‘Este não é o nosso Judaísmo !’ – Religiosos progressistas de Israel se posicionam contra o governo Netanyahu
O sucesso dos partidos extremistas na eleição do final do ano passado foi um alerta para muitos religiosos moderados e esquerdistas, que agora estão se unindo em uma tentativa de combater os supremacistas judeus da coalizão.
[ por Judy Malz | Haaretz 26|01|2023 | traduzido por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]
Mencione esquerdistas religiosos em qualquer conversa em Israel e você será obrigado a ouvir a seguinte gozação: “Você está se referindo a todos os 10 ?”
Não estava tão longe da verdade. Mas está mudando.
A comunidade religiosa de Israel – que abrange todo o espectro da Ortodoxia, de chapéus pretos e shtreimels a minúsculas kipot de crochê – é esmagadoramente de direita. Pesquisas mostraram que até 90% dos israelenses que se identificam como religiosos adotam visões de direita. O movimento de colonos da Cisjordânia, um bastião do ultranacionalismo, é dominado por israelenses ortodoxos.
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Mesmo os judeus ultraortodoxos (ou ‘Haredim’) que, em sua maioria, não se identificam como sionistas, têm oscilado para a direita nos últimos anos e mantêm o duvidoso elogio de serem o grupo mais racista do país.
Nunca antes a direita religiosa teve tanta influência em Israel. Dos seis partidos que compõem o governo recém-formado, cinco são ultraortodoxos ou sionistas religiosos – o equivalente mais próximo em Israel aos ortodoxos modernos. Considerando que apenas cerca de 20% da população de Israel é observante, isso coloca uma quantidade desproporcional de poder em suas mãos.
Mas uma inversão de tendência está começando, como evidenciado pelo crescente número de esquerdistas e moderados dentro da comunidade religiosa que estão finalmente encontrando suas vozes.
“É definitivamente um divisor de águas”, diz Anton Goodman, um imigrante britânico ativo em vários movimentos religiosos pela paz. “Para muitas pessoas que antes acreditavam que poderiam viver com o crescente extremismo no movimento sionista religioso, parece que as coisas foram longe demais.”
De fato, desde a eleição de 1º de novembro, os israelenses religiosos que se opõem à agenda antidemocrática do novo governo se engajaram em várias iniciativas de base – que vão desde novos grupos no Facebook e WhatsApp até petições e cartas de protesto – destinadas a transmitir a seguinte mensagem: ‘O judaísmo representado neste governo não é o nosso judaísmo‘.
De longe, o mais ousado e notável foi o lançamento nesta semana de um novo movimento religioso de esquerda chamado Hasmol Ha’emuni (traduzível como “a esquerda crente”)
O evento de lançamento na noite de segunda-feira atraiu mais de 650 participantes – muito além dos sonhos dos organizadores. Dado o seu sabor de contracultura, muitos na comunidade religiosa notaram com ironia que o local escolhido foi a sinagoga Heichal Shlomo de Jerusalém – um símbolo do establishment ortodoxo dominante.
“Só posso dizer que fomos abertos e honestos sobre o que estávamos fazendo, e o pessoal do Heichal Shlomo não teve nenhum problema com isso”, diz o co-organizador Mikhael Manekin, um destacado ativista religioso de esquerda.
Quando subiu ao pódio para abrir o evento, Manekin examinou surpreso a sala lotada, antes de fazer o seguinte pedido: “Posso apenas tirar uma foto, para que, da próxima vez que me disserem que não há mais ninguém como eu lá fora, eu tenha algo para mostrar?”
Você não vai acreditar
Mesmo no minúsculo mundo dos esquerdistas religiosos, existe uma diversidade considerável. A multidão em Heichal Shlomo incluía homens e mulheres ultraortodoxos (longe da maioria); um amplo espectro de sionistas religiosos; mulheres com cabeças cobertas e mulheres sem coberturas na cabeça; homens com kipot pretas, homens com kipot de crochê, grandes e pequenos, e homens sem kipá. Um ônibus carregado de participantes chegou do sul e outro do norte. Havia kibutzniks e moradores da cidade (a grande maioria de Jerusalém), e até mesmo um punhado de colonos.
Divididos sobre a questão de quem se qualificaria como religioso ou “crente”, os organizadores finalmente decidiram não convidar membros dos movimentos Conservador e Reformista. No entanto, representantes dessas vertentes não-ortodoxas também eram visíveis na multidão.
Na parte de encontro e saudação do evento, realizada no foyer principal, um grupo de organizações afiliadas à esquerda e à comunidade religiosa progressista montaram cabines de informação. Estes incluíram o grupo anti-Ocupação Breaking the Silence (Manekin foi um de seus fundadores); o Centro de Justiça da Mulher; Oz V’Shalom (um movimento religioso pela paz); e Tag Meir (um grupo religioso dedicado a erradicar o racismo e a violência contra os árabes).
Em praticamente todas as conversas na sala, a seguinte pergunta poderia ser ouvida: “Você pode acreditar em quantas pessoas estão aqui?”
Abrindo o evento do auditório principal, Manekin falou sobre a situação solitária do esquerdista religioso.
“É difícil me sentir parte da minha comunidade religiosa quando ela apoia a agressão e a supremacia judaica, e muitas vezes me sinto muito sozinho”, disse ele. “Mas muitas vezes também me sinto muito sozinho em minha comunidade política, onde a religião é vista como algo que precisa ser combatido.”
Os palestrantes convidados incluíram Adina Bar-Shalom, uma educadora e ativista social que fundou a primeira faculdade em Israel exclusivamente para estudantes ultraortodoxos. Sua outra reivindicação à fama é ser filha do falecido Ovadia Yosef, o ex-rabino-chefe sefardita de Israel.
“Assediada pelo nacionalismo e pelo extremismo, a sociedade Haredi passou por uma transformação”, disse ela aos participantes. “Mas este não é o caminho da Torá. Meu pai decidiu que é permitido devolver território em troca de paz. Hoje, é melhor não mencionar a palavra “paz”. E, no entanto, continuo a acreditar na Humanidade, em Israel e na Paz.”
Leah Shakdiel, uma proeminente feminista ortodoxa e ativista da paz, exortou a multidão a usar o rótulo esquerdista com orgulho. “Há momentos na história que são preto e branco sem meios tons”, disse ela. “Somos parte do problema ou somos parte da solução?”
‘Desastre para a Torá’
A eleição do ano passado foi um alerta para muitos moderados religiosos e esquerdistas. O governo mais extremista da história israelense não poderia ter surgido, muitos deles perceberam, sem o apoio maciço de membros de suas próprias sinagogas e de pais nas escolas de seus filhos.
Entre os primeiros a dar voz à sensação rastejante de trepidação estava Itay Marienberg-Millikowsky, membro do corpo docente da Universidade Ben-Gurion do Negev, Be’er Sheva.
Em um ensaio sincero publicado em um popular portal de notícias religiosas, algumas semanas após a eleição, ele admitiu estar muito envergonhado de continuar usando sua kipá em público . “Não suporto mais ser identificado com o campo político e sociológico que cooptou esse símbolo“, escreveu.
O sucesso eleitoral dos partidos ortodoxos, acrescentou Marienberg-Millikowsky, foi um “desastre” para a Torá.
“A Torá na qual acredito, à luz da qual fui educado em yeshivot notáveis e que ensino aos meus filhos, está em perigo palpável”, escreveu ele. “Não podemos aceitar isso e devemos combatê-lo. Esta grande e urgente tarefa requer uma mobilização corajosa e abrangente”.
Mesmo antes de Marienberg-Millikowsky abalar a comunidade religiosa com sua mensagem “fora com a kipá”, um grupo no Facebook já havia sido lançado após a eleição com o título em hebraico “Não em meu nome: Sionistas religiosos contra o racismo e a xenofobia“.
Com cerca de 400 membros agora, sua missão, como explicado no site do grupo, é servir como uma comunidade on-line para “sionistas religiosos que acreditam que cada pessoa é criada à imagem de Deus e merece respeito – sim, sim, também árabes e membros da comunidade LGBTQ. Venha, vamos fazer uma mudança!”
Isso foi seguido por uma carta assinada por centenas de rabinos e educadores religiosos expressando profunda preocupação com a direção que o novo governo de Israel estava tomando. “Tentativas de limitar a igualdade no Estado de Israel, para permitir a discriminação institucional das minorias, para conceder ao governo poder desenfreado e para legitimar o racismo – tudo isso é extremamente perigoso aos nossos olhos, especialmente quando apresentado como vindo da Torá”, disse.
Yoel Kretzmer-Raziel, que ajudou a redigir a carta, disse que seu público-alvo eram jovens israelenses religiosos. “Quando um jovem menino yeshiva ou uma menina de um ulpan vê que seu professor assinou uma carta como esta – isso envia uma mensagem muito importante”, disse Kretzmer-Raziel, que leciona no Achva Academic College, no sul de Israel.
Outra petição, intitulada “Este não é o nosso sionismo religioso”, foi publicada um dia antes de o novo governo ser empossado no final do mês passado.
“O que está sendo descrito nos dias de hoje como a Torá do sionismo religioso é uma Torá fanática que ameaça provocar a destruição do Terceiro Templo”, advertiu. Em 24 horas, mais de 1.000 graduados de escolas ortodoxas e movimentos juvenis em Israel o assinaram.
Desconforto
Até agora, os israelenses religiosos não eram particularmente visíveis entre as enormes multidões que compareceram aos principais protestos contra o governo em Tel Aviv nas noites de sábado. No início desta semana, no entanto, um novo grupo de WhatsApp foi formado com o propósito expresso de trazê-los para a rua. O plano é que eles marchem juntos, para que não se sintam deslocados entre a grande multidão secular. Seu grupo de WhatsApp é chamado de “Religioso. Sionistas. Democratas” e atualmente tem mais de 1.200 membros.
O administrador do grupo observou no post de abertura: “Há uma expectativa real entre aqueles que se manifestam por um Israel Judeu e Democrático por ver algumas kipot de malha na multidão, de pé, ombro-a-ombro com eles, assim como fazemos no exército e no trabalho.
O sionismo religioso sempre foi o ponto de encontro entre o judaísmo e a democracia, e é importante que mantenhamos nosso lugar entre os israelenses que veem em nossa Declaração de Independência a pedra angular do renascimento de nosso povo em nossa terra.
É claro que nem todos os membros desse grupo de WhatsApp – e certamente nem todos aqueles que assinaram petições e cartas expressando sua oposição ao novo governo – se descreveriam como esquerdistas. A maioria provavelmente se sentiria mais confortável com termos como “liberal”, “liberal-direita” ou “direita mamlachti” (vagamente traduzido como direitistas não-populistas que colocam os interesses do país acima dos interesses de sua comunidade particular).
Esse desconforto ficou evidente mesmo no evento de lançamento de segunda-feira do novo movimento. Como Bezalel Cohen, um proeminente educador Haredi, ativo na integração de judeus ultraortodoxos na sociedade israelense, observou em um dos discursos principais: “Eu não sei se eu me definiria como um esquerdista, mas eu definitivamente me identifico com os valores do amor por todos os seres humanos, democracia e liberalismo”.
Antes de apresentar Cohen e os outros oradores principais, a co-organizadora do evento, Brit Yakobi, recitou o “Shehecheyanu” – uma bênção que celebra ocasiões especiais. Tentando mostrar o quanto os reunidos na plateia compartilhavam, apesar das diferenças entre eles, ela passou a realizar uma pesquisa ad hoc.
“Quantos de vocês foram formados no Bnei Akiva e nos escoteiros religiosos?”, ela perguntou.
Centenas de mãos subiram.
“Quantos de vocês se olham politicamente “olho-no-olho” em suas famílias?”
Centenas de mãos subiram.
“Quantos de vocês, quando perguntados como estão, respondem “Baruch Hashem [Graças a D’us]”?
As mãos de todos na plateia se levantaram.
[ por Judy Malz | Haaretz 26|01|2023 | traduzido por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]