Resgatemos o Sionismo Humanista
“Teremos então uma teocracia? Não: se a fé nos une, a ciência nos torna livres. De modo algum permitiremos que as ambições teocráticas de alguns de nossos rabinos se estabeleçam: seremos capazes de mantê-los bem fechados em seus templos, assim como trancaremos nosso exército profissional nos quartéis. O exército e o clero devem ser tão altamente reverenciados quanto as suas excelentes funções exigem e merecem; mas no Estado, que os trata com particular respeito, eles não devem falar, caso contrário causariam dificuldades externas e internas”
(palavras de Theodor Herzl em ‘O Estado dos Judeus’, pp. 129-130, tradução do autor).
[ por GIORGIO GOMEL | 28|01|2023 | publicado no Times of Israel | traduzido por Moisés Storch para os Amigos Brasileiros do PAZ AGORA | www.pazagora.org ]
Em 2018, o Knesset aprovou a controversa “Lei da Nação“, uma lei fundamental com status quase constitucional, que de fato sancionou a transição de Israel de um “Estado judeu e democrático” – um paradoxismo de acordo com alguns; uma tentativa parcialmente bem-sucedida, de acordo com outros, de reconciliar o “Estado dos judeus” concebido por Herzl e outros pais fundadores do Sionismo, ou seja, um Estado onde os judeus poderiam se autodeterminar como Nação, com o princípio de uma democracia para todos os seus cidadãos – para um “Estado Judeu”.
A Lei da Nação violou o espírito da Declaração de Independência de 1948, que prescreve “… completa igualdade de direitos sociais e políticos a todos os seus habitantes, sem distinção de religião, raça ou sexo“. Com Israel definido por lei como o “estado-nação do povo judeu”, o direito à autodeterminação passaria a ser restrito aos judeus. Isso significa desconsiderar o fato de que há outra nação ou etnia em Israel, que não pode dizer nada sobre o caráter do Estado do qual seus membros – os árabes – desfrutam do status legal de cidadãos iguais. Direitos individuais iguais sim, mas não os direitos coletivos de uma minoria nacional, que deveria ser capaz de alcançar um status não inferior ao dos judeus israelenses, através de instrumentos legislativos e atos concretos.
A lei refletia o ataque dos radicais de direita, com disposições destinadas a limitar a liberdade de expressão – especialmente no âmbito das ONGs e movimentos dedicados à defesa dos Direitos Humanos -, a independência do judiciário, em particular os poderes da Suprema Corte, a liberdade de expressão, em uma sociedade em que grandes setores da opinião pública parecem indiferentes ou mesmo hostis aos constrangimentos do Estado de Direito e intolerantes a dissidências.
O dualismo entre “judeu” e “democrático” existe desde o nascimento do Estado, com a Lei do Retorno, um excelente exemplo, permitindo que os judeus do mundo se tornem cidadãos de Israel imigrando para o país. Que Israel é um estado “judeu”, não só porque é um lugar de refúgio da perseguição para um povo disperso, mas porque a identidade coletiva do país está imbuída da cultura judaica (língua, feriados, calendário, símbolos públicos) é certamente legítimo.
Mas não é aceitável que o Estado favoreça o grupo judeu em detrimento de outras etnias. A nova lei codificou essa discriminação. Além disso, como pode ser definido um Estado que não tem fronteiras certas e reconhecidas? Se os territórios palestinos fossem anexados, como seria Israel enquanto Estado-nação do povo judeu? Isso também levaria formalmente a um estado binacional, mas não igualitário, não democrático, com plenos direitos apenas para os judeus.
Com o novo governo, no qual o peso dos dois partidos ultraortodoxos e dos fundamentalistas do “sionismo religioso” é decisivo, com fortes impulsos para o tribalismo e a intolerância, Israel não será mais o “estado dos judeus”, no sentido do sionismo liberal de Herzl ou dos pioneiros socialistas, nem menos ainda o “estado dos israelenses”, uma democracia plena e igualitária para todos os seus cidadãos. Tornar-se-á um “Estado judeu” nas mãos de uma minoria extremista.
Quais são os passos mais significativos se os acordos de coalizão entre o Likud e os outros partidos forem implementados? Eles insistem compulsivamente na identidade “judaica” do país. Agências e partes de ministérios dedicados a esse propósito são inventadas, em particular uma “Autoridade para a Identidade Judaica” e supervisão sobre as relações entre escolas e sociedade civil, ambas confiadas a Maoz, líder do Noam, partido homofóbico e fundamentalista. A proibição de espaços igualitários para oração no Muro das Lamentações [inclusive para mulheres] é reafirmada, contrariamente a acordos previamente negociados.
Uma modificação da Lei do Retorno está sendo proposta com o objetivo de abolir a cláusula que afirma que um avô judeu é suficiente para o direito à Aliá [imigração] e à cidadania israelense. Da mesma forma, as conversões, como caminho para a cidadania, quando celebradas por rabinos não-ortodoxos em Israel ou rabinos ortodoxos não sujeitos ao controle do rabinato central seriam recusadas, ao contrário de uma decisão da Suprema Corte em 2021.
Os pais fundadores fizeram questão de escrever na Declaração de Independência que seu Estado estaria “aberto à imigração dos judeus de todos os países onde estão dispersos”, evitando definir o que era um judeu. Os membros da nova maioria do Knesset exigem uma revisão desta lei, a fim de negar a muitos imigrantes (inclusive os já estabelecidos em Israel) a sua identidade judaica. Eles também gostariam de promulgar legislação para permitir a separação entre homens e mulheres em eventos financiados com fundos públicos, o que efetivamente proibiria a diversidade de gênero em grande parte do espaço público.
130.000 em Tel Aviv contra as reformas do novo governo
Se esses projetos forem aprovados, levarão a uma divisão irreversível entre Israel e a Diáspora, colocando em questão a própria fundação do projeto sionista na origem do país.
Israel pertence a todos os seus cidadãos. Mas os judeus da Diáspora que são, como nós, comprometidos com a existência e a segurança do Estado, também podem e devem expressar preocupação com seu futuro, se tais abusos antidemocráticos que desafiam sua identidade forem aplicados. Eles realmente põem em risco o futuro do país.
É por isso que apoiamos os cidadãos e movimentos da sociedade civil que começam a se mobilizar em Israel.
SOBRE O AUTOR
Giorgio Gomel – membro da Coordenação da J-Link (Rede Global de Judeus Progressistas pela Paz) foi economista-chefe internacional do Banco da Itália. É um dos fundadores da JCall Europe – uma associação de judeus europeus comprometidos com o fim da Ocupação da Cisjordânia e uma Solução de Dois Estados para o conflito israelense-palestino. Atualmente, também trabalha como presidente da Aliança para a Paz no Oriente Médio na Europa .
[ por GIORGIO GOMEL | 28|01|2023 | publicado no Times of Israel | traduzido por Moisés Storch para os Amigos Brasileiros do PAZ AGORA | www.pazagora.org ]