Um adolescente ianomami pode ler um livro de História que o descreve como descoberto em 1500?
Como um negro pode ingerir um processo de subjugação e escravização tratado com “naturalidade” em nossa História?
[ artigo publicado por HENRIQUE SAMET no Facebook | Rio de Janeiro, 09|02|2023 ]
É nossa tendência fazer do tempo passado, História, ainda mais quando as vítimas consideradas ativas supostamente deixaram de existir. Aqueles dotados de uma humanidade que pede resgate destas injustiças muitas vezes se veem desafiados. Como fazê-lo?
No caso, indígenas e negros não são História. As sequelas são visíveis nestes agrupamentos humanos até os dias de hoje. Um sofrimento que se arrasta século/seculorum.
O que é então justiça histórica? Não é uma volta a uma situação anterior, muitas vezes inexequível. Pensa-se tal termo geralmente como reparação, indenização, direitos singulares para proteção extra, atitudes voltadas para o presente e futuro.
Mas medidas reparadoras têm um lado perigoso, pois excluem muitas vezes o sentimento de expiação. Presume um conceito de cicatrização, perdão, reconciliação, regularização, integração e presumivelmente esquecimento gradativo embutidas pelo tempo.
Pessoalmente passei por experiência similar ao receber no Rio de Janeiro um cidadão alemão que levamos (eu e minha esposa) para um entretenimento noturno. Conversa vai, conversa vem, resolvi revelar minha origem judaica e da dificuldade de convivência nas gerações que sofreram antes, durante e pós Segunda Guerra Mundial com a Alemanha e alemães.
Sua resposta foi surpreendente, mas reveladora: – ‘Mas isto foi já muito tempo!’ Como se o que foi já estivesse extinto, sendo minha esposa filha de sobrevivente do Holocausto. Visitando a Alemanha em 2005, vi em Berlim fato de certa forma similar, por ocasião da rememoração do fim da Segunda Guerra Mundial. Muita informação, fotos e textos espalhados pelas ruas, mas sempre nos textos os nazistas apareciam com o pronome eles, na terceira pessoa. Nada de ‘eu’ e ‘tu’ que pudessem revelar algum tipo de cumplicidade com o passado.
Sua resposta foi surpreendente, mas reveladora: – ‘Mas isto foi já muito tempo!’ Como se o que foi já estivesse extinto, sendo minha esposa filha de sobrevivente do Holocausto. Visitando a Alemanha em 2005, vi em Berlim fato de certa forma similar, por ocasião da rememoração do fim da Segunda Guerra Mundial. Muita informação, fotos e textos espalhados pelas ruas, mas sempre nos textos os nazistas apareciam com o pronome eles, na terceira pessoa. Nada de ‘eu’ e ‘tu’ que pudessem revelar algum tipo de cumplicidade com o passado.
O ressentimento é visto geralmente como um sentimento negativo, que torna seu portador um eterno vitimizado, recalcado, mergulhado em um pântano de acusações e vinganças não realizadas do qual não consegue emergir. Como categoria psicológica individual e difundida pelo senso comum, o ressentimento é percebido como sentimento menor.
Mas se pensarmos o ressentimento, não somente como uma possibilidade individual, mas compartilhada por segmentos humanos variados, ele pode ser também apresentado como uma reação às tentativas de esquecimento e apagamento de um mal histórico. Uma recusa de fechar a página.
Uma forma de manter a chaga viva, incomodar os perpetradores e seus descendentes, fazê-los confrontarem o horror causado. Esta não aceitação implica certa forma de resistência, intransigência, uma estatura moral que se recusa deixar de ser vítima, não “perdoar, esquecer, superar”.
A justiça histórica então não deveria envolver a abdicação do direito de manter imutável a dor causada apesar de todos os seus contrapontos políticos e temporais. Implica um contínuo lembrar e não esquecer.
Desta divagação pulo para outra.
Pode a resolução de se fazer justiça histórica por uma situação passada criar a possibilidade de fazer uma injustiça presente? Pode o castigo ser transmissível aos vivos presentes? Pode o filho e neto responder pelo pai?
Outro pulo para o Oriente Médio, desta vez para o conflito palestino israelense. Começo pelo presente.
Entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão estão presentes primeiro uns dois milhões de palestinos em Gaza sob a hegemonia do Hamas que prega a extinção do Estado de Israel e uma ojeriza aos judeus em geral. O que propõe em troca? Alguém sabe hipoteticamente caso o Hamas chegasse ao poder na região o que fariam com os seis milhões de judeus lá residentes ou nascidos?
No atual Estado de Israel original (até 1967) vivem uns seis milhões de israelenses que se consideram judeus. Vivem lá igualmente uns dois milhões de palestinos israelenses. O governo atual quer fazê-los no mínimo cidadãos de segunda classe sem direitos plenos. Estes mesmos dois milhões de palestinos israelenses aspiram, acredito, serem cidadãos por inteiro neste mesmo Estado que, para isto, precisaria desistir ou abdicar da ideia plena de um Estado judeu somente para judeus, o que levantaria a ideia de um Estado binacional.
Os dois milhões de palestinos da Cisjordânia, acredito, aspiram a um Estado palestino parcial ou total abarcando igualmente o Estado de Israel. O atual governo israelense quer roubar parte das terras ou todo o território da Cisjordânia, reprimir, expulsar ou confinar estes dois milhões de palestinos lá residentes possivelmente em pequenos bantustões ou guetos, impedindo qualquer forma de autonomia e soberania política
Ao final arredondando números, são seis milhões de palestinos e seis milhões de israelenses judeus entre o mar e o rio Jordão . Reconhecer a necessidade de algum tipo de justiça histórica para os palestinos (e no caso paradoxalmente também para os israelenses) é um humanismo. Mas qual o seu desenho político?
Ao final arredondando números, são seis milhões de palestinos e seis milhões de israelenses judeus entre o mar e o rio Jordão . Reconhecer a necessidade de algum tipo de justiça histórica para os palestinos (e no caso paradoxalmente também para os israelenses) é um humanismo. Mas qual o seu desenho político?
A História em si não dá respostas. É na realidade que a situação histórica cria – informados ou desinformados – que iremos de uma forma ou de outra criar considerações sobre o presente e o futuro.
Entre um Estado exclusivamente palestino ou israelense desperta em alguns a tentação de propor um Estado Binacional. Estaria aí a justiça histórica? O interessante a destacar é que não existe nenhuma corrente majoritária dos dois lados que encampe com entusiasmo a ideia. Para alguns, seria um sinônimo de briga eterna por hegemonia. No caso, o importante não é o que é, mas o que se convenciona ser. Sem endosso, pode ser que a ideia seja uma quimera.
Não tenho nenhuma objeção (ou intenção de controle) quanto à identidade palestina e acho que ela tem todo o direito por analogia de se considerar “vitima histórica” de 1917, 1948 e 1967. Acredito que ao direito de vencedor de guerras impingido por governos israelenses aos palestinos é natural que se erga igualmente o direito dos vencidos quanto a resistência. Estes geralmente são os mais fracos e se organizam em forma de guerrilhas ou terrorismo. Se pudessem, sem dúvida, se organizariam em um exército.
Infelizmente, a barbárie do terrorismo, independentemente de ideologia, é uma estratégia adotada geralmente pelos mais fracos. Não é uma condicionante genética ou cultural. O terror é um objetivo de guerra, inclusive o terrorismo estatal. É uma ilusão israelense pensar que pode estancar o terrorismo palestino somente pela repressão. Pensam em bônus, mas esquecem do ônus. Governos que prometem dar fim ao terrorismo são demagógicos. A verdadeira promessa, a vista de todos é uma guerra do sem fim.
Infelizmente, a barbárie do terrorismo, independentemente de ideologia, é uma estratégia adotada geralmente pelos mais fracos. Não é uma condicionante genética ou cultural. O terror é um objetivo de guerra, inclusive o terrorismo estatal. É uma ilusão israelense pensar que pode estancar o terrorismo palestino somente pela repressão. Pensam em bônus, mas esquecem do ônus. Governos que prometem dar fim ao terrorismo são demagógicos. A verdadeira promessa, a vista de todos é uma guerra do sem fim.
Por outro lado, o sionismo capenga ao desconhecer a presença palestina desde priscas eras, mas se torna parcialmente plausível ao se apresentar como herdeiro do vitimismo histórico judaico.
O caminho aparentemente real para se caminhar para uma “justiça histórica” está longe das defesas ideológicas das partes. Existe o de facto: o permanente são as duas populações vivendo sofrimentos paralelos.
O que fazer para as partes, como contingentes de seres humanos, procurarem alguma forma de convivência, com suas respectivas dores, legitimamente inegociáveis?
Se nos ativermos a certas certezas ideológicas, no limite toda a História da Humanidade seria condenável (se é que não é). Podemos, na nossa infinita capacidade de racionalizar, sempre encontrar brechas nos argumentos alheios e nisto ficaremos se não sairmos desta cilada das justificativas. Temos que descer ao terreno.
Não bastam os argumentos justificando as partes, mas a sempre pergunta do ‘que fazer’.
É por aí que vamos conhecer os desenhos futuros, para além das reclamações passadas. Se o Estado de Israel é ilegítimo o que você propõe em troca? Vai jogar os israelenses judeus no mar? Vale o mesmo para o outro lado. Se os palestinos não tem direitos nacionais, vai fazer o que com eles? Expulsá-los? Novo Plano Guimel?
É por aí que vamos conhecer os desenhos futuros, para além das reclamações passadas. Se o Estado de Israel é ilegítimo o que você propõe em troca? Vai jogar os israelenses judeus no mar? Vale o mesmo para o outro lado. Se os palestinos não tem direitos nacionais, vai fazer o que com eles? Expulsá-los? Novo Plano Guimel?
É por aí que vai se esboçar a viabilidade da “justiça histórica” não apenas como desejo de “terroristas”, “ingênuos”, “comunistas” ou “traidores”.