mortos); a guerra civil do Congo (5,4 milhões de mortos), a recente guerra civil da Etiópia, onde morreram cerca de 600 mil pessoas (civis em sua grande maioria). E, ainda na África, mais exatamente no Sudão do Sul, no momento em que escrevo está ocorrendo uma limpeza étnica, continuação de uma guerra civil que já matou mais de 200 mil pessoas.

Mesmo no Oriente Médio, o conflito israelense-palestino está longe de ser o mais violento. Com efeito, a guerra civil na Síria já deixou cerca de 600 mil mortos (mais de 300 mil civis, a grande maioria assassinada pelo regime de Bashar Al-Asad, apoiado pela Rússia, pelo Hezbollah e pelo Irã). Também a atual guerra civil no Yemen já deixou cerca de 300 mil mortos. Trata-se aqui de uma espécie de guerra proxi entre duas grandes potências da região: Arábia Saudita e Irã. Acontece que o Brasil é um exportador de armas para a Arábia Saudita, inclusive bombas cluster (de fragmentação), proibidas por convenções internacionais. Agora, bem, o texto da petição exige que o Brasil rompa todos aos acordos que tem na área de segurança com Israel. Pergunta ao leitor: você conhece alguma petição do tipo, feita pela esquerda brasileira, para que o Brasil pare de exportar armas para a Arábia Saudita?

Recentemente, o Irã entrou para os Brics. Esse país é o grande articulador do já mencionado “Eixo da Resistência”. Está envolvido até o pescoço tanto na guerra civil síria quanto na guerra civil yemenita (as quais, somadas, já produziram quase 1 milhão de mortos). Também há indícios fortes de que tenha organizado, junto com o Hezbollah, um atentado terrorista na Argentina, nossa vizinha, contra uma associação civil de judeus argentinos, a AMIA, em 1994, a qual deixou 85 mortos e 300 feridos. Recentemente, o governo brasileiro permitiu, ao contrário de outros países sul-americanos, que um navio de guerra iraniano aportasse em nosso país. Pergunta aos leitores e leitoras: você conhece alguma petição ao governo Lula, por parte de partidos de esquerda, para que não aceitasse o Irã nos Brics? Ou para que não permitisse o atracamento, em nossos portos, de navios de guerra deste país?

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, deputados do pt saíram publicamente em defesa de Putin. Alguém conhece algum manifesto de repúdio da esquerda brasileira a esses parlamentares? Em plena guerra imperial de Putin contra a Ucrânia, o pt mandou altos representantes para a Rússia, com o propósito de participarem de um seminário sobre “neocolonialismo ocidental”, organizado pelo partido do governo russo. Algum manifesto da esquerda denunciando o pt? Alguma vez Lula, Gleisi Hoffmann ou Celso Amorim chamaram Putin de “genocida”, por ter arrasado a cidade de Mariuopol (e também Grozni e Alepo), bem como por outros comprovados crimes de guerra?

Mesmo aqui no Brasil, durante o governo Bolsonaro, jornais noticiaram que os yanomami estavam tendo suas terras invadidas e suas fontes de água envenenadas, a tal ponto que corriam risco de genocídio. Por que não vimos multidões nas ruas? Onde estavam as petições da esquerda “decolonial”, denunciando genocídio?

Qual seria a causa desse chocante duplo padrão moral? Seria um amor especial da esquerda brasileira pelo povo palestino?

Falsos amigos

Nada mais enganoso do que a crença de que certa esquerda brasileira (também a mundial) morre de amores pelo povo palestino. Para o observador atento, essa afirmação não deveria ter nada de surpreendente.

Senão vejamos:

1) O apoio dessa esquerda ao Hamás

A esta altura dos acontecimentos, nada deveria estar mais claro do que o fato de que o surgimento e o fortalecimento do Hamás foi a maior tragédia que poderia ter acontecido para a causa palestina. Com efeito, o Hamás é tão avesso quanto à extrema-direita israelense à criação de um Estado Palestino, coexistindo em paz com o Estado de Israel. Pois, caso isso acontecesse, a confusão que ele promove — e de onde retira a sua força — entre a legítima resistência palestina e o programa criminoso de destruir Israel simplesmente desapareceria.

A fundação de um Estado Palestino ao lado de Israel seria, a fortiori, o reconhecimento definitivo, por parte deste povo, da legitimidade de Israel. E vice-versa. Ora, para o Hamás isso é insuportável, pois seria a negação da sua razão mesma de existir. Não é por outro motivo que, assim que começou a se desenvolver o processo de paz iniciado em Oslo, o Hamás encetou uma violenta campanha terrorista e começou a explodir bombas em ônibus e em locais públicos dentro de Israel. Esse foi o sinal para que a extrema-direita israelense iniciasse sua campanha virulenta contra os acordos de Olso e saísse às ruas, acusando Rabin e Peres de traidores, pois teriam trazido o inimigo para dentro da Terra de Israel.

Sem o terrorismo do Hamás, seria muito mais difícil para a extrema-direita israelense incitar o clima de confusão, medo e raiva que culminou no assassinato de Rabin. Igualmente, depois do fracasso da cúpula de paz de Camp David (2000), o Hamás aproveitou a explosão da Segunda Intifada para, novamente, lançar uma campanha de terror contra Israel. A Primeira Intifada (1987) se caracterizou por uma revolta popular com o uso de pouca violência e nenhuma violência ilegítima (terrorismo).

Seus líderes foram hábeis em, rapidamente, passar para os israelenses a mensagem de que queriam um Estado palestino ao lado de Israel — e não no lugar de Israel. Isso fez com que ela fosse vista por boa parte do público israelense como um autêntico movimento de libertação nacional. E, com isso, moveu a política israelense para a esquerda, possibilitando o início do processo de paz. Já a Segunda Intifada, iniciada após a recusa, por Arafat, de uma proposta de paz e fortemente marcada pelo terrorismo do Hamás, produziu o efeito oposto. Junto com os corpos de civis israelenses, o Hamás destroçou também a esquerda de Israel, que, desde então, nunca mais se recuperou. Com Ariel Sharon, a direita israelense assumiu o poder e não saiu dele até hoje. E é preciso dizer que uma das políticas mais consistentes e continuadas dessa direita tem sido a de favorecer o Hamás, em detrimento da Autoridade Nacional Palestina.

O Hamás é também um perpetrador de crimes em série contra o povo palestino. Esse grupo sempre soube que, com seus ataques terroristas, produziria represálias israelenses, as quais terminariam com mortes de civis. As mortes de civis palestinos, por sua vez, fornecem ao Hamás tanto o material para sua propaganda contra Israel quanto — por meio do ódio e da revolta que causam — mais voluntários para serem recrutados por esta organização. E assim o ciclo se fecha.

Essa política deliberada de martirizar o povo palestino para os objetivos de sua jihad ganhou uma dimensão muito maior quando o Hamás assumiu o poder em Gaza. A partir daí, o povo de Gaza passou a viver sob a tirania islamista do Hamás, que transformou mais de 2 milhões de pessoas em shahids involuntários, a serem periodicamente sacrificados em suas guerras contra Israel. E isto é dito abertamente por seus líderes. Há dias atrás, Ismail Haniye declarou, de seu confortável Hotel no Qatar: “as mulheres, as crianças, os idosos: nós precisamos deste sangue”. E também Ghazi Hamad, o porta-voz da organização: “Nós fizemos o 7 de outubro e vamos fazer muitos outros, até que Israel seja aniquilado. Nós somos as vítimas e podemos fazer qualquer coisa”. Assim, ao assumirem a defesa do Hamás, o que seus “amigos da esquerda mundial” (Kaled Mashal) fazem não é senão desempenhar exatamente o papel que esse grupo terrorista desenhou para eles, tornando-se, portanto, seus cúmplices no martírio do povo que dizem defender.

Também a omissão da responsabilidade do Hamás no bloqueio de Gaza é mais um favor que os amigos esquerdistas do grupo fazem para sua propaganda contra Israel, novamente em detrimento dos interesses dos palestinos de Gaza. Israel ocupou Gaza desde 1967. Com os acordos de Oslo, passou seu governo para a Autoridade Nacional Palestina. Em 2005, foram removidos de Gaza os assentamentos judaicos e a faixa foi totalmente desocupada por Israel. Em 2007, Israel iniciou o bloqueio daquela região, que perdura até hoje. Mas o que ocorreu em 2007? O Hamás deu um golpe militar e exterminou toda a liderança do Fatah em Gaza. Como o Hamás, obviamente, não reconhecia os acordos de segurança estipulados em Oslo, Israel, então, declarou Gaza território hostil, iniciando seu bloqueio. Caso não houvesse o bloqueio, o Hamás teria recebido do Irã milhares de mísseis, muito mais potentes e precisos do que os que ele possui atualmente. Provavelmente, várias cidades israelenses estariam hoje em escombros.

Além disso, o Hamás nunca priorizou utilizar os recursos recebidos de seus financiadores externos para diminuir a penúria do povo de Gaza. A prioridade do governo desse grupo sempre foi incrementar sua capacidade militar para suas guerras contra Israel. Não pretendo aqui, de forma alguma, isentar Israel de sua parte da culpa neste bloqueio, que foi marcado por muitos abusos, por parte de sucessivos governos israelenses. Além do mais, nunca houve por parte de Natanyahu qualquer intenção de mudar o status quo de uma Gaza bloqueada e pobre sob o governo do Hamás. Quero salientar apenas o fato que também o Hamás tem sua parte de responsabilidade nesse bloqueio e isso deveria ser reconhecido e denunciado por aqueles que dizem defender o povo palestino.

2) A omissão sistemática da responsabilidade dos países árabes no infortúnio do povo palestino

Mais chocante do que a tentativa de supressão da responsabilidade do Hamás no bloqueio de Gaza é, sem dúvida, a inacreditável omissão sistemática que ocorre nos textos dessa esquerda antissionista da responsabilidade do Egito nesse bloqueio. De fato, aqueles que leem apenas textos como o dessa petição acabam ficando com a estranha impressão de que o Sul de Gaza faz fronteira com a borda da Terra plana! Mas quem conhece a narrativa antissionista do conflito israelense-palestino percebe logo que esse fato insólito se enquadra num padrão, qual seja, o da culpabilização exclusiva de Israel.

Um padrão que começa com e exclusão da responsabilidade das lideranças árabes pelo processo que culminou na Nakba; passa pelo apagamento da pilhagem e expulsão em massa dos judeus dos países árabes; continua com a denúncia seletiva do apartheid de palestinos — visto que a condição de apartheid que as comunidades palestinas, há gerações, vivem no Líbano também é sempre ocultada — e chega até hoje, com a tolerância à tirania que o Hamás exerce sobre o povo de Gaza, assim como a escandalosa omissão do massacre do Hamás como o evento responsável por dar início a essa guerra.

Como se sabe, a curto prazo, a chance de um cessar fogo definitivo nesta guerra é muito pequena. Esse fato pode implicar num aumento ainda muito maior da mortalidade de civis palestinos. Pois, mesmo que Israel atenda às pressões para cingir suas ações militares estritamente às leis de guerra, numa guerra urbana como esta, sobretudo numa região tão densamente povoada quanto Gaza, os chamados danos colaterais tendem a ser muito altos. Ainda mais se levamos em conta a tática de escudos humanos utilizada pelo Hamás. Isto me faz retomar a questão do “esquecimento” da fronteira de Gaza com o Egito, pois acredito que a forma mais prática e realista de salvar as vidas de civis palestinos neste momento é pressionar não apenas o governo do Egito, mas toda a comunidade internacional para que lhes garanta urgentemente refúgio seguro até o final da guerra. Isso implicaria, simultaneamente, exigir garantias de Israel.14 A pergunta que não quer calar: por que tal exigência está ausente de petições como essa? Por que, aliás, ela está ausente, ao que eu saiba, de todas as manifestações pró-palestinas ao redor do mundo?

São os judeus, estúpido!

Os negacionistas de direita afirmam que o Holocausto é uma mentira judaica. Já os negacionistas de esquerda não costumam negar que o Holocausto existiu. Seu procedimento negador é outro: atribuir aos judeus (“sionistas”) o rótulo de nazistas, traçando uma equivalência entre Israel e a Alemanha do Terceiro Reich. Ora, sabemos que na magia — e também na neurose obsessiva — o mecanismo da repetição é utilizado como um procedimento de anulação. Assim, atribuir um “novo Holocausto” aos judeus, contra os palestinos — estes ocupando o lugar de “novos judeus” — constitui uma forma de anulá-lo e, portanto, de desrealizar a sua existência, na medida em que reconhecê-la implicaria também reconhecer aquilo que o causou — o ódio antijudaico e sua inerente pulsão genocida, da qual o negador de esquerda também participa, embora nem sempre possa admiti-lo.

Um caso interessante para entender isso é o de Roger Garaudy. Intelectual francês que foi muito ligado ao PCF e, posteriormente, convertido ao islamismo, Garaudy, em 1995, publicou um livro chamado Os mitos fundacionais do Estado de Israel, no qual afirma duas coisas: 1) O Holocausto nunca existiu, sendo uma “invenção sionista”; 2) a inspiração política do movimento sionista é o nazismo e, portanto, o Estado de Israel constitui uma nova figura histórica da Alemanha nazista.

Aqui, temos uma junção dos procedimentos dos dois negacionismos. O crime mais monstruoso que singulariza a Alemanha nazista, a saber, o programa, levado parcialmente a cabo, de exterminar um povo inteiro da face da Terra,15 seria uma mentira. E, ao mesmo tempo, Israel, o Estado fundado pelo povo judeu como uma resposta ao antissemitismo global, seria uma monstruosidade, na medida em que não passaria de uma repetição história… da Alemanha nazista!

O que está em operação aqui, claramente, é um tipo de lógica onírica, onde inexiste o princípio da não contradição. O livro de Garaudy, que hoje é disponibilizado em vários sites da extrema-esquerda internacional, é interessante, na medida em que corrobora de um modo singularmente cristalino o que está realmente em jogo no infame procedimento de nazificar o movimento de libertação nacional do povo judeu e o Estado de Israel.

Agora se torna inteiramente inteligível aquela sentença estapafúrdia da petição em questão, a que acusa Israel de estar cometendo em Gaza neste momento um dos “mais brutais genocídios que a humanidade já viu”. E é no texto da própria petição que se pode encontrar a confirmação da tese aqui apresentada, na parte em que este afirma, nada menos, que os habitantes de Gaza seriam “prisioneiros de um gueto que hoje virou, definitivamente, um campo de extermínio”.

Um conflito inflado

O conflito israelense-palestino nunca foi apenas um conflito local. Desde o seu início, ele já possuía uma dimensão também regional. E, poucos anos após a criação do Estado de Israel, o conflito adquiriu uma terceira dimensão, a saber, a internacional. Hoje, ele ainda mantém essas três dimensões e, como vemos, está mais internacionalizado do que nunca. Portanto, trata-se aqui de um conflito inflado, que possui uma dimensão vicária, característica esta que sempre dificultou a sua resolução. Recentemente, foi publicado um artigo cujo argumento central é o de que este conflito não seria complexo. Que sua alegada complexidade não passaria de uma mistificação.16 Como vimos, essa ideia reaparece no artigo publicado na Folha de S. Paulo citado acima. Nada mais falso. Se ainda fosse preciso uma prova a mais da complexidade desse conflito, podemos encontrá-la no fato de alguns intelectuais importantes da esquerda brasileira assinarem um texto indecoroso como o dessa petição.


A única solução aceitável para o conflito israelense-palestino passa pela criação de um Estado Palestino viável, ao lado do Estado de Israel. Uma condição indispensável para que isso ocorra é que, assim como aconteceu na Primeira Intifada, a mensagem da resistência palestina para os israelenses seja a de coexistência pacífica, para que democratas judeus e palestinos possam se unir.

Tal união também seria fundamental nas respectivas diásporas. A mensagem de aniquilação dos judeus israelenses sustentada pelo Eixo Irã-Hezbollah-Hamás, bem como por seus “amigos na esquerda mundial”, constitui justamente o oposto disso e, assim, milita contra os interesses de uma paz justa e, portanto, também contra os interesses legítimos do próprio povo palestino, que no momento constitui o elo mais fraco desse conflito.

Notas

  1. https://www.viomundo.com.br/politica/abaixo-assinado-de-intelectuais-artistas-e-academicos-pelo-fim-imediato-do-brutal-genocidio-do-povo-palestino-basta.html 
  2. Destes bombardeios citados acima, apenas os de Leningrado e Stalingrado podem ser enquadrados na categoria de genocídio, na media em que fizeram parte de uma ampla campanha nazista de exterminar parte da população da então União Soviética — programa genocida que as próprias lideranças nazistas denominavam “redução”, isto é, se tratava de “reduzir” demograficamente essas populações para abrir espaço para os futuros colonos da raça ariana, os quais, então, explorariam as populações remanescentes, reduzindo-as à servidão. 
  3. Cada morte de um civil é uma tragédia. Sobretudo a morte de uma criança. Entretanto, a acusação de genocídio nos obriga a levar em conta o aspecto quantitativo, na medida em que um genocídio, como dito acima, implica necessariamente prática sistemática de extermínio. Aqui não vai, de modo algum, nenhuma tentativa de diminuição da imensa dor dos palestinos. 
  4. No antissemitismo clássico, sobretudo nazista, os judeus não são considerados apenas uma raça inferior, mas sim a “contrarraça”, porque plasmariam o dinheiro, bem como a dissolução e corrupção trazidas por ele. O mesmo acontece com a ideologia antissionista, que alega a “artificialidade” do Estado de Israel, como base para pregar a sua destruição violenta. Ver o artigo que publiquei na Revista Fevereiro sobre o tema: https://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=15 
  5. Ver, a este respeito, o artigo de Rober Kurz: “Os assassinos de crianças de Gaza”.http://www.obeco-online.org/rkurz370.htm 
  6. “ “É verdade que os indivíduos psicologicamente mais humanos são atraídos pelo ticket progressista, contudo a perda progressiva de experiência acaba por transformar os adeptos do ticket progressista em inimigos da diferença. Não é só o ticket anti-semita que é anti-semita, mas a mentalidade do ticket em geral.” Cf. Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, p. 98.” https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/208/o/fil_dialetica_esclarec.pdf 
  7. Ver a resenha do livro A linguagem do Império, de Domenico Losurdo, que publiquei na Revista Fevereirohttps://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=05&t=09 
  8. Quando Adorno e Horkheimer escreveram sua Dialética do Esclarecimento, ainda não se usava o termo “antissemitismo estrutural”, mas certamente era disso que eles estavam falando. Sobre essa questão, são fundamentais os textos de Moishe Postone: “Antissemitismo e nacional-socialismo” https://www.marxists.org/portugues/postone/1986/mes/40.pdf e, para o antissemitismo de esquerda a importante entrevista: “Sionismo, antissemitismo e esquerda” https://utopiasposcapitalistas.com/2015/04/12/sionismo-antissemitismo-e-a-esquerda-uma-entrevista-com-moishe-postone/ 
  9. Para a questão do “Inconsciente coletivo anti-judaico, ver o texto acima citado de Robert Kurz. E também, do mesmo autor, “Economia política do antissemitismo” https://www.marxists.org/portugues/kurz/1995/09/economia.htm 
  10. Aqui as aspas são de rigor, pois não há oposição do chamado “Eixo da Resistência” nem às políticas chinesas nem às políticas russas na região. E também é muito claro o projeto de imperialismo regional do principal articulador desse “Eixo”, a saber, o Irã. Portanto, a posição “antiimperialista” do Eixo da Resistência na realidade deve ser traduzida como antiamericanista. E também é muito claro que seu antiamericanismo está intimamente ligado ao seu antissemitismo. Afinal, não são “os judeus” que mandam nos Estados Unidos, como disse o infeliz proprietário de uma seita trotskista chamada PCO? Essa figura também saldou calorosamente o 7 de outubro, perpetrado pelo Hamás, como uma passo importante para destruir o “Estado fictício” de Israel. 
  11. José Saramago, “Das pedras de David aos Tanques de Golias”, https://caderno.josesaramago.org/20584.html 
  12. https://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/noticias/gd141003i.htm 
  13. Mas como indicava Adorno, na psicanálise a verdade está nos exageros. 
  14. Ver a nota que publiquei na Revista Rosa, intitulada:”Al-Sissi, abra a fronteira com Gaza!” https://revistarosa.com/8/israel-palestina/al-sissi-abra-a-fronteira-com-gaza 
  15. Na realidade, foram dois povos — os judeus e os ciganos — que os nazistas queriam exterminar e que, caso a Alemanha vencesse a guerra, certamente teriam sido completamente eliminados. 
  16. Ver Vladimir Safatle, “O suicídio de uma nação e o extermínio de um povo” https://revistacult.uol.com.br/home/suicidio-nacao-exterminio-povo/ 

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DANIEL GOLOVATY, historiador e psicanalista, é membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA | www,pazagora.org

Publicado no hors-série do volume 8 da Revista Rosa em 13/11/2023.

Revista Rosa, S.Paulo/SP, Brasil, https://revistarosa.comissn 2764-1333.

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