Se você alguma vez estudou hebraico moderno, então você vai saber do que estou falando.
Você certamente se lembra da série hebraica Gesher [ponte] – aqueles adoráveis livrinhos que permitiam ao leitor novato do hebraico acessar os clássicos da literatura hebraica moderna em linguagem simples.
Foi assim que “conheci” o romancista israelense A.B. Yehoshua, que acaba de falecer aos 85 anos.
[ por Jeffrey Salkin | Religion News | 16|06|22 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]
Foi exatamente há 45 anos, durante meu ano em Israel no Instituto de Religião da União Hebraica. Nossa turma leu a edição Gesher do conto de Yehoshua “Shloshá Iamim v’Ieled” (Três Dias e Uma Criança), e fiquei encantado. Anos mais tarde, quando meu hebraico tinha melhorado o suficiente, enfrentei seu romance de estreia Ha-Maahev (O Amante), um conto romântico complicado, ambientado à sombra da Guerra do Yom Kipur.
Mas, o que me forçou a uma total paixão literária, foi seu conto “Mul Ha-Ie’arot” (Frente às Florestas).
Era a história de um jovem israelense que aceita um emprego como guarda florestal em uma floresta do Fundo Nacional Judaico KKL (pense: plantar árvores em Israel, e aqueles outrora onipresentes recipientes azuis e brancos que adornavam o peitoril da janela de cada avô judeu). Em uma cena chocante, o guarda florestal alegremente olha para o lado enquanto um árabe põe fogo na floresta, revelando uma aldeia árabe abandonada em suas cinzas.
Yehoshua estava simplesmente dizendo que o Estado foi, pelo menos parcialmente, construído sobre os remanescentes dos que haviam vindo antes, e que os judeus israelenses precisavam enfrentar essa realidade.
O crédito à veia sionista de Yehoshua nunca foi mais claro do que na sua proclamação da centralidade de Israel para o judaísmo.
Em suas famosas palavras para um grupo de jovens judeus americanos, visitando e estudando em Israel:
“… Nossos valores são valores judeus, porque vivemos aqui. Não é o que os rabinos dizem que define o judaísmo, mas o que nós israelenses fazemos todos os dias — nossas ações e nossos valores… Esta é a razão pela qual eu digo aos judeus americanos: vocês são parcialmente judeus e nós somos totais… Se você realmente quer ser judeu, venha aqui. Não é fácil, [está] cheio de perguntas, [e] sua bela e calorosa identidade judaica em sua comunidade vai acabar. Mas isso é real e não imaginário.” [Tal Kra-Oz, “A.B. Yehoshua chama judeus americanos de ‘incompletos'”, Tablet, 19 de fevereiro de 2013, não mais disponível]
Para muitos de nós, essa afirmação flertou perigosamente com a ideia de shlilat ha-golá, a negação da Diáspora – a ideia de que os judeus que vivem fora de Israel, e o judaísmo que existe fora de Israel, é problemática ou mesmo inútil.
Shlilat ha-golá é o lado negro da Força do Sionismo. Na verdade, é arrogante. Força os judeus da Diáspora a uma postura defensiva.
E assim aconteceu que um grupo de nós – um grupo de pensadores e ativistas sionistas reformistas – o interpelou sobre essa idéia. Liguei para ele no telefone para uma teleconferência.”Me chame de Buli!”, Ele insistiu. (Este é Israel; toda figura pública tem um apelido de infância que parece ter ficado preso).
Ele defendeu e esclareceu sua ideia. Não foi, ele disse, que estava desvalorizando o judaísmo da Diáspora. Afirmou que a Diáspora sempre fez parte da vida judaica, e sempre seria.
Mas, o que ele estava dizendo é que há uma dimensão do judaísmo israelense, que é incomparável em qualquer outro lugar.
Por mim, os valores judeus não estão localizados em uma caixa de especiarias chique que só é aberta para liberar sua fragrância agradável no Shabat e feriados, mas na realidade diária de dezenas de problemas através dos quais os valores judeus são moldados e definidos, para melhor ou pior. Um judeu israelense religioso também lida com uma profundidade e amplitude de questões de vida que são incomparavelmente maiores e mais substanciais do que aquelas com as quais seu homólogo religioso em Nova York ou Antuérpia deve lutar…
Nesse sentido, Yehoshua estava certo. Israel proporciona uma sociedade judaica total, na qual símbolos judeus, observâncias e significados permeiam a vida cotidiana de uma maneira impensável em qualquer outro lugar do mundo. Nunca esquecerei de chegar a Israel em Purim, e ver os agentes da alfândega e os carregadores de bagagem fantasiados. Ou, vagando por uma grande loja de departamentos, e vendo ternos masculinos anunciados como “l’bar mitzvá” — apropriado para bar mitzvá.
Mas, mais do que isso: o sionismo expandiu e estendeu as fronteiras do judaísmo para além do meramente “religioso” e “ritualístico”. Israel se tornaria o verdadeiro laboratório de ideias judaicas e textos judeus, e forçaria essas ideias e textos a confrontar não apenas o kashrut da comida, mas a guerra e políticas públicas.
Mas, se eu pudesse destacar o momento em sua escrita que mais me comoveu, teria que ser uma cena particular em seu romance Shivá Me-Hodu.
O livro apareceu na tradução em inglês como Open Heart , que, infelizmente, faz com que o leitor perca a ambiguidade inteligente do título original.
Em hebraico, shivá pode soar como uma palavra que significa “sete”, como o período tradicional de luto de “shivá sentado “; ou “volta”, ou, um dos deuses mais importantes do panteão hindu.
Yehoshua sabia o que estava fazendo – dando a um romance um nome que poderia significar “Um Período de Luto da Índia”, ou “Retorno da Índia”, ou “O Deus/Deusa Shiva da Índia”.
O livro é sobre um jovem médico israelense que acompanha o diretor médico de seu hospital e sua esposa para a Índia. Sua missão é recuperar a filha do diretor médico, que ficara doente com hepatite. A caminho da Índia, o jovem médico se apaixona pela esposa do diretor médico, gerando a tensão romântica e erótica do livro.
Quando o jovem médico está na Índia, ele faz uma visita ao Rio Ganges. Sente-se preso na presença de peregrinos, brâmanes e mendigos. Estas são suas palavras:
“O jovem médico viu um corpo queimar em uma pira funerária, e assistiu enquanto a família se levantava e lentamente circulava as cinzas, e um deles rachou o crânio para libertar a alma no rio. Ele se sente de repente, inexplicavelmente, atraído pelo ciclo do tempo, a pura eternidade de tudo isso. Fica totalmente entusiasmado com o que experimenta na Índia. Sua espiritualidade o atordoa e o move para o cerne do seu ser”.
O que faz você perceber o que os jovens israelenses estão buscando, em suas famosas caminhadas pós-exército para a Índia – um sentido da transcendencia.
Agora mesmo, eu gostaria de imaginar “Buli” no Mundo para Vir, saindo com Amos Oz, Herzl e Golda.
E, eu posso imaginar Deus rindo do alvoroço de tudo isso.
Que Deus receba minha primeira paixão literária israelense – de braços abertos e, sim, com o coração aberto.
[ por Jeffrey Salkin | Religion News | 16|06|22 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]
Leia ++ A.B. Yehoshua