A SOLUÇÃO JUSTA para o conflito é ainda a de DOIS ESTADOS

 

A Solução Justa Será a Duradoura.
Não a que Parece Viável.


Este artigo oferece uma resposta ao Dr. Alon Ben-Meir – sobre sua proposta em 2022 para uma Confederação israelense-palestina-jordaniana. Aqui, o Dr. Alon Liel expõe sua perspectiva, como ex-diplomata israelense, cujas funções incluíram a diretoria-geral do Ministério das Relações Exteriores de Israel e a Embaixada de Israel na África do Sul.

Defensor de longa data de uma campanha para promover o reconhecimento de um Estado Palestino pelos governos europeus, neste artigo o Embaixador (ap.) Dr. Alon Liel descortina o seu raciocínio pessoal e profissional sobre as razões dele permanecer cauteloso e hesitante em relação a soluções confederativas, mesmo que, à primeira vista, elas possam parecer praticamente alcançáveis.

[ por Alon Liel  | publicado no Sage Journals |  10|10|2022  |  traduzido por Moisés Storch para os
Amigos Brasileiros do PAZ AGORA | www.pazagora.org ]

Durante décadas, essencialmente em toda a minha vida adulta, vivi na esperança da paz entre nós e nossos vizinhos, os palestinos. Nos últimos 30 anos, desde que os canais de comunicação se abriram com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), conheci centenas de seus membros e me envolvi em discussões com dezenas. Até me encontrei com membros do Hamas, quando ainda era possível. Durante todo esse tempo, acreditei que a solução desejável e correta era a de Dois Estados para Dois Povos, que eles deveriam viver em paz e segurança lado a lado.

Ao longo da última década, uma mudança radical ocorreu na questão, não apenas entre aqueles à direita israelense, que nunca se entusiasmaram com a Solução de Dois Estados, mas também entre pessoas de mentalidade semelhante à minha, ativistas da paz, que acreditavam na ideia de Dois Estados de todo o coração. A palavra “paz” desapareceu do seu vocabulário e, com ela, a palavra “Ocupação”, um desenvolvimento auxiliado e incentivado pelos sucessos regionais de Israel.

Entre os que mudaram de ideia estava Yossi Beilin, um dos principais arquitetos dos Acordos de Oslo, ex-ministro da Justiça (sob Ehud Barak) e vice-ministro das Relações Exteriores (sob Yitzhak Rabin, quando Shimon Peres era ministro das Relações Exteriores) e meu amigo e colega de longa data.

A alegação mais ouvida era a de que a opção de Dois Estados não era mais viável, devido à escalada de assentamentos além da Linha Verde e ao grande número de colonos. Disso eles quase conseguiram me convencer, pelo menos enquanto a população de colonos estivesse de fato crescendo.

No entanto, quando procuramos perseguir a alternativa de Um Estado para Dois Povos, israelenses e palestinos, ouvimos novamente de todas as direções: “Impossível!” O argumento habitual era que Israel não poderia conceder cidadania aos residentes da Cisjordânia e Gaza para que a maioria judaica não se perdesse.

Por outro lado, se um Estado fosse estabelecido no qual milhões de pessoas que possuíam plenos direitos de cidadania vivessem ao lado de milhões a quem fossem negados tais direitos, o resultado inexorável seria um estado de apartheid em todos os sentidos da palavra. Como o apartheid não é considerado uma opção, pelo menos do ponto de vista dos defensores da paz e dos direitos humanos, não demorou muito para que a Solução de Um Estado também estivesse fora da mesa.

Em outras palavras, as duas soluções amplamente reconhecidas, óbvias e, em grande medida, “naturais” para o conflito israelense-palestino de repente foram consideradas impossíveis, ambas devido a um veto israelense: “Não desmantelaremos os assentamentos” ou “Não concederemos cidadania aos palestinos num Estado comum”.

Por sua vez, os defensores da paz começaram a explorar soluções alternativas e intermediárias, que em geral eram ideias confederativas de vários tipos, incluindo “Uma Pátria para Dois Povos“, uma Confederação israelense-palestina e até mesmo uma Confederação triangular israelense-palestina-jordaniana. Quando lancei dúvidas sobre a viabilidade e a justiça dessas novas ideias, soei antiquado, limitado em meus caminhos, anacrônico – mesmo para aqueles do meu ambiente político imediato.

Quando fui abordado para transmitir por escrito a minha posição sobre a ideia de uma Confederação com os palestinos, de repente senti que tinha de investigar o assunto a partir do zero, para chegar à raiz dele, começando pelo individual e terminando com o nacional.

Sim ou não, para uma Confederação? Esta não é uma pergunta comum. De fato, ela toca em nossa própria essência, não apenas em nível nacional, mas também pessoal – para nós mesmos como israelenses, nossos filhos e netos dos nossos netos. A questão me enerva tanto porque desafia não apenas o credo em que fui criado, mas também minha visão de mundo como adulto, tanto a nível pessoal quanto em minha vida profissional como diplomata ao longo de três décadas.

Acima de tudo, sou confrontado com a pergunta: Como pode ser que alguns dos meus amigos mais próximos, cuja fé na solução de Dois Estados não era menos devota do que a minha e que até trabalharam incansavelmente para realizá-la, passaram a acreditar em outras soluções para o conflito, enquanto eu permanecia cauteloso e hesitante? Refiro-me, em primeiro lugar, às soluções confederativas, que me preocupam tanto e que não posso considerar seriamente. O que há de diferente em mim? O que há de diferente no meu modo de vida, no meu pensamento, que não me permite dar crédito a uma solução do tipo proposto, mesmo que, à primeira vista, seja alcançável?

A Raiz da Diferença a Nível Pessoal

Eu pertenço ao grupo de israelenses, por mais marginais que sejam, que se preocupam com a Ocupação pessoalmente, diariamente. Levanto-me de manhã com a sensação de que estamos abusando dos palestinos e vou para a cama com o mesmo sentimento. Mesmo durante toda a noite, sou atormentado por sentimentos de culpa. Eu me comparo com amigos e vizinhos constantemente; poucos parecem estar tão perturbados quanto eu.

A questão palestina, para todos os efeitos, foi esquecida. Quando o governo nos informa que o problema palestino foi engavetado para os próximos anos, que não será abordado, a maioria do público respira aliviada. Por que sou eu tão diferente da maioria dos israelenses que, na melhor das hipóteses, são apáticos e, na pior das hipóteses, estão cheios de medo e aversão? Tão cheios de medo e aversão que parecem ter perdido a capacidade de lidar até mesmo praticamente com o outro lado ou de olhar para o conflito objetivamente.

Gostaria de explorar aqui a questão de saber por que razão não partilho destes sentimentos, que são tão difundidos entre o público israelense.

A nível pessoal, tive uma infância normal. Nasci em Tel Aviv no ano em que o Estado de Israel foi estabelecido, frequentei escolas no meio burguês de Tel Aviv, alistei-me no exército e lutei nas guerras de Israel. Estudei na Universidade Hebraica de Jerusalém e, ainda estudante, ingressei no Ministério das Relações Exteriores, onde servi o Estado por 30 anos. Se eu tentar olhar para trás com a sabedoria que a idade me concedeu e perguntar o que me tornou tão diferente da maioria dos israelenses, sou capaz de discernir dois fatores principais ao longo da minha vida, mas é improvável que eles ofereçam uma explicação completa e satisfatória.

Em relação à casa em que cresci, os meus pais eram refugiados. Meu pai imigrou da Alemanha para Israel aos 16 anos. Quando seus pais o informaram (em 1935) que estavam deixando a Alemanha para Israel, ele a princípio se recusou. Demoraram muito tempo até convencê-lo. Muitos anos depois, ele opinou que o trauma do deslocamento da Alemanha quando adolescente foi a experiência que mais moldou a sua vida.

Minha mãe teve um destino um pouco diferente e mais complicado. Ela cresceu e foi para a escola na mesma cidade da Alemanha, mas no momento em que seus pais decidiram sair no início de 1939, ela não conseguiu obter um certificado obrigatório para entrar na Palestina. Em vez disso, ela fugiu para a Bélgica e de lá para a França. Escondeu-se no sul da França durante toda a guerra, e só depois que ela terminou, revelou que era judia e imigrou para Israel.

Essa era praticamente a regra onde eu cresci. Muitos dos pais dos meus amigos carregavam as cicatrizes do deslocamento e do Holocausto também. Nessa perspectiva, não havia nada de excepcional. Além disso, quando criança, eu mal estava ciente das dificuldades que meus pais haviam experimentado, nem era realmente capaz de compreender o seu sofrimento. No entanto, hoje, quando meus melhores amigos já escreveram suas memórias, descubro neles uma diferença que não é insignificante.

Suas memórias — e as de Yossi Beilin (2011Beilin e Simpson 1999), que são relevantes para nossa história — formam uma base interessante para comparação.

Havia algo diferente na minha casa. Meus pais zelosamente guardavam sua identidade europeia. Não houve sentimentos de raiva ou vingança, apesar das mágoas. A casa era muito europeia e impregnada de saudade da cultura europeia. Em certo sentido, então, talvez não fosse uma típica família israelense. Enquanto meus colegas de classe e outras crianças da vizinhança ouviam em casa histórias da Bíblia e capítulos selecionados da História judaica, em nossa casa ninguém nunca discutiu o sionismo ou o nacionalismo.

Uma diferença ainda mais saliente foi o fato de que meus pais retornaram à Alemanha como turistas já nas décadas de 1950 e 1960, quando a maioria dos pais de meus amigos ainda boicotava produtos fabricados na Alemanha. Hoje, quando minha mentalidade é tão fundamentalmente diferente da maioria dos judeus em Israel, não posso deixar de pensar que o lar extremamente europeu em que cresci tinha algo a ver com isso. Ainda não tenho certeza absoluta.

Meu local de trabalho foi certamente outro fator que contribuiu. Para mim, o Ministério das Relações Exteriores foi um sonho que se tornou realidade. Fui aceito no Ministério como estudante em fevereiro de 1971. Meus pais, que até então me destinavam para os negócios da família, ficaram encantados. Só hoje entendo até que ponto eu realizei o sonho privado deles de sair para o grande mundo.

Trinta anos de diplomacia, sem dúvida, me transformaram em uma pessoa diferente. Morei em Londres, Chicago, Atlanta, Ancara, Pretória e Cidade do Cabo. Os anos na Turquia e na África do Sul, em particular, foram mergulhados em crises e desafios profissionais. Os diplomatas seniores que me colocaram lá me convenceram de que as crises que ocorreram durante o meu mandato foram “feitas sob medida” para mim.

Talvez fosse o comportamento de cabeça fria, a graça sob pressão, ou melhor, a capacidade de ouvir. Na época, eu não entendia o porquê, mas em retrospectiva eles estavam certos. Com o tempo, ouvir o outro lado, que muitas vezes o critica duramente, muda você de uma forma ou de outra. No meu caso, evidentemente, isso me mudou profundamente. Ser empurrado para fora da bolha narrativa israelense, sempre lhe dá uma perspectiva diferente.

As críticas mordazes que ouvi, principalmente em Londres (durante meus estudos na London School of Economics), Ancara e Pretória, ficaram embutidas em minha consciência até certo ponto. O fato de eu ter servido em um país muçulmano também provavelmente teve seu efeito. A capacidade de ouvir pode muito bem ter cobrado um preço – mas me emprestou a capacidade de me colocar no lugar do outro, incluindo os do inimigo, para ver as coisas de vários ângulos, simultaneamente. O que é certo é que deixei o Ministério dos Negócios Estrangeiros em 2001 como um israelense diferente.

Bem antes disso, na verdade durante todo o meu mandato como diplomata, fui assombrado pelo sentimento de que os assentamentos nos Territórios Ocupados nos levariam a um desastre. No entanto, estava convencido, ou desejava ser convencido, de que tudo era temporário – que os assentamentos serviriam, em última análise, como moeda de troca quando finalmente chegássemos à mesa para negociações de paz.

Notavelmente, enquanto meus amigos do Ministério das Relações Exteriores estavam forjando os Acordos de Oslo, eu estava servindo como embaixador de Nelson Mandela, que estava encantado com o processo de paz. Eu também a apoiei fortemente, é claro. Minha fé na Solução de Dois Estados foi então redobrada, e a paz se tornou a palavra mais preciosa de todas em meu léxico pessoal.

De fato, até o meu último dia no Ministério das Relações Exteriores, eu acreditava que testemunharia a paz com os palestinos na minha vida. Dificilmente havia um líder palestino com quem eu não falasse sobre a paz, e nenhum me deixou com a sensação de que era impossível.

Como e Quando o Mundo ao Meu Redor Virou de Cabeça para Baixo

Camp David 2000

O assassinato de Yitzhak Rabin em 1995 deflagrou um golpe devastador no Processo de Oslo (leia mais em Rabinovich 2018). Ele sinalizou uma mudança fundamental na política e não opinião pública. No entanto, o processo de paz não chegou a uma parada total, e foi revigorado quando Ehud Barak foi eleito primeiro-ministro em maio de 1999.

Foi o Primeiro-Ministro Barak que me nomeou Diretor-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O ex-ministro das Relações Exteriores Shlomo Ben-Ami, intelectual brilhante e franco, foi o representante sênior do Ministério nas conversações de Camp David em 2000. Ao retornar de Camp David, eu o cumprimentei no aeroporto. Lá, na sala VIP, ele me mostrou o mapa em que as negociações se concentravam: uma “troca” de aproximadamente 3% do território da Cisjordânia. Diante dos meus olhos estava o mapa de um Estado Palestino. Alguns meses depois, eu estava na Itália quando Ariel Sharon, então competindo pelo cargo de primeiro-ministro, decidiu subir o Monte do Templo. Em poucos dias, a situação começou a se deteriorar.

A Segunda Intifada, que eclodiu na sequência da “façanha” de Sharon e se enfureceu efetivamente nos quatro anos seguintes, foi nada menos do que horrível. A reviravolta palestina, das negociações de paz, apenas meses atrás, para atentados suicidas desumanos, foi surpreendente. Tínhamos três crianças pequenas, que não permitíamos viajar de transporte público ou sair à noite. Minha filha, Daphna, serviu como repórter de assuntos de segurança na estação de rádio militar e foi testemunha em primeira mão das consequências da maioria dos ataques.

Foi uma experiência traumática para todos os israelenses. Foi destrutivo a nível pessoal, mas principalmente a nível nacional. Quatro anos terríveis que deixaram a maior parte do público israelense convencido de que “não havia parceiro para a paz” – uma expressão cunhada pelo primeiro-ministro Barak após o colapso das negociações de Camp David. Em Israel, experimentamos um profundo choque emocional e, no que diz respeito aos palestinos, foi uma ruína absoluta. Eles se viram contra forças muito mais fortes do que eles e saíram da luta machucados e espancados.

Retirada israelense de Gaza, 2005

O mantra “não há parceiro” trouxe à tona a retirada da Faixa de Gaza e do norte da Cisjordânia. Embora a sociedade civil tenha produzido a Iniciativa de Genebra em 2003 [ leia AQUI a versão brasileira traduzida pelo PAZ AGORA|BR ], que eu também apoiei, já não havia ninguém para vende-la ao público israelense. O primeiro-ministro Sharon decidiu retirar-se unilateralmente de toda a Faixa de Gaza e evacuar quatro assentamentos no norte da Cisjordânia.

A oposição política dentro de Israel estava fervilhando. Só um primeiro-ministro de direita poderia ter escapado impune de tal movimento. De fato, a retirada foi realizada, mas não deu frutos políticos discerníveis. O Hamas tomou o controle de Gaza física e politicamente, e a OLP, que havia liderado a Intifada vários anos antes, de repente apareceu como a parte mais responsável entre os palestinos, enquanto o Hamas foi percebido pelo público israelense como um representante do Irã e até mesmo do Daesh.

A retirada, embora executada como planejado, acabou fortalecendo os argumentos  dos colonos, que afirmavam que ela não só deixou de produzir quaisquer ganhos políticos, mas ainda tornou as cidades no sul de Israel mais vulneráveis a ataques. Sharon continuou a justificar a retirada em termos da necessidade de agir unilateralmente na ausência de um parceiro. No entanto, quando os foguetes começaram a chover sobre as principais cidades do centro de Israel, não demorou muito para que a narrativa de que a retirada tinha sido um erro se tornasse a dominante.

A Coalizão da Direita Messiânica

Nesse clima, os defensores da paz começaram a se sentir derrotados e isolados. Os assentamentos se expandiram e, dentro deles, aglutinou-se uma aliança nacional-religiosa para quem permanecer na Cisjordânia era uma questão de cumprimento dos mandamentos divinos. Surpreendentemente, em um discurso na Universidade Bar-Ilan em janeiro de 2009, o primeiro-ministro Netanyahu pronunciou as palavras “Dois Estados”, mas só o fez após uma queda de braço com o presidente Obama, como se estivesse possuído pelo diabo.

Com a ascensão e queda dos governos, os defensores da paz tentaram repetidamente reinserir as palavras “Dois Estados” nos acordos de coalizão, mas sem sucesso. Nas negociações que os líderes do Partido Trabalhista conduziram com Netanyahu, ele supostamente insistiu que não poderia restaurar as palavras “Dois Estados” ao acordo porque não tinha uma maioria dentro do Likud para apoiá-lo, assim como os outros partidos da coalizão. Em poucas palavras, Israel abandonou o conceito de Dois Estados em meio a um clima público que explicitamente o permitia. E com o abandono da visão de Dois Estados, também a própria ideia de paz caiu no esquecimento.

A Transformação de Israel numa Potência Regional

Nas últimas duas décadas, desenrolou-se um verdadeiro drama regional. Os países muçulmanos da região começaram a se autodestruir um a um: Síria, Líbia, Iraque, Líbano, Iêmen. Ao mesmo tempo, Israel, apesar das ameaças à segurança e dos desafios que enfrentou, foi capaz de manter uma certa estabilidade e rotina, ao mesmo tempo em que floresceu economicamente. Nós nos tornamos a “nação start-up”, líderes mundiais em alta tecnologia, bem como os principais exportadores de armas e inteligência em um mundo abalado pelo terror do Daesh. Marcando-se como um agente do progresso humano, Israel fez avanços triunfantes econômica e internacionalmente, precisamente quando vastos segmentos do mundo árabe definhavam, naufragavam ou desmoronaram completamente.

A vítima imediata foram os palestinos. A narrativa de longa data, segundo a qual o conflito israelense-palestino estava no centro do conflito judaico-árabe de repente se derreteu no ar. Os países árabes começaram a cortejar Israel enquanto abandonavam sua luta política em nome dos palestinos. Os Acordos de Abraão, assinados em agosto de 2020, que normalizaram as relações entre Israel e duas nações árabes (Emirados Árabes Unidos e Bahrein) foram o cume deste processo. Como alguém que esteve envolvido na diplomacia desde o início da década de 1970, não me lembro de um momento mais próspero internacionalmente para Israel. Em suma, as conquistas militares e econômicas do país, juntamente com o declínio vertiginoso de alguns de seus adversários, abriram um abismo dramático nas relações de poder em relação aos palestinos.

O que Aconteceu ao Israelense Médio?

Os sucessos de Israel na arena internacional e a prosperidade econômica doméstica ocorreram na quinta e sexta décadas da Ocupação. Surgiu a sensação de que Israel estava indo na direção certa, que tínhamos conseguido expandir geograficamente sem pagar um preço político. A força de Israel em conjunto com políticas externas e de defesa assertivas (lideradas por governos de direita ou centro-direita) levou os países importantes para nós, na América do Norte e na Europa, a apoiar efetivamente tudo o que fazíamos, ou pelo menos as coisas apresentadas a eles como vitais para a segurança e a existência de Israel. A questão palestina praticamente desapareceu da cena internacional, pelo menos no nível dos governos nacionais.

O israelense médio, que até recentemente temia pela sobrevivência do Estado, de repente ficou inchado de autoconfiança, sentimentos de superioridade e, por sua vez, condescendência e arrogância, principalmente em relação aos palestinos. Além disso, intoxicados pelo ar rarefeito de sua posição recém-descoberta no mundo e na região, os israelenses começaram a exibir atitudes egoístas e racistas de “não há ninguém além de mim”. “Os palestinos pagaram o preço de sua derrota”.

Em diferentes circunstâncias, o sucesso de Israel poderia ter inspirado magnanimidade e compaixão, mas, em vez disso, fez precisamente o oposto: reforçou a crença no punho de ferro e na capacidade dissuasora de Israel como a chave para suas realizações, que eram evidentes. A lacuna cavernosa nas relações de poder tornou-se o alfa e o ômega.

O Que Aconteceu com os Cidadãos Palestinos de Israel?

Entre os cidadãos palestinos de Israel, ocorreu uma ruptura surpreendente. Eles não estavam, é claro, alheios ao triunfo esmagador de Israel. A noção de que um acordo com os palestinos era inatingível também se infiltrou em sua consciência. Um partido islâmico liderado pelo deputado Mansour Abbas, a Lista Árabe Unida (Ra’am), optou por limitar seu foco às questões civis domésticas e, em 2021, concordou em remover o conflito israelense-palestino da sua agenda, como condição para sua entrada na coalizão do governo. Em vez disso, Abbas e seu partido priorizaram os problemas internos que afetam a sociedade árabe em esferas como disputas de terra, moradia, educação, crime, etc.

Pesquisas mostram que cerca de metade de todos os cidadãos palestinos de Israel que pretendem votar nas próximas eleições votarão na Lista Árabe Unida – um partido que explicitamente evita a questão israelense-palestina. Assim, não são apenas as nações do mundo que abandonaram os palestinos; quase metade de todos os árabes israelenses, de fato, também os abandonaram, pelo menos no que diz respeito aos seus direitos nacionais.

O que aconteceu aos palestinos da Cisjordânia e Gaza?

Algo semelhante aconteceu entre os habitantes da Autoridade Palestina. Eles também estão bem cientes do que está acontecendo ao seu redor. Experimentam pessoalmente as vitórias de Israel, incluindo seus prodigiosos golpes diplomáticos. Seu isolamento abjeto na arena internacional é doloroso e desmoralizante.

Eles aprenderam em primeira mão a dificuldade de lutar com Israel na arena militar – onde as proezas militares e de inteligência de Israel os colocam em clara desvantagem. Somado a esse sentimento de futilidade na última década tem sido a mortificação que sentem ao serem politicamente abandonados pelo mundo,

Os moradores da Cisjordânia não podem deixar de sentir que a liderança deles desempenhou um papel importante na sua derrota ignominiosa. Eles também pararam de acreditar em um acordo político. A sua autoconfiança se desgastava à medida que Israel se tornava cada vez mais forte e a comunidade internacional virava as costas.

Qualquer observador atento encontrará os palestinos da Cisjordânia hoje em frangalhos políticos. A liderança em Gaza, por sua vez, persiste em sua crença na luta violenta, mas o cerco em curso e a necessidade que o acompanha, bem como os reveses humilhantes sofridos por seu aliado Irã, sem dúvida feriram o moral dos palestinos de lá também.

Para Onde Vamos?

A realidade delineada acima gerou novas regras do jogo. Com os israelenses confiantes de que triunfaram na luta e os palestinos sentindo que não podem vencer, mesmo aqueles que estavam convencidos de que a Solução de Dois Estados – a saber, a separação em duas entidades soberanas distintas – era a certa (uma clara maioria de ambos os lados ao mesmo tempo) agora tendem a levantar as mãos em exasperação.

Mesmo aqueles que reconhecem a existência de um povo palestino, que sofreu terrivelmente e tem direitos que devem ser cumpridos, não acreditam atualmente que um Israel poderoso e autoconfiante estaria disposto a entregar aos palestinos pisoteados e oprimidos tal presente.

Mesmo aqueles israelenses que ainda acreditam em um futuro acordo sustentam a opinião de que ele deve ser baseado estritamente em relações de poder e não em todos os tipos de conceitos vagos e abstratos de direitos humanos e nacionais. Muitos palestinos também se resignaram à situação e passaram a acreditar que sua fraqueza, em grande parte atribuível a seus próprios erros, é o seu destino.

Confederação?

Diante de uma realidade tão desigual, os formuladores de políticas podem olhar para a desconcertante variedade de ingredientes apresentados diante deles e dizer: “O bolo que você pode assar a partir deles será totalmente diferente daquele que pensávamos que poderíamos assar no passado. Deixemos jogar a força de Israel, a fraqueza dos palestinos e a apatia da comunidade internacional na tigela de mistura, agitar tudo, colocá-lo no forno e ver que solução surge.

Israel consentirá de suas alturas elevadas, os palestinos de suas profundezas abjetas; o mundo será poupado, pelo menos temporariamente, do agravamento do conflito em curso; e voilà, temos um acordo com apoio de ponto a ponto.”

Para muitos, esse novo bolo já tem um nome: Confederação. Vários planos deste tipo foram elaborados ultimamente. A ideia é basicamente uma espécie de parceria israelense-palestina no que diz respeito à administração territorial e à tomada de decisões em vários domínios, o que, espera-se, acabará por levar a entendimentos mais amplos.

Infraestruturas compartilhadas, sustenta-se, formarão laços em vez de divisões. Nenhum plano confederativo que eu tenha visto envolve a evacuação significativa de assentamentos. A maioria dos assentamentos deve ser anexada por Israel, com os palestinos recebendo compensação territorial em troca, enquanto uma minoria de colonos terá a opção de permanecer como residentes das áreas controladas pelos palestinos (sem serem despojados da cidadania israelense). Espera-se que tal acordo de gestão conjunta permita que as questões centrais relativas ao conflito israelense-palestino sejam abordadas, incluindo o problema de Jerusalém.

É bastante interessante que a completa e absoluta incapacidade das partes para dialogarem politicamente ao longo da última década tenha dado origem precisamente à noção de que são capazes de colaborar administrativamente. Alguns chamam isso de “pensar fora da caixa”. Outros argumentam que, como as opções às quais nos apegamos no passado – as Soluções de Dois Estados e de Um Estado – não são mais viáveis, talvez devêssemos nos comprometer com a administração territorial conjunta.

Porém, as opções confederativas não são, a meu ver, uma solução desejável. Mesmo que teoricamente possível, este bolo não é apenas imoral, mas provavelmente ilegal.

Um acordo entre Davi e Golias – dois rivais beligerantes e ainda sangrando – estritamente baseado em relações de poder não é um acordo de paz. É a cimentação da dominação israelense, por um lado, e da capitulação palestina, por outro. Nesta luta de braço entre os poderosos e os fracos, não pode haver compromisso – há um vencedor claro e um perdedor claro.

A maioria dos palestinos ainda sonha com um Estado próprio. Hoje, muitos deles sustentam: “Sabíamos que eles nunca permitiriam”, ou “os fatos no terreno não permitem mais”. E isso pode ser verdade, mas os “fatos no terreno” aos quais eles estão se referindo foram criados pelos dois lados, e muitas vezes pela força e com violação da lei.

Um acordo baseado em relações de poder é temporário por sua própria natureza. E certamente não significará o fim do conflito. Ao implementar qualquer solução baseada em relações de poder, Israel será o partido hegemônico, mesmo que no papel diga o contrário. Como um Estado que rotineiramente despreza o direito internacional e viola os direitos humanos no caminho para sua atual posição exaltada, Israel, sem dúvida, dominará todas as áreas sobrepostas, a cada passo do caminho, mesmo que a redação do acordo sugira algo diferente.


O paradigma de Dois Estados baseia-se na suposição de que uma fronteira reconhecida por Israel e pelos palestinos – e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) – divide a terra em duas entidades separadas com plena soberania em parte da terra. Neste paradigma, Israel pode negociar com os palestinos um compromisso sobre certos aspectos da soberania, mas não aplicá-lo unilateralmente. Israel também terá que fazer concessões.

O paradigma da Confederação exige compromissos mutuamente medidos à custa da plena soberania. Para que isso aconteça, a Palestina deve primeiro manter a plena soberania e, em seguida, fazer compromissos enquanto se envolve com Israel (e Jordânia) em um acordo de Confederação. Se os palestinos aceitarem o domínio de Israel antecipadamente, onde está o ganho?

Uma estrutura palestina soberana, separada e independente, poderia mais facilmente obstruir a dominação israelense do que uma adaptada antecipadamente para a colaboração entre os lados. Os interesses comuns residem talvez nos domínios do clima e da saúde, mas o resto é político. Israel obviamente será hegemônico dentro de uma Confederação, mas se houver Dois Estados soberanos independentes, Israel continuará a ser o mais forte, mas não necessariamente continuará sua opressão. Ser a superpotência regional não significa, por definição, que Israel será um valentão regional.

Tenho a sensação de que – como a maioria do público israelense não quer um Estado Palestino e não vê nenhuma necessidade particular para o estabelecimento de tal Estado – surgiu entre certos elementos a necessidade de envolver essa pílula amarga em um revestimento de açúcar chamado “Confederação”.

O que isto significa muitas vezes é criar um quadro legítimo para a intervenção israelense no funcionamento de um Estado Palestino; isto é, uma estrutura que permitirá a Israel, com relativa facilidade – e de acordo com os pactos alcançados – controlar (em um nível macro) os aspectos de defesa, relações exteriores, justiça e finanças do novo Estado.

Tal estrutura também poderia angariar maior apoio entre o corpo político israelense. Na minha opinião, no entanto, não há confiança suficiente entre os lados, nem sequer há interesses comuns suficientes, para permitir tal Confederação. Se, no entanto, uma for estabelecida, será quase inevitavelmente uma estrutura imposta por Israel aos palestinos.

Ainda não está claro para mim por que eu, pessoalmente, não me regozijo com a aparente vitória de Israel sobre os palestinos. Quem não gosta de ganhar? Na verdade, trabalhamos duro para isso. Muitos dos meus amigos caíram ao longo do caminho; as cicatrizes mal desapareceram. Por que não descansar sobre os louros, por mais imperfeitos que sejam? Os fatos que estabelecemos no terreno nos últimos 55 anos derrotaram nosso inimigo – então vencemos, e é isso. O que há de errado com isso? Afinal, aqui estão eles diante de nós, baixando a cabeça na derrota, presumivelmente resignados ao seu destino.

Também é possível que meu ceticismo em relação aos arranjos confederativos tenha sido em parte moldado pela minha experiência turco-cipriota. Em 1960, as potências mundiais impuseram uma solução confederativa em Chipre com uma administração conjunta greco-turca (60% grega, 40% turca) sendo criada para governar as esferas de defesa, justiça, relações exteriores e finanças. Grã-Bretanha, Turquia e Grécia foram nomeados como Estados garantidores. Esse arranjo durou três anos e meio. Os turcos lamentaram a maioria grega automática, os gregos os poderes de veto turcos. Chipre posteriormente caiu na violência, e a invasão turca de 1974 terminou em separação física entre os dois lados. Cerca de 50 anos se passaram desde então e ainda nenhuma solução foi alcançada. A ilha permanece no meio do conflito.

Aqui devemos lembrar que praticamente o mundo inteiro, incluindo os Estados Unidos, cujas posições são quase inequivocamente pró-israelenses, ainda acredita em uma Solução de Dois Estados. O presidente Biden reenfatizou isso em sua recente visita a Israel e à Autoridade Palestina (ver Lehrs 2022). As Nações Unidas, por sua vez, aprovaram uma longa lista de resoluções que apoiam uma Solução de Dois Estados, sendo a mais recente a Resolução 2334 do CSNU, adotada em dezembro de 2016.

Atualmente, parece não haver correlação entre as posições internacionais sobre a questão, o que está acontecendo no campo e as soluções que Israel de fato está impondo. Quando o pensamento de um Estado está fora de sincronia com o resto do mundo, a sabedoria de ditar uma solução que não é aceita internacionalmente me parece bastante duvidosa. Qual é a expectativa de vida de tal solução, mesmo que, em certas circunstâncias, pareça viável?

O que estou buscando é um acordo justo – um que possa ser implementado de forma justa e equitativa, que possa ser uma fonte de orgulho para ambos os lados do conflito e permitir que ambos permaneçam de pé. Sou a favor de tal acordo, mesmo que pareça estar demorando neste momento.

E talvez, ainda mais do que isso, sou a favor de um acordo que ponha fim ao conflito, às recriminações e exigências mútuas, um acordo que não contorne o cerne do conflito, mas o aborde de frente, que obrigue o mais forte das duas partes a pagar um preço político por suas ações,  um preço que até agora não foi pago.

Sou também a favor de um acordo que permita uma reconciliação histórica baseada na justiça para ambos os povos, não uma que branqueie ou feche os olhos aos crimes cometidos e, certamente, não um que legitime ou mesmo recompense os fora-da-lei que sabiam exatamente, ao longo de décadas, o mal que faziam.

É melhor esperar pacientemente o momento certo e, quando isso acontecer, fazer a coisa certa.




O embaixador ALON LIEL recebeu seu PhD da Universidade Hebraica de Jerusalém em 1986, quando completou a tese de doutorado “A dependência da energia importada e seu impacto na política externa da Turquia”. Desde então, Liel serviu como encarregado de negócios na Turquia e como Embaixador de Israel na África do Sul. Após seu papel em 1999 como conselheiro de relações exteriores do então presidente do Partido Trabalhista Ehud Barak, Liel tornou-se diretor-geral do Ministério das Relações Exteriores em 2000.

Hoje leciona na Universidade de Tel Aviv, na Universidade Hebraica de Jerusalém e no Centro Interdisciplinar de Herzliya. Participa da coordenação da J-Link – ONG que congrega organizações judaicas progressistas de todo o mundo, na busca ativa de uma Solução de Paz para o conflito israelense-palestino.

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