[ Editorial Principal | Folha de São Paulo | Pg2 | 22/10/2023 ]
“Um lar nacional para os judeus, no modo como em geral é entendido, era incompatível com as exigências dos nacionalistas árabes, enquanto as demandas do nacionalismo árabe, se admitidas, teriam tornado impossível cumprir o pleito dos judeus.”
Não poderia ser mais atual a observação da chamada comissão Shaw, que em março de 1930 relatou ao monarca do Reino Unido as conclusões de investigação sobre uma revolta árabe na Palestina, em agosto do ano anterior.
Aquela porção de território, que se estendia do mar Mediterrâneo à margem ocidental do rio Jordão e do Egito ao Líbano, era um espólio do Império Otomano, esfacelado com a Primeira Guerra. Os britânicos governavam a região sob um mandato provisório da Liga das Nações, antecessora da ONU.
Desde o fim do século 19, o movimento sionista promovia a migração de famílias judias para a Palestina mediante aquisição de terras. A pressão populacional nutria o nacionalismo dos residentes árabes.
Como resposta a uma grande revolta árabe, os britânicos delinearam, no final da década de 1930, o primeiro plano de partição da Palestina em Dois Estados soberanos.
A proposta decorria da conclusão, de resto óbvia, de que a melhor solução para estabilizar a região seria reconhecer o direito de árabes e judeus de estabelecerem as suas respectivas nações sem, no entanto, ceder às demandas maximalistas de cada lado.
Com base no mesmo diagnóstico, dez anos depois a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a resolução que dividia a Palestina em duas nações.
A porção sob controle judaico crescera em relação ao plano britânico. O Holocausto de 6 milhões de judeus tornou ainda mais premente a obrigação do conjunto das nações para com a comunidade judaica e acelerou a migração de judeus para a região.
Os árabes da Palestina não aceitaram a partilha e, associados a exércitos de Egito, Jordânia e Síria, foram à guerra contra Israel, tão logo a nação judaica declarou-se independente, em 1948.
Os israelenses rechaçaram a agressão, como também ocorreu em 1967 e 1973. Como espólio, Israel ocupa e coloniza territórios que não lhe pertencem pelo direito internacional, e centenas de milhares de palestinos viram-se compelidos a migrar, o que ajudou a sobrepovoar a Faixa de Gaza.
Uma nova janela promissora para a paz só se abriria no início dos anos 1990. Os acordos de Oslo retomaram os princípios da bipartição e proporcionaram aos árabes a fundação de sua primeira organização governamental, a Autoridade Nacional Palestina.
Dissidências radicalizadas de parte a parte, que se opõem à pacificação, puseram-se a dinamitar o processo. Não tiveram dificuldade de alcançar seu objetivo num contexto em que o dogmatismo religioso ganhava espaço na política.
Os massacres, estupros e sequestros promovidos pelos terroristas do Hamas em 7 de outubro deste 2023 e a retaliação assoberbante de Israel representam o ápice desse ciclo de radicalização.
A via do terror não levará os palestinos a desfecho além da destruição, da miséria e da falta de perspectivas de futuro. Israel não vai sumir do mapa como pregam os celerados do islamismo suicida. Vai continuar forte e vai reagir.
A marcha do governo israelense para a extrema direita também mostra seu limite. O prodigioso aparato de segurança não manterá protegida a população. Sem engajamento diplomático e político com o lado palestino, viver em Israel será mais arriscado.
Neste momento de urgência, a comunidade internacional deveria zelar para que os reféns não combatentes tomados pelo Hamas sejam devolvidos e para que Israel respeite as leis de guerra, poupe os civis e assegure o abastecimento de itens básicos em Gaza.
Mas as atenções estratégicas dos países comprometidos com a paz, como defende esta Folha, precisam estar voltadas para o restabelecimento tempestivo de canais de negociação que possam concretizar a Solução de Dois Estados.
O Brasil, que ora preside o Conselho de Segurança da ONU, dispõe de um ativo intangível, mas valoroso, para exibir aos contendores. Aqui as comunidades árabe e judaica convivem harmoniosamente e cooperam desde sempre.
Essa característica não apenas recomenda à diplomacia brasileira que adote a equidistância no conflito. Exige que condene a violência e apele à retomada do diálogo rumo à conciliação perene entre palestinos e israelenses.
Israel entre a cruz e a espada
[ por MILTON BLAY | A Voz da Esquerda Judaica | 14/10/2023 ]
Israel vive nestes dias um dilema sem precedentes: que estratégia adotar contra o Hamas, em Gaza. O desafio é praticamente insolúvel, não há uma boa solução, face à existência de mais de 150 reféns. Tudo vai depender, muito provavelmente, da maneira como o Hamas vier a utilizá-los: como moeda de troca ou como escudos humanos.
A escalada da violência, porém, torna a negociação , seja direta ou através de um mediador internacional, praticamente impossível.
Toda e qualquer referência ao passado, em particular no caso do soldado Shalit, negociado contra a libertação de 1.023 militantes do Hamas presos em Israel, não faz o menor sentido. A situação é totalmente diferente, é inédita.
O Hamas, disse o expert francês em estratégia e questões militares israelenses Pierre Razoux, “faz tudo para atrair Israel para a ratoeira de uma operação terrestre.” Aparentemente com sucesso.
Uma ação mais moderada seria entendida como fraqueza, sobretudo pelo Irã, provocando novos ataques .
Em contrapartida, uma ação contundente de Tsahal, com milhares de mortos entre os civis palestinos, deixará a imagem de Israel abalada a um ponto talvez nunca antes visto e suscitará a equiparação moral com o movimento terrorista.
Os riscos são enormes: não trará de volta os reféns, não acabará de vez com o Hamas, irá fomentar revoltas entre os palestinos da Cisjordânia, poderá precipitar a entrada do Hezbolá na guerra, deixará um número incalculável de soldados israelenses mortos, além de provocar atentados mundo afora (como ocorreu ontem na França).
A operação terrestre vai se desenrolar num verdadeiro labirinto, que o Hamas domina de A a Z, com seus mais de 500 quilômetros de túneis. Sem falar do risco maior, de uma internacionalização do conflito, com a entrada do Irã.
Antes do desastre do dia 7, Netanyahu e sua gangue deram de ombros e negligenciaram as advertências egipcias e de seus próprios generais. Hoje, o primeiro-ministro vomita palavras firmes – “Vamos destruir o Hamas!” – sem querer enxergar que seu tempo passou e que ao fim dessa guerra irá para a prisão, não mais por corrupção, mas por crime político.
Não foi sequer capaz de formar um governo de união nacional, limitando-se a abrir espaço para os generais Benny Ganz e Gadi Eisenkat, ex-comandantes supremos das forças armadas israelenses, para que se ocupem da administração da guerra. O líder político da oposição, Yair Lapid, foi descartado, por exigir a demissão dos dois extremistas de direita, messiânicos, Ben Gvir e Smotrich, responsáveis diretos pelo que aconteceu no dia 7.
Este gabinete de guerra está com seus dias contados.
Netanyahu vocifera contra o Hamas, mas não tem nenhuma autoridade para tanto. É dele a estratégia que transformou o movimento terrorista no que ele é hoje, uma milícia hiper armada, de 40, 50 mil homens, muito bem formada e financiada.
Netanyahu fortaleceu deliberadamente o Hamas e debilitou a Autoridade Palestina, com o único objetivo de impedir qualquer negociação que abrisse caminho para a partilha em Dois Estados.
Netanyahu, o Irã e o Qatar são os grandes responsáveis pela encruzilhada em que Israel se encontra.
Quem o defende argumenta que não se troca um líder em meio a uma guerra. Não é bem assim; em maio de 1940, o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain foi substituído por Winston Churchill, com o resultado de conhecemos.