Ehud Barak: Existe uma frase para o que Bibi quer —> “Ditadura de Fato”

 

“Nunca, em nossa história como Estado, Israel sofreu tamanha destruição de valor em tão pouco tempo”, diz o ex-primeiro-ministro.


[  Entrevista de EHUD BARAK por JO-ANN MORT  |  New Republic  |  19|07|2023  | 
traduzido pelo PAZ AGORA|BR  |  www.pazagora.org  } >

Enquanto o presidente israelense Isaac Herzog faz as rondas oficiais em Washington esta semana, outro político israelense conhecido por muitos americanos continua a se juntar em apoio aos protestos contra seu próprio governo. O ex-primeiro-ministro Ehud Barak é o militar mais condecorado do país e ex-chefe do Estado Maior do exército. Como líder do Partido Trabalhista, ele derrotou Benjamin (Bibi) Netanyahu em uma vitória frustrante em 1999. Atuou como ministro da Defesa, Relações Exteriores e Interior em governos de esquerda e direita (inclusive em um governo anterior chefiado pelo próprio Bibi, do qual renunciou).

Embora continue sendo uma figura controversa em Israel, tanto para a esquerda quanto para a direita, poucos desafiam seu intelecto. Ele também é bem versado na política dos EUA. Durante nossa longa conversa, referiu-se a Madison e Jefferson e, a certa altura, fez referência ao sociólogo alemão Max Weber, observando que mesmo um monarca absoluto tem limites para sua legitimidade: “Pense em Carlos I na Inglaterra ou Luís XVI na França”. Deve ficar claro a quem ele estava se referindo.

Barak e Netanyahu são antigos. “Eu o conheço desde 1969. Bibi era um soldado de 19 anos e depois oficial da Sayeret Matkal, uma unidade de forças especiais, da qual eu era o comandante. Seu irmão mais velho, aquele que mais tarde foi morto em Entebbe (uma operação de comando israelense de 1976 para resgatar mais de 200 israelenses mantidos como reféns no aeroporto de Uganda por terroristas palestinos e alemães), era meu vice e um dos meus melhores amigos. um bom oficial.” Ele ri: “Às vezes admito que sou o responsável pelo futuro problema de Bibi, porque não consegui convencê-lo a permanecer na carreira militar”.

Antes que a sessão de verão do Knesset termine em 26 de julho, o governo de Israel está se movendo para anular o “padrão de razoabilidade”, uma forma de doutrina de direito comum que permite ao tribunal superior vetar decisões administrativas do governo se o tribunal achar que elas estão além da razão ou podem prejudicar o bem maior. Isso removeria uma ferramenta poderosa do poder judicial e poderia significar que os funcionários do governo poderiam negociar livremente para ganho pessoal, decidir derrubar precedentes relacionados a uma ampla gama de direitos humanos e civis em Israel e nos Territórios Ocupados, questões entre Religião e Estado e muito mais. Em um sistema sem separação de poderes, a supervisão da Suprema Corte é fundamental para a democracia israelense. “Qualquer lei que de fato anule a total independência da Suprema Corte transforma Israel em uma ditadura de fato”..

Em resposta a este projeto de lei e à promessa de outros que virão, por mais de seis meses, os israelenses se tem manifestado semanalmente —pelo menos—em números maciços, equivalentes a 12  a 15 milhões de americanos, contra a tentativa de Bibi em relação ao que os adversários chamam de mudança de regime. Barak observa: “Desde o estabelecimento do Estado, nada semelhante aconteceu. Algumas dessas pessoas nunca protestaram contra nada.”

Barak observa que o governo rotulou seus planos de “reforma judicial” para fazê-los “parecer benignos”. Ele cita a presidente da Suprema Corte, Esther Hayut, que define como “não liberal – ela é profissional. Pense em Anthony Kennedy; ele foi indicado como conservador, mas nunca trairia seu julgamento profissional. Ela imediatamente se posicionou diante do público e disse que esta é uma tentativa de esmagar a independência da Suprema Corte e expulsar Israel da família das democracias. Então é por isso que estamos tão profundamente preocupados.”

De fato, para ouvir as recentes entrevistas de Netanyahu para a mídia dos EUA (ele hoje só dá entrevistas para o Canal 14 de Israel, que é como a Fox News, ou para os meios de comunicação dos EUA, onde ele acaba relativamente incontestado pelos repórteres quando oferece imprecisões flagrantes, como afirmar que Israel, como os Estados Unidos, tem uma separação de poderes e cita os vários ramos do governo, o que não acontece), você pode se perguntar por que todos os protestos.

A realidade é que quem controla o governo controla o Knesset, que é uma casa única, não bicameral. O único controle atual do poder do Estado é a Suprema Corte e o Judiciário, que Netanyahu busca enfraquecer. Quando ele diz o contrário, a resposta de Barak é que Bibi, em “inglês perfeito e [com] total desrespeito aos fatos, parece totalmente comprometido com o novo paradigma da pós-verdade, fatos alternativos e notícias falsas. Ele acha que se você pronunciar em um tom de barítono confiante, isso o torna objetivamente preciso”.

Barak descreve por que acha que Netanyahu criou esse governo. “Ele precisa se livrar de seu processo criminal pessoal. Todo mundo tem razões particulares, setoriais ou lunáticas para permanecer no poder. Eles sentem a fraqueza de Netanyahu e tentam chantageá-lo. Essa não é a maneira de governar um país como Israel”.

Agora a pressão está aumentando sobre Netanyahu. Além dos protestos de rua e reações do setor empresarial, provavelmente os eventos mais ameaçadores são as ações de recusa em servir por reservistas voluntários da Força Aérea, unidades cibernéticas, forças especiais e Marinha. Muitos desses reservistas são voluntários, servindo anos além de seu dever obrigatório até os cinquenta anos ou mais por causa de suas especializações. Eles são jogadores-chave nas mais sofisticadas ações militares israelenses, explica Barak. “Um governo pode anunciar uma guerra, mesmo que você ache errado e ponha em risco a vida de soldados, provavelmente a sua vida, e você não concorda com isso. Você está empenhado em ir lá e lutar. O governo pode decidir por um cessar-fogo e até mesmo por um acordo de paz. O governo tem o direito de fazer isso, e você tem que obedecer.

Barak continuou: “É um erro perguntar: ‘Por que você se recusa a servir?’ Esse não é o caso. O verdadeiro agressor, aquele que mudou as regras, que tentou destruir o sistema no qual se baseia toda a democracia israelense, é Netanyahu e seu círculo íntimo. Eles são os provocadores; são eles que não conseguem explicar por que diabos estão fazendo isso. Nunca em nossa história como Estado Israel sofreu tamanha destruição de valor em tão pouco tempo. As ações de Netanyahu são uma grande ameaça à nossa economia. Ele prometeu pessoalmente às principais agências de classificação, semanas atrás, que não aprovaria essas leis para impedi-las de reduzir suas previsões sobre a economia israelense”.

As ações de Netanyahu são baseadas em mais do que seu atual estado de espírito. É cumulativo. “Bibi não é um peso leve”, observa Barak. “Ele é educado, ambicioso, conhecedor… Na vida pública ele tem certas conquistas e merece certo crédito. Mas nos últimos anos, não apenas nos últimos três anos, começando provavelmente por volta de 2015, quando ele venceu a eleição contra sua própria previsão e coincidiu com um clímax no desafio do Irã”, Barak suspeita que ocorreu uma mudança.

Este foi um momento difícil entre os EUA e Israel, quando Obama avançou para assinar o Plano de Ação Abrangente Conjunto, ou JCPOA, com o Irã (uma questão de segurança vital para Israel que está mais uma vez em jogo). Netanyahu agiu pelas costas da Casa Branca para se organizar contra ela e criticou duramente Obama. “A maneira como Bibi respondeu a Obama causou danos imperdoáveis ​​a Israel”, diz Barak. “Poderíamos ter aproveitado a oportunidade, o desafio para transformá-lo em uma oportunidade. Provavelmente não poderíamos retirar Obama, mas havia uma clara prontidão no governo Obama de ir muito longe em direção a Israel, para nos compensar de alguma forma, para ajudar Israel a se proteger contra as incertezas que estavam embutidas neste acordo”. Netanyahu, disse Barak, “destruiu a confiança de Obama para sempre”.

 

Enquanto isso acontecia, diz Barak, “Netanyahu estava gradualmente se tornando cada vez mais dependente da extrema direita”. Barak observa que Netanyahu “geralmente no passado … tinha um grupo equilibrado de ministros”. Bibi, muitas vezes a pessoa mais de direita na sala, acabaria acomodando os de seu governo em seu centro. Barak ingressou no governo de Netanyahu em 2009 como ministro da Defesa, por causa de suas preocupações com o Irã. Barak dá algumas dicas sobre o Gabinete naquela época: “Tínhamos um Gabinete interno, informal. Nós o chamamos de Gangue dos Oito, onde discutimos um assunto delicado antes de levá-lo ao governo ou à mesa do Gabinete, para ver se tínhamos um entendimento entre nós sobre o que é necessário. Então, nessa reunião da Gangue dos Oito, de vez em quando, Netanyahu tinha uma ideia bizarra. Ele iria levantá-la e olhava para Dan Meridor, o ministro da justiça na época e que agora está entre os manifestantes. Sobrancelhas erguidas, Dan Meridor olhava para Beni Begin [ministro sem pasta na época – saiu do Likud e deixou a política depoisi]; Beni Begin olhava para [Moshe] Yaalon [ex-chefe de gabinete das EDI e então ministro de assuntos estratégicos – agora também entre os manifestantes], que então olhava para mim… E Bibi via as sobrancelhas levantadas. O assunto morreria antes mesmo de ser discutido.”

Os tempos, Barak me disse, mudaram dramaticamente: “Mas hoje em dia ele está cercado por pessoas diferentes, muito menos experientes, com muito menos seriedade política. Ele está cada vez mais centrado em si mesmo, principalmente porque tem um problema com a lei: quebra de confiança, fraude e suborno. Tornou-se um assunto que acelerou sua deterioração como líder. Ele ficou cada vez mais isolado, cada vez mais amargo, mergulhando em sua percepção de uma grande conspiração ao seu redor…

Uma das questões que tem dividido os protestos é se estes devem incluir a Ocupação palestina ou se ater estritamente aos assuntos relacionados ao tribunal. Este debate ocorre em um momento em que o governo de Netanyahu, apoiado por líderes de colonos de extrema direita, está fortalecendo o domínio de Israel, especialmente na Cisjordânia. Barak acha que os protestos não devem se desviar de seu propósito animador “porque este protesto é contra o golpe de Estado judicial, é um teste fundamental. Não é mais importante que os outros, mas é mais urgente. Porque se nós, infelizmente, perdermos esta batalha pela democracia, nunca poderemos lutar contra as outras questões. Isso se tornará irrelevante. Viveremos em uma ditadura, e ditaduras não se tiram com eleições. Eles sempre têm suas maneiras de garantir que nas eleições eles ganhem.”

O próprio legado de Barak inclui uma tentativa fracassada de 2000, supervisionada pelo presidente Clinton em Camp David, de negociar um acordo com o líder da OLP, Yasser Arafat, pelo qual Barak foi duramente criticado pelo campo de luta pela paz de Israel. Pergunto se ele ainda acredita em uma Solução de Dois Estados.

“Meu julgamento, olhando para a nossa história e a história dos outros, é que nada é impossível quando existem as circunstâncias certas, a liderança certa. Mesmo um passo unilateral pode ser suficiente. A nossa situação é muito complicada, mas pode ser resolvida”, disse. “E eu acrescento – para Israel, há um imperativo imperioso por razões que não têm a ver com justiça para os palestinos, mas com nosso profundo interesse, nosso destino, nosso futuro, nosso tipo de identidade. Porque a questão, se você olhar do ponto de vista de um pássaro, a questão é dolorosa, mas simples. [Aqui] há 15 milhões de pessoas agora, cerca de metade judeus e metade não-judeus. Se houver apenas uma entidade política reinando sobre toda a união territorial, a saber, Israel, ela se tornará inevitavelmente não-judaica ou não-democrática. Porque se um bloco de milhões de palestinos pode votar, é um estado binacional da noite para o dia e, dentro de um período muito curto historicamente falando, um estado binacional de maioria muçulmana. Esse não é o sonho sionista. Se eles não podem votar permanentemente, você não pode chamar isso de democracia. Isso vai nos separar e ameaçar nossa segurança.”

O processo de paz, ele reconheceu, “não tem vento de popa agora… Muitas vezes sou acusado de ajudar isto acontecer ao dizer que não há parceiro. Mas então era apenas uma descrição objetiva da realidade. Não tínhamos um parceiro em Arafat. Eu não disse que não poderia haver parceiro. Acho que é um velho ditado romano que diz que se você não sabe a que porto tenta chegar, nenhum vento o levará até lá. Portanto, é necessário nunca perder de vista a necessidade de implementar no momento certo com a liderança certa e as condições certas a visão de Dois Estados, porque não ser capaz de fazê-lo é uma ameaça para nós muito mais grave do que para os palestinos”.

 

Talvez seja irônico que a ruptura entre Israel e os EUA venha com um dos presidentes mais pró-Israel da história americana. “Biden é um grande amigo de Israel”, enfatiza Barak, que o conhece há 40 anos. “Muito antes de se tornar vice-presidente, ele era um apoiador consistente de Israel e estava por trás de muitas decisões que nos deram enormes ativos em segurança e inteligência, inclusive com Obama.”

Enquanto isso, as manifestações continuam. O cenário no caso de a legislação ser aprovada antes do final da sessão de verão do Knesset é repleto de complicações, cado o projeto se torne lei. “Então aqui estamos nós. Se Bibi for além do gatilho da próxima semana ou da semana seguinte, se ele aprovar a mudança completa da cláusula de razoabilidade em lei, o protesto aumentará ainda mais”,  me disse. “A Suprema Corte abrirá um processo para cancelá-la de diferentes [grupos de direitos humanos e civis]. Estou confiante que o tribunal o anulará, e que, de imediato, se criará uma crise constitucional onde a tocha passará para os porteiros: o procurador-geral, o chefe dos serviços secretos, o chefe das forças armadas. No meu melhor  julgamento – passei décadas dentro dessas organizações – cada uma delas recorrerá a um consultor jurídico, e o consultor jurídico dirá a eles: ‘Vocês precisam ir à procuradora-geral’ e consultá-la, e ela dirá: ‘Obedeçam à Suprema Corte, não ao governo ou ao ministro que lhes deu esta ordem’. E estou confiante de que eles seguirão.”

Barak, invocando a história americana desde o Movimento dos Direitos Civis até o Chicago 7, aplaude a desobediência civil em uma democracia. “Estamos basicamente defendendo a democracia e estamos determinados a lutar e vencer. Mas vai levar tempo. Estou extremamente emocionado com a energia, o entusiasmo e a criatividade das ideias que vêm dos jovens líderes dos mais de 200 grupos no protesto.” 

De fato, o fervor para defender a democracia em Israel agora é feroz – dias depois de entrevistar Barak, mais grupos se juntaram a milhares de pessoas saindo às ruas em um dia de ação com dezenas de servidores e médicos anunciando uma greve sem prazo. Tudo isso enquanto o número de reservistas que se recusavam a servir continuava aumentando. “Os manifestantes, os pilotos e todos os que são contra são os defensores espontâneos da democracia israelense que estão tentando impedir a mudança de regime.

 
 

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