Hoje assume novo governo de Israel com preponderância dos políticos mais extremistas de direita aliados aos grupos religiosos mais retrógrados do país.
Agora, progressistas, seculares, feministas e pessoas LGBTQIA+ são vistos como inimigos do Estado.
[ por Daniel Douek | Folha de São Paulo | 28|12|2022 ]
Surgido na Europa no final do século 19, o nacionalismo judaico, ou “sionismo“, resulta de um processo típico da modernidade, que possibilitou novas abordagens sobre a diáspora e a própria identidade judaica.
Se na perspectiva religiosa tradicional a diáspora era vista como um castigo divino que só seria revertido na era messiânica, judeus assimilados, não incorporados plenamente pelos Estados europeus em formação, tomavam agora o destino em suas mãos para retornar à Terra de Israel.
A identidade judaica, por sua vez, foi concebida por eles como nacionalidade: um judeu era judeu tal qual um francês era francês. Nesse sentido, comportava múltiplas formas de expressão. Práticas religiosas normativas resistiam, segundo pensavam, como resquícios de outros tempos, mas estavam condenadas ao desaparecimento, sem que houvesse o que lamentar. O sonho dos fundadores do país era, assim, o de um Estado liberal, simultaneamente judaico (no sentido nacional do termo) e democrático.
Muita coisa mudou em Israel ao longo de seus quase 75 anos. E o governo que toma posse nesta quinta (29) tem um projeto bastante diferente. A coalizão de partidos ultraortodoxos e de extrema direita, além do Likud, de Binyamin Netanyahu, chega ao poder desafiando pilares sobre os quais Israel foi criado.
Só foi possível graças a uma série de fatores conjunturais, como o racha na esquerda e nos partidos árabes, a recusa do centro de fazer acordos com um primeiro-ministro que responde a três processos na Justiça, e a tentativa de Netanyahu de salvar sua pele, mesmo colocando o restante do país em risco.
Evidentemente, há os velhos problemas. Bibi entregou a administração dos territórios da Cisjordânia e o controle das fronteiras à liderança dos partidos mais radicais e já sinalizou a intenção de construir novos assentamentos. Para os palestinos, isso apenas escancara um processo que, há décadas, é denunciado.
A novidade é que judeus liberais também se tornaram alvo. Progressistas, seculares, religiosos não ortodoxos, feministas e pessoas LGBTQIA+ são vistos pelo novo governo como inimigos do Estado e do próprio judaísmo.
A batalha [dos reacionários que estão assumindo o poder] pela identidade de Israel deverá concentrar forças no enfraquecimento do Judiciário, que segue como o principal reduto do secularismo e vem servindo de contrapeso a legislações discriminatórias.
Essa é a frente que congrega interesses das três forças da coalizão. Netanyahu quer se livrar dos processos. Os ultraortodoxos desejam tornar o Estado mais judaico, e a extrema direita, mais nacionalista.
Se funcionar, a educação pública deve sofrer mudanças. E até a Lei do Retorno, que hoje garante cidadania israelense a todo aquele que tem pelo menos um avô judeu, pode ser restrita àqueles que são considerados judeus pela ortodoxia, isto é, filhos de mãe judia ou convertidos.
Reações vêm acontecendo, na sociedade civil israelense ou nos EUA, principal núcleo do judaísmo liberal e onde reside a maior população judaica fora de Israel. Mesmo no Brasil há grupos se posicionando.
Diante dos acontecimentos, os limites da combinação entre o caráter judaico e democrático do Estado, comumente apontados pela população não judia de Israel, parecem cada vez mais claros.
Se há algo a celebrar com o novo governo é a possibilidade de finalmente reconhecer-se que não pode haver segurança, liberdade e igualdade de uns se não houver segurança, liberdade e igualdade de todos.
Daniel Douek é cientista social, mestre em letras pelo Programa de Estudos Judaicos e Árabes da USP e diretor do Instituto Brasil-Israel.
[ Publicado na Folha de São Paulo em 28|12|2022 ]