Em 11 romances, três coleções de estórias curtas e quatro peças de teatro, Avraham ‘Buli’ Yehoshua abordou diversas formas narrativas e mergulhou em temas incomuns
[ por Joseph Berger | The New York Times | 15|06|2022 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]
A.B. Yehoshua, o romancista israelense que, juntamente com outros aclamados contadores de histórias, plantou sua nação no mapa da literatura mundial com retratos humanos que capturaram a condição discordante de viver em uma terra repleta de enigmas morais e políticos, morreu na terça-feira em Tel Aviv. Ele tinha 85 anos.
A causa foi câncer, disse Avi Shushan, porta-voz do Centro Médico de Tel Aviv Sourasky, onde o Sr. Yehoshua morreu.
Nascido de uma família sefardita que vivera em Jerusalém por cinco gerações, o Sr. Yehoshua chegou à maioridade quando os judeus da Palestina esculpiram um Estado independente em parte do território que tinha sido um mandato britânico por 25 anos e, por quatro séculos antes disso, uma região governada pelos otomanos.
A jovem nação estava crescendo com os sobreviventes ashkenazim do Holocausto, bem como refugiados sefarditas exilados de países do Oriente Médio e norte da África, o tempo todo lutando com países vizinhos hostis e uma população palestina dentro e fora de suas fronteiras, que acreditavam que os sionistas haviam roubado suas terras.
Esta turbulenta mistura de povos forneceu uma riqueza de material para o Sr. Yehoshua e um círculo luminoso de autores que incluía Amos Oz e David Grossman. (Outros autores israelenses proeminentes, incluindo S.Y. Agnon e Aharon Appelfeld, tendiam a se concentrar mais na vida judaica da Europa e no Holocausto.)
Yehoshua foi um dos primeiros escritores de ficção “a dar expressão literária ao sofrimento e dilemas morais” desencadeados pela guerra que se seguiu à declaração de independência de Israel em 1948, diz Sidra DeKoven Ezrahi, professora emérita de literatura comparativa na Universidade Hebraica de Jerusalém. Em seus ensaios mais explícitos e palestras públicas, o Sr. Yehoshua afirmou o ideal sionista de uma Pátria judaica, mas indicou que os israelenses tinham que acomodar as necessidades das centenas de milhares de palestinos exilados daquela terra.
Em uma obra de 11 romances, três coleções de contos e quatro peças, ele abordou uma variedade de formas narrativas – do surrealista ao histórico – e mergulhou em temas incomuns.
“Quase todas as ficções de ‘Buli’ mudaram a conversa e constituíram uma inovação na ficção hebraica moderna, seja em forma ou conteúdo”, disse o professor DeKoven Ezrahi, usando o apelido do escritor.
Yehoshua era conhecido pelos amigos como um locutor animado que irradiava alegria de viver, embora seus romances e histórias fossem frequentemente tocados pelo desgosto. Os críticos o elogiaram por sua compreensão matizada dos impulsos contraditórios que atormentam as pessoas e sua capacidade de encontrar um humor terno em meio à tristeza e desespero.
“Risos e lágrimas são as melhores vitaminas para uma boa escrita”, Yehoshua observou em um perfil dele em video como agraciado em 2017 do prestigioso prêmio Dan Prize, dado a estudiosos, escritores e outros que, dizem seus patrocinadores, “aprofundam nosso conhecimento e compreensão do passado”.
No primeiro romance de Yehoshua, “O Amante” (1977), Adam, um israelense de meia-idade, procura o amante de sua esposa em meio às consequências caóticas da guerra árabe-israelense de 1973. Um personagem central é um adolescente árabe, Nahim, que acaba por ser o amante da filha de Adam – uma escolha literária ousada pelo autor para a época. Nahim, escreveu Alan Mintz, professor de literatura judaica no Seminário Teológico Judaico, tem “uma vida interior que não é em grande parte uma projeção de uma fantasia ou dilema judaico”.
Em “Um Divórcio Tardio” (1984), Yehoshua escreveu sobre um exílado que retorna a Israel para obter o consentimento de sua ex-esposa para um divórcio para que ele possa se casar com sua amante americana grávida.
A história é contada por diferentes narradores, uma técnica que lembra “O Som e a Fúria”, de William Faulkner. O capítulo de abertura, com uma epígrafe do livro de Faulkner, é contado por uma criança de 10 anos, um eco do narrador mais marcante de Faulkner, o deficiente mental Benjy. De fato, o crítico literário Harold Bloom escreveu no The New York Times Book Review que “O Sr. Yehoshua escreve à sombra de Faulkner, com uma mistura de Joyce”.
“É uma narrativa autêntica, representativa agudamente das realidades sociais atuais em Israel e marcada por extraordinárias percepções psicológicas por toda parte”, escreveu Bloom.
No “5 Estações” [“Five Seasons”] — que Yehoshua publicou numa tradução em inglês em 1989 e vendeu 50.000 exemplares do original em hebraico, o equivalente a um bestseller de milhões de cópias nos Estados Unidos, o protagonista, Molkho, fielmente cuidou com enfermeiro sua esposa morrendo apor sete anos de doença, às vezes banhando “seu corpo cheio di cicatrizes e torturado”, que já se transformara “em algum fóssil de uma espécie que se havia extinta há muito tempo”. No entanto, ele deseja estar livre do fardo de cuidar dela e espera não ter mais que suportar sua língua afiada.
Como o romancista Lore Segal observou em The Times Book Review, Molkho, enquanto sua esposa ainda está respirando, está de olho em seu consultor jurídico viúvo como uma “possibilidade pós-morte” e passa o resto do romance em encontros com outras possibilidades pós-morte.
Yehoshua ganhou o Prêmio Nacional do Livro Judaico de ficção com “Mr. Mani” (1992), que traça as andanças de seis gerações da família sefardita Mani através de períodos cruciais da História judaica. Cada um de seus cinco capítulos consiste no diálogo de um único orador que está contando uma História para outro personagem, com as respostas perdidas desse ouvinte implicadas nas observações do primeiro personagem. Para complicar as coisas, o romance segue para trás no tempo.
Embora evocativamente ambientados em Israel, os romances de Yehoshua estão repletos de temas que os conectam ao mundo ocidental contemporâneo. (O Sr. Bloom incluiu “Um Divórcio Tardio” em uma lista abundante de obras que compõem, em sua opinião, aquele rincão). Como o crítico Jerome Greenfield escreveu em 1979: “No desespero existencial, no pessimismo, no sentimento de deslocamento e alienação que permeia seu trabalho, Yehoshua estabelece uma ponte entre a escrita israelense moderna e um fluxo dominante de algumas das melhores literaturas ocidentais de nossa era.”
Saul Bellow chamou Yehoshua de “um dos escritores de classe mundial de Israel”. Seus livros foram traduzidos para 28 línguas. Ele ganhou o Prêmio Israel, concedido anualmente pelo Estado por importantes contribuições culturais, e em 2005 ele foi selecionado para o primeiro Man Booker International Prize, em seguida, dado para um conjunto inteiro de trabalho.
“Em um movimento de suas asas imaginativas”, escreveu Grossman, o romancista israelense, sobre o Sr. Yehoshua em um e-mail, “ele nos mostraria o quão banal e absurdo, apenas como a realidade — especialmente nossa, em Israel — é surrealista”
Ainda assim, o Sr. Yehoshua deixou claro quais eram essas opiniões, repreendendo os colonos judeus na Cisjordânia e condenando os líderes políticos de Israel por permitirem que eles expandissem seus números lá. No final da vida, ele defendeu a criação de um único Estado que englobasse Israel, a Cisjordânia e Gaza, onde judeus e árabes teriam direitos iguais e poderes de voto.
[ A defesa de um Estado Binacional – que divergia da posição predominante pela Solução de Dois Estados pelo Movimento PAZ AGORA, ao qual sempre pertenceu – foi expressa com ressalvas diante de um aumento aparentemente inexorável da Ocupação da Cisjordânia, embora Yehoshua ainda preferisse uma solução viável de Dois Estados, com maior potencial da extinção do conflito entre as duas nacionalidades – NT]
Yehoshua também causou polêmica com sua insistência de que a identidade autêntica como judeu exigia a residência em Israel. Ele disse uma vez sobre o protagonista de “Um Divórcio Tardio“: “Como o pai que desiste de suas responsabilidades e vai para a América, os judeus que deixam Israel para a América estão fugindo de sua responsabilidade.”
Em ensaios e conversas contundentes, ele disse que os judeus da Diáspora poderiam habitar ou descartar sua identidade judaica como uma jaqueta para se adequar ao momento, mas que para os israelenses, seu judaísmo era fixado por um Estado geograficamente definido e muitas vezes batalhado e, portanto, era virtualmente imutável.
“Ser israelense é minha pele; não é minha jaqueta“, disse ele em um simpósio do Comitê Judaico Americano em 2006.
Suas observações provocaram uma reação feroz de muitos judeus proeminentes americanos. O rabino Eric Yoffie, então presidente da União para a Reforma do Judaísmo, disse que a suposição de Yehoshua de que “um judeu que vive no estado de Israel sempre será judeu” enquanto um judeu americano não, seria “absurda e perigosa”.
Avraham Gavriel Yehoshua — as iniciais A.B. faziam parte de seu pseudônimo; ‘B” vem de seu apelido Buli — nasceu em 9 de dezembro de 1936, em Jerusalém, na Palestina britânica.
Seu pai, Ya’akov Yehoshua, descendente da comunidade sefardita de Tessalônica, Grécia, escreveu livros de folclore que retratavam as vidas de Jerusalém no final do século XIX e início do século XX. Sua mãe, Malka Rosilio Yehoshua, havia emigrado do Marrocos quatro anos antes de Avraham nascer.
A. B. Yehoshua cresceu em Kerem Avraham, um enclave de edificações de estilo europeu ao lado da Cidade Velha de Jerusalém, onde famílias relativamente prósperas alugavam quartos para escritores e artistas (Amós Oz também cresceu ali) Frequentou o Ginásio Rehavia, estabelecido em 1909 como primeira escola secundária em que as matérias eram ensinadas em hebraico moderno.
De 1954 a 1957, cumpriu sua obrigação militar, servindo como paraquedista do exército na crise do Suez, quando Israel, apoiado pela Inglaterra e França, tentaram reomar o Canal de Suez após ele ter sido nacionalizado pelo Egito.
Após sua dispensa, Yehoshua estudou literatura e filosofia na Universidade Hebraica de Jerusalém e ensinou no nível secundário. Mudou para Paris em 1963 para ganhar um mestrado em literatura francesa na Sorbonne. Foi convocado como reservista durante a Guerra árabe-israelense de 1967, novamente como paraquedista.
Ele começou a escrever histórias depois de sua primeira passagem pelo exército. Sua primeira coleção, “A Morte do Velho”, foi publicada em 1962.
Yehoshua era casado com a Dra. Ela, que morreu em 2016. Ele deixa uma irmã, Tzila Petrushka; uma filha, Sivan Yehoshua; dois filhos, Gideon e Nahum; e sete netos.
A partir de 1972, Yehoshua ensinou literatura comparativa e literatura hebraica na Universidade de Haifa, atingindo o posto de professor titular. A última novela, “O Túnel”, foi publicada em inglês em 2020.
[ por Joseph Berger | The New York Times | 15|06|2022 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]
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