[ Entrevista de Shlomo Sand por Ofri Ilany | publicada no Haaretz | 26|11|2021 | traduzida pelo PAZ AGORA|BR ]
NOTA: Os pontos de vista expostos pelo autor NÃO COINCIDEM NECESSARIAMENTE com os do PAZ AGORA e dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA e estão aqui publicados para alimentar o debate construtivo.
A primeira vez que Shlomo Sand ficou decepcionado com a classe trabalhadora foi quando tinha 16 anos. Ele tinha acabado de ser expulso do ensino médio em Jaffa e tinha começado a trabalhar em uma fábrica. “Eu era um rapaz trabalhador”, relata o professor Sand. “Fui trabalhar e estava cheio de entusiasmo pelo proletariado, à luz dos valores com os quais tinha sido inculcado pelo meu pai, que era comunista. Mas fiquei muito decepcionado: o desprezo que os veteranos tinham pelos jovens, a forma como exploravam a mim e a outros jovens trabalhadores. Porque eu era mais jovem, tinha que servi-los. Tive que varrer a fábrica. Eu disse ao meu pai: “Olhe para o seu proletariado.” Fiquei decepcionado.”
Alguns anos depois, depois de ver a ação na Guerra dos Seis Dias de 1967, o jovem Sand juntou-se ao Matzpen, uma organização socialista radical, antissionista. Lá, o jovem de Jaffa conheceu um grupo de intelectuais, a maioria deles de famílias cultas. “Eles eram um grupo de boêmios legais com grandes almas. Mas a distância entre utopia e realidade era muito grande. Havia tensão entre eu e eles: eu era um trabalhador manual, então achei suas fantasias de revolução improváveis. Eu acreditava em uma luta, mas não em uma revolução proletária. E isso foi na verdade com base no meu conhecimento com os trabalhadores. Deixei o Matzpen sem recriminações.”
Sand, 75 anos, é um dos intelectuais de esquerda mais conhecidos de Israel. Tendo ganhado fama principalmente graças ao seu polêmico livro “A Invenção do Povo Judeu” (publicado em hebraico em 2008, e em inglês no ano seguinte), ele é identificado com teses escandalosas que foram percebidas como um ataque às bases da ideologia sionista.
Agora, o historiador pós-sionista está lançando seus holofotes críticos para o seu próprio acampamento: a esquerda. Em seu novo livro, “Uma Breve História da Esquerda” (publicado em hebraico por Resling), Sand examina incisivamente a História da esquerda no início da era moderna, suas metamorfoses ao redor do globo e também seus profundos fracassos.
O seu ponto de partida é a situação sombria da esquerda mundial. “Decidi escrever o livro por causa do estado atual da esquerda”, diz ele. “Porque eu sempre me vi como uma pessoa de esquerda, toda a minha vida, a situação atual falou comigo, e eu também pensei que poderia resumir algumas coisas. Então o livro também é uma espécie de autobiografia.”
As Alavancas
De acordo com a sabedoria convencional, a esquerda tem uma data de nascimento precisa: 1789, ano em que a Revolução Francesa eclodiu. Na Assembleia Nacional que foi estabelecida em julho, os delegados inicialmente sentaram-se de forma mista, mas muito em breve os leais ao rei sentaram-se do lado direito e seus oponentes do lado esquerdo. Um representante da nobreza, o Barão de Gauville, escreveu em seu diário no final de agosto de 1789: “Tentei inúmeras vezes sentar nas diferentes partes da sala e não adotar os espaços marcados… mas fui obrigado a abandonar completamente o partido à esquerda. Esse foi o momento em que a “esquerda” mudou de um arranjo de cadeiras na Assembléia Nacional para um conceito político altamente carregado.
Sand, porém, localiza o nascimento da esquerda mais cedo: em 1649, na revolta puritana na Inglaterra. “Geralmente é aceito dizer que a esquerda nasceu na França. Mas na Grã-Bretanha, após a execução de Carlos I, um fluxo político bastante significativo, chamado Levellers, formou-se. Eles publicaram um jornal no qual levantaram a ideia de igualdade política para todos os homens. Essa foi a primeira vez na história que a ideia de igualdade socioeconômica foi apresentada.”
Mas houve revoltas de grupos oprimidos ainda mais cedo.
“Houve revoltas, mas não havia esquerda. Em Roma, houve a revolta dos escravos liderada por Spartacus, mas aquela não foi uma revolta de esquerda, porque não se baseava em idéias igualitárias – ele só queria transformar patrões em escravos e escravos em senhores. A religião judaica também libertou escravos não imaginados no Egito e os transformou em senhores de escravos em Canaã. Mas, antes do século XVII, a idéia de igualdade não existia. Igualdade foi um mito central que emergiu junto com o capitalismo. Foi de fato a mobilidade criada pelo capitalismo que levou à emergência do ideal de equalidade – equidade política e judicial”.
Diferentes definições de esquerda também existiram; por exemplo, como o campo do progresso, universalismo ou direitos humanos. Por que o foco em igualdade?
“O principal motor para a emergência da esquerda é o ideal da igualdade. Todos cidadãos são iguais em sua participação na formação do governo. Isto se torna o mito central da esquerda. Alguns dizem que a esquerda tem duas pernas: liberdade e igualdade. Mas a esquerda é baseada somente na igualdade.
As liberdades não estão embutidas na esquerda, elas são relacionadas ao liberalismo. Existe uma grande dose de confusão na definição da esquerda, especialmente na imprensa israelense, incluindo o Haaretz. Em Israel, todo ato liberal é chamado de “esquerdista”. As fontes do liberalismo ficam no círculos de afluência burguesa. Em suas resistências aos arbítrios do governo, eles fomentam o liberalismo.
“Em contraste” Sand continua, “a idéia de igualdade entre seres humanos une toda a esquerda – para o bem ou para o mal. Porque às vezes vocês corta cabeças para chegar à igualdade. Se você encarar as coisas com frieza, verá que mesmo no regime opressivo stalinista havia mais igualdade que nos períodos anteriores e posteriores ao comunismo soviético. É por isto que havia defensores da União Soviética, incluindo Jean-Paul Sartre, que se dispunham a ignorar a supressão por casa da igualdade que ela trazia. Eles se dispunham a esquecer liberdades de forma a alcançar igualdade”.
Você se engajou em cultos a mitos um bocado em sua carreira. Quando fala de “mito” da igualdade, quer dizer que lutar pela igualdade é uma ilusão?
“Como em toda grande fé, também na esquerda existe uma considerável mistura entre pensamento racional e crenças que falsificam a realidade por causa do desejo de acreditar em algo. Se você quer mudar o mundo, terá que fazê-lo não apenas por meio da racionalidade mas também por meio de mitos. Os mitos pertencem não apenas à direita, mas também à esquerda“.
Conforme Sand, o mito da igualdade constitui a maior conquista da esquerda internacional. “A esquerda imprimiu a idéia da igualdade em todas as sociedades”, diz. “Mesmo o fascismo e o nazismo tomaram algo do mito da igualdade. A Democracia, tamb[em está conectada à esquerda. O nascimento da esquerda está ligado à igualdade política. Democracia significa falar em nome do povo e se põe em prática mediante eleições. Mas a democracia também pode ser totalitária. Na Coreia do Norte, o país mais totalitário do planeta, o princípio democrático das eleições permanece. Assim como no Irã.
“Deste ponto de vista, a democracia triunfou”, elabora. “porque o soberano não pode governar sem representar o povo – mesmo que apenas aprentemente. Não existe soberano que não pretenda governar em nome do povo. Todo político contemporâneo falará sobre democracia. Isto, claro, é algo novo na história humana. Mas hoje esta sensibilidade está regredindo. Existe uma grande ruptura no mito da igualdade”,
Um dos seus surpreendentes argumentos é que a economia capitalista trouxe maior igualdade. Você escreve isto há 40 anos, os rendimentos de milhões na Ásia subiram substancialmente; a pobreza reduziu-se muito; a globalização ajudou a reduzir a desigualdade. Parece que você está dizendo que o capitalismo funcionou.
“Eu li o polêmico livro de Thomas Piketty,‘ Capital in the Twenty-First Century‘, que descreve a expansão da desigualdade nas últimas décadas. Sua ênfase fundamental é correta: a disparidade econômica no mundo ocidental aumentou no últimos 40 anos. Nisto ele acerta. Mas e quanto À igualdade internacional? Aqui a figura é diferente, especialmente se for levar em conta o que está acontecento na China: a industrialização rápida, o crescimento nas rendas. Encontrei um acadêmico diferente, Branko Milanovic, que disse que, ao final, a globalização capitalista fez o que o marxismo deixou de fazer: começou a elevar os padrões de vida de grupos muito amplos da população.
E, de forma geral, a igualdade do planeta aumentou. É uma revolução impressionante. Muito menos pessoas estão famintas hoje na China, Índia, no Vietnã. Não em todos países, mas em muitos deles.
“Eu chequei os números e descobri que quando se trata da expansão da desigualdades, Piketty está errado no que é precisamente a globalização capitalista que trouxe mudanças muito decisivas. E que isso não é menos importante que o salário de um trabalhador francês. São os grandes monopólios capitalistas que fomentaram isto – mas apenas em lugares como a China, onde existe um regime que media entre o capital estrangeiro e os salários de trabalhadores. Este é um tipo de regime que protege os trabalhadores”.
Isto soa como uma heresia. Se a globalização está gerando igualdade, para que a esquerda é necessária?
“Eu não me tornei um capitalista nem um admirador do capitalismo, embora seja muito importante que uma família chinesa não tenha que subsistir hoje à beira da fome, como era 30 ou 40 anos atrás. Mesmo em termos de igualdade sexual e de gênero – é impossível ignorar o que aconteceu graças ao capitalismo”.
Então, qual é o problema com o capitalismo?
“É um problema diferente. Todo este consumismo, cujo impulso é hedonista, está destruindo o planeta. Além das ameaças básicas ao homem, o capitalismo é responsável pela destruição do mundo. O capitalismo vive, à vezes precariamente, porque ele te persuade a adquirir coisas que você não precisa. Ligue a TV e veja as propagandas de carros”.
É por isto que o argumento ambiental se tornou mais potente luta anticapitalista. Mas a agenda ambiental não corresponde de fato às aspirações da classe trabalhadora.
“A demanda ecológica é nova para a esquerda. A Ecologia é estranha à esquerda; no passado, era de fato identificada com a direita e até com a extrema direita. Hoje, também a demanda ecológica pra reduzir a produção é contrária aos interesses da classe mais baixa; eles não conseguem conectar-se a isso. Os cortes na indústria pesada – em Michigan, por exemplo – conflitam com os interesses da classe trabalhadora. Existe uma antítese entre as classes altas afluentes no high-tech e as classes mais baixas, que levam trabalhadores a se conectar com o populismo do estilo Trump.”
Há uma forma de manter as duas agendas unidas?
“Nunca fui um bom estrategista, e tampouco tentei ser um profeta. Mas não creio em tal idealismo. Ideais não caminham sozinhos na rua, alguém tem que pegá-los pela mão. A classe trabalhadora escolheu populistas – de direita ou de esquerda. Na Europa, houve tentativas de criar populistas de esquerda também. Mas eu critico os populistas de esquerda também, por causa de sua demagogia nacionalista.
“Por outro lado”, continua “vemos nas classes high-tech gente que ganha bem e tem visões liberais. A questão é se esses liberais podem se conectar com grupos muito amplos que não gozaram de prosperidade econômica, que estão fora dessas grandes bolhas high-tech. É ncessário verificar se esses liberais da high-tech entenderão que seu destino político-social depende não apenas deles próprios. Caso contrário, descobrirão que as liberdades liberais poderão ser reduzidas mui rapidamente”.
Durante os últimos 200 anos, a luta entre direita e esquerda tornou-se um elemento tão básico da política moderna que achamos dificil lembrar que não precisaa ser assim. Mas de fato, a humanidade percorreu seu passado sem a esquerda, e provavelmente percorrerá o futuro do mesmo jeito. E isso pode acontecer logo. Conforme Sand, o projeto global da esquerda, que começou no início da era moderna, caminha para um fim. A Humanidade está dando as costas para os seus valores. Como ela vê, a principal causa para isto é o encolhimento da classe trabalhadora no mundo ocidental, que foi a base para os partidos de esquerda. Mas também há outras razões. Sand acredita que a visão da esquerda para o futuro, que nutriu as políticas da esquerda, sofreu um tiro fatal. Quando não há crença no futuro, e também difícil acreditar na reforma e no conserto do mundo.
O principal motor para a emergência da esquerda é o ideal da igualdade. Todos cidadãos são iguais na formação do governo; Este se torna o mito central da esquerda.
Você não enxerga um futuro para a social-democracia no mundo?
“A social-democracia fracassou. E não apenas em Israel. Não é atraente na Alemanha, na França e na maior parte do mundo. Um novo mito está sendo procurado, desesperadamente. Algo mais radical que a social-democracia, incluindo a ecologia e que aborde as relações entre o Estado e o capital privado”.
Então, hoje voce é um esquerdista desiludido?
“De jeito nenhum. Para mim é claro que se não fizermos parte da luta pela igualdade e liberdades, a situação política não permanecerá a mesma – ela regridirá. Acontecerão catástrofes, do colonialismo à piora da exploração – e não podemos ficar indiferentes a isso. Mas a esquerda está num estado talvez terminal.
O nível da soldariedade mundial enfraqueceu muito. A base dos valores sociais foi muito debilitada. Massas de pessoas estão se voltando para filosofias de direita racistas. Deslizando cada vez mais para a direita. Em Israel, há uma regressão de certos calores que foram válidos desde a criação do sionismo. Chegamos a uma situação na qual a maior da nossa sociedade não dá a mínima para o que acontece a 40 km de Tel Aviv. Mas a verdade é que Israel não é uma exceção. Existe uma falta de cuidado em outros lugares, também. Acabo de ver na TV francesa refugiados tentando chegar ao trem que cruza o Canal a partir da França. Imagens horríveis”.
Se a situação na esquerda e tão terrível, talvez ese não seja o tempo de publicar um livro que a critique…
“Pensei muito nisso. Mas aprendi algo da minha experiência de vida na esquerda: Não podemos dar cobertura a êrros e crimes. Cobrir alguma coisa apenas a piora. Ninguém pensará que esse livro foi escirito por alguém cínico e despreocupado. Mas é verdade que estou me sentindo perplexo, porque uma das coisas importantes na esquerda e no socialismo é que havia uma visão otimista do futuro. Um visão positiva guia. O livro não tem isto”.
Soa como se vocêetivesse escrito um obituário.
“Sim, estou tentando me conter. Toda minha via, eu lutei com a esquerda, abandonei a esquerda, traí a esquerda – assim me dizem amigos. Como alguém que dedicou anos de sua vida à esquerda, senti um grande redemoinho interno pqrq escrever um livro melancólico, e ainda para dizer que talvez algo nasça bi fytyri, Não desejo enterrar a esquerda. Mas esta é a situação. O mito de igualdade foi um motor tremendo na alteração do tecido das classes sociais no mundo moderno. Mas isto não significa que seja eterno. Tudo que nasce morre. A não ser o povo judeu, que é eterno”.
O último comentário foi irônico. Mais tarde, voltaríamos para as respostas sobre o livro anterior de Sand – que negava a existência de um povo judeu que foi exilado de sua terra e a ela retornou – o que gerou muita controvérsia.
Ilusiões Estilhaçadas
Da leitura de “A Short History of the World Left” pode-se ter a impressão de que a História da direita é composta por uma série de ilusões estilhaçadas. “O impulso por igualdade social traz consigo ilusões e mentiras”, diz Sand. “A imensa sede de Marx pela revolução, por exemplo, levou-o a idealizar o proletariado. Mas na prática, a consciência nacional revelou-se mais eficaz do que a consciência de classe internacional”,
Em Israel, também
“Verdade. Um dos grandes abalos à visão da esquerda foi seu fracasso em face do sentimento nacional. Marx estava certo em quase tudo que disse sobre o capitalismo, e errado em quase tudo que disse sobre o proletariado“.
Uma boa parte da classe trabalhadora também apoiava o fascismo e o nazismo.
“A esquerda sempre escondeu o fato de que uma parte importante da classe trabalhadora apoiava o fascismo, e ainda maia, o nazismo. Em contraste com o que a esquerda ideológica costuma dizer, o fascismo não é um movimento da pequena burguesia ou uma invenção da alta burguesia”.
É como se a esquerda revolucionária sempre tivesse que escolher o mesmo. Uma possibilidade, uma piada desconectada da realidade. A segunda opção, pior, é recorrer à violência, até terror, como foi com o stalinismo e muitos outros regimes no último século.
“O Grande Terror de Stalin’ não buscava criar uma sociedade socialista, mas consolidade o domínio forte por um Partido que iria se tornar uma classe social. Ao mesmo tempo, há um exagero anticomunista na descrição da violência soviética. Nos anos ‘1970, quando estudava em Paris, experienciei o pico do anticomunismo.
Foi publicado na França um livro sobre os gulags [campos de concentração soviéticos], e o livro dizia que 20 mihões de prisioneiros foram assassinados neles. Os historiadores britânicos, mais moderados, diziam 11 milhões. Hoje, se você for pesquisar, desobrirá um núnero entre meio milhão e um milhão de mortos no Gulag. É verdade que crca de 3 milhões morreram de fome na Ucrânia e outro milhão no Cazaquistão. Mas no próprio Gulag – cerca de um milhão.
“O regime stalinista foi assassino e totalitário, mas não pode ser comparado com o Nazismo. Penso ter havido grandes exageros, inclusive por historiadores, Além de que, o Ocidente não é menos violento contra populações externas, Sabe-se que os gentis britânicos são responsáveis pela morte de mais hindus e chineses que as mortes causadas por Stalin, A Inglaterra povocou a morte por fome de sete milhões de pessoas em Bengala, sob a East India Company no Séc. XVIII. O colonialismo matou não menos que o Stalinismo. Sob domínio belga, quase seis milhões de congoleses morreram em minas de diamantes e na indústria de borrada. Mas isso não chegou à consciência popular.
Parece que de alguma forma, você está perdoando os crimes do comunismo…
“Eu rompi todos meus laços com o comunismo à época de Ocupação de Praga em 1968. Assinei uma petição contra a invasão e o Partido cortou as relações comigo. Não faço desculpas para a esquerda. Também não nego que Mao e Stalin são parte de uma família, mesmo que eu nao goste disso. Conceitualmente, não nego o fato de que Pol Pot, o responsável pelo genocídio no Cambodja, tomou atitudes que parcialmente coincidem com minha ideologia. Todos estamos envelopados pelo mito da igualdade. São uns tipos de primos que eu desprezo.
“Ainda assim, diferente de outros, eu não apoiei Pol Pot. Noam Chomsky, o anarquista, defendeu Pol Pot por causa do seu antagoniismo [de Chomskys] pela hipocrisia american. Antagonismo pelas mentiras dos poderosos o leva a promover certas reabilitações de crimes. Havia Maoistas no Matzpen, também. Em privado, eram pessoas agradáveis, mas nunca entendi como é possível ser compreensivo do regimes autoritários”.
E quanto a Lenin?
“Ainda tempo um lugar quente no meu coração para Lenin – não porque foi um grande marxista, mas porque ele acabou com o mais terrível morticínio da Humanidade, a 1ª Guerra Mundial. Por outro lado, ele se deslumbrou pelo poder que tinha nas mãos. Nem por um momento, Lenin achou que o socialismo poder ser introduzido na Rússi, com um proletariado de apenas 4%. Ele tinha certeza de que a revolução mundial deveria começar na Alemanha. Mas ele sentou e esperou que ela acontecesse e, no momento que viu que estava acontecendo no Ocidente, não esqueceu do poder que já tinha acumulado. Ninguém renuncia ao poder que tem. Ele se manteve no poder e entrou num mundo de ilusões”.
Você sustenta que os crimes do stalinismo e do maoísmo derivam das mentalidades russa e chinesa, e não da ideologia marxista.
“No Oeste, o socialismo não se torna violento nem quando chega ao poder. Veja o caso da França durante o período do Front Popular nos anos ‘1930s. A esquerda que aflora dentro dos escopos liberais não é capaz de gerar violência. Matanças na população ocorrem em sociedades pré-industriai. A violência de esquerda é característica de regimes com uma tradição não-liberal extra-européia. Eu diria que elas são culturas anti-liberais. E quando uma esquerda marxista-leninista chega em uma delas, gera violência e às vezes violência horrível, para alcançar objetivos que é incapaz de atingir pacificamente.
“Uma das conclusões que tive ao trabalhar no livro é que se deve tomar uma visão de longo prazo. Sempre que há estruturas do pré-capítalismo de longo prazo que condicionam a atitude faze o liberalismo. Cheguei à conclusão de que tanto na União Soviética quanto na China, o longo prazo é mais importante que a ideologia ou a mudança nas relações sociais que a política gera. Há continuidade entre Ivã o Terrível, Stalin e Putin, por exemplo, considerado um liberal econômico. Não há nada de socialista nele – e é autoritário.
“É a mesma coisa com a China, que também me ensinou que existe uma continuidade de estruturas de longo-prazo, que é mais decisiva do que ideologias. É o mesmo no Oriente Médio. No mundo do Islã, movimentos de esquerda foram esmagados pelo exército. No final, na Síria, Iraque e também na Argélia. o exército foi decisivo. Eu proponho a hipótese de que Marx e Darwin chegaram aqui cedo demais. E ambos foram aceitos apenas em círculos judaicos e cristãos”.
Isso soa muito essencialista.
“Edward Said diria que sou um orientalista. Mas eu não ligo. Porque conforme o livro de Said [“Orientalismo” de 1978], pode-se pensar que o que causou que o Leste ficasse para trás foi o Orientalismo. Acho que realmente houve o Orientalismo, mas as fundações do atraso são relacionadas a processos sociais, e também à religião muçulmana. O longo prazo é decisivo em História. Também é o caso da social-democracia nos países nórdicos”.
O que você quer dizer?
“Existem os que dizem que precisamos de uma social democracia no estilo sueco em Israel. Todos tipos de intelectuais bem reconhecidos em Israel dizem isto. Mas quando examinei o assunto e perguntei por que a Escandinávia tem um movimento de trabalhadores forte, mas que preserva uma tradição liberal muito profunda, descobri que nem Suécia, Noruega ou Finlândia jamais tiveram de fato um instituição feudal do tipo que existiu em outras regiões da Europa. Os camponeses de lá foram livres por um longo tempo, então com a industrialização, o nascimento do proletariado ocorreu numa forma diferente – o que explica a diferença. Existe lá uma longa tradição de autonomia entre a classe camponesa que se torna a classe trabalhadora. O longo prazo é decisivo na História”.
Você quer dizer que a social-democracia não pode existir em Israel?
“No geral, não acho ser possível. A social-democracia não pode ser um modelo aqui. A social-democracia no Ocidente liberal não nasceu de idéias, mas de um conflito entre capital e trabalho. As grande conquistas no norte da Europa vêm da força das organizações de trabalhadores no conflito com o grande capital. Sem um conflito deste tipo, a social-democracia não emergirá. Mas nada deste tipo ocorreu em Israel. A esquerda sionista nasceu das necessidades de colonização. Mas não é uma social-democracia. Não há conexão entre social-democracia e a esquerda israelense. Então todas as tentativas patéticas da esquerda israelense terminaram em 40 anos”.
A esquerda tenta apelar para a classe trabalhadora. Por anos ela tem procurado se conectar com a ‘periferia’ e os Mizrahim.
“Tais tentativas são patéticas e mudas. Porque uma das coisas importantes sobre a esquerda ocidental é o encontro entre grupos intelectuais e organizações de trabalhadores muito fortes. Essas tentativas lembram os Narodniks, revolucionários na Rússia dos século XIX que fizeram um esforço para apelar ao povo e tentaram encontrar o socialismo entre camponeses. É o mesmo com os ‘Mapainiks’ [referindo-se ao Mapai, antecessor do Partido Avodá] em sua busca para atrair os Mizrahim [judeus oriundos do Oriente Médio], que trouxe figuras tragicômicas como Avi Gabbay e Amir Peretz. São gente muito agradável, mas não há conexão entre eles e as condições socioeconômicas em Israel.
A conexão entre os Mizrahim e a esquerda é uma causa perdida?
“A forma como esse grupo se pendura em [Benjamin] Netanyahu, que é o símbolo de todas coisas que descrevem um Ashkenazi, é claramente desanimadora, A cultura dos judeus árabes que foram trazidos para Israel ensinou que, para se integrarem, eles teriam que ser o mínimo possível árabes. Mas eu não os rejeito, pois meu futuro depende deles. Acredito que no longo prazo eles descartarão a síndrome de não serem árabes sob qualquer circunstância.
‘Nós ficamos em Jaffa’
Shlomo Sand nasceu em 1946 num campo de refugiados em Linz, Austria, de pais judeus poloneses que haviam fugido do Uzbequistão durante a guerra. A língua nativa da mãe era o Yiddish. Na sua infância, seu apelido era Samek. Seu pai renunciou à religião na juventude, juntou-se ao Partido Comunista e foi aprisionado na Polônia pela atividade no partido. Mesmo não sendo sionistas, a família imigrou para Israel em 1948, instalando-se num apartamento de um dormitório em Jaffa.
“Meu pai era um trabalhador que executava todo tipo de tarefas, desde ´porteiro até guarda noturno. Minha mãe era empregada doméstica numa casa de famlia no norte de Tel Aviv.
Por causa da sua ideologia comunista, meu pai recusou aceitar reparações da Alemanha, junto com os Cherutniks [do Partido Cherut, de Menahem Begin, antecessor do direitista Likud]. Aconteceu que a maioria da família dos meus pais se mudou para o norte de Tel Aviv, e apenas nós permanecemos na empobrecida Jaffa.”
Se não participarmos na luta pela igualdade e liberdades, a situação política não ficará como está – irá piorar. Acontecerão catástrofes. Sand
Como observado, Sand foi expulso da escola. “Passei um período com drogas”, conta. “Não drogas pesadas, mas nafas [marijuana], todo tempo. Meu melhor amigo e eu mergulhamos na fumaça até que encontramos uns voluntários americanos que vieram a Israel porque não queriam ir para o Vienã. Um deles nos apresentou à heroína. Eu fiquei careta e não cedi. Meu amigo começou com aquilo, e no fim as drogas o mataram. Eu caí numa enorme depressão”.
Após o exército e depois dos exames de matrícula, Sand entrou na Universidade de Tel Aviv . “Eu tinha cabelos longos e usava correntes em volta do pescoço”, diz, “e de repente quando comecei a estudar História me destaquei”. Ele escreveu sua dissertação de doutorado (sobre a teoria política de Georges Sorel) em Paris, e se tornou professor de História da Era Moderna. “Esta foi a primeira coisa em que tive sucesso – até então eu fracassara na maior parte cas coisas que fiz”.
Ele conheceu a futura esposa, Varda, em 1973, quando foi enviado à Península do Sinai, durante a Guerra do Yom Kipur. “Eu estava no Moshav Neviot e a parei na estrada, porque havia uma ordem para impedir civis de passar”, ele lembra. “Ela era uma hippie de um kibutz”. Na verdade, também ela vinha de uma família devotadamente esquerdista. Seu pai, um não judeu, foi anarquista em Barcelona e veio a Israel porque tinha ouvido falar que havia comunas anarquistas aqui.
Os Sands, que vivem em Tel Aviv, têm duas filhas e três netos. Varda é pintora e desenha as ilustrações originais de capa para a maior parte dos seus livros, incluindo seu trabalho mais conhecido, “The Invention of the Jewish People,” que foi traduzido para 23 línguas desde sua publicação inicial em 2008.
O livro descreve o conceito de povo judeu como um mito cristão que foi adotado pelo sionismo, e mantém que os romanos não exilaram os judeus, mas que os antepassados dos judeus de Ashkenaz (associados à Alemanha e norte da Europa), Yemen e Norte da África se converteram ao judaísmo. Em particular, Sand recriou a hipótese de que as raízes dos Judeus Ashkenazis não estão na Terra Prometida, mas no império dos Khazares, um povo turco, cuja terra ficava na região do Volga e do Cáucaso e cujos reis se converteran ao judaísmo em algum ponto de Idade Média.
Sand observa que continua a receber cartas de leitores do livro em todo mundo, incluindo algumas que atestam que suas famílias mantiveram a tradição Khazar por gerações. O objeto dos Khazares aparentemente continua a assombrar Sand. Em 2019 ele publcou um romance policial baseado no campus, “To Live and to Die in Tel Aviv” (hebraico), sobre um historiador da Tel Aviv University que pesquisa sobre os Khazares e é morto misteriosamente, com envolvimento de serviço secreto.
Alguma vez você temeu ser morto?
“Aconteceram coisas. Mesmo agora, há sérias manifestações de hostilidade”.
Você acha possível que um historiador em Israel seja assassinado por questionar o mito sionista?
“Atualmente não. Uma das coisas mais fortes do sionismo é que judeus raramente são mortos por judeus. Sangue judeu não é derramado – não de forma organizada e não espontâneamente.
O serviço secreto [Shin Bet] não se comporta conosco da maneira como faz com árabes, de forma nenhuma. Esta é a situação agora, mas poderia mudar. No passado, judeus que punham em perigo o projeto nacional eram ameaçados e mortos. Mas eu não sou tal impedimento, um perigo ou tudo que importe ao emprendimento nacional. Não acho que exista uma razão para me matar. Se eu fosse organizar um grande movimento não-sionista, seria outra coisa. Mas intelectuais frustrados não são ameaçados. De qualquer forma, no romance existe um motivo duplo para a morte: dor e amor homosexual, além do aspecto político. Mas as coisas estão entrelaçadas. A ameaça político-intelectual não é suficiente para cometer um assassinato; é conectado a frustrações sexuais”.
O livro não parece ter sido um grande sucesso.. Isto te decepcionou?
“O livro foi um grande sucesso na França. Não me esforcei para traduzi-lo para mais línguas. Eu gosto de novelas de detetive, e sonhava em escrever uma, faz muito tempo. Desde minha juventude, eu não lia mais Dostoyevsky – lia novelas de detetives”.
Você põe um monte de intrigas dos corredores da universidade para dentro do livro. Há um gênero popular, onde acadêmicos expõem os segredos sujos da faculdades de humanidades. Isto interessa a alguém de fora de universidade?
“É verdade que novelas acadêmicas não funcionam bem. O assunto pouco interessa ao público em geral. Mas por anos eu desejei escrever sobre o que experienciei. 34 anos nos corredores do Gilman Building [na Universidade de Tel Aviv]. Eu estava de fato muito mimado. Meu caminho estava pavimentado no departamento de História, que me adotou, e fui promovido muito rápido. Por outro lado, a hipocrisia pode ser especialmente desenfreada em eventos acadêmicos e intelectuais. Vi casos em que assessores acadêmicos estavam apreensivos de que seus alunos pudessem puxar o tapete deles e vi que muitos dos promovidos não eram necessariamente os mais brilhantes”.
Você disse uma vez que o futuro das faculdades de humanidades é semelhante ao das faculdades de teologia, E que ambas precisam receber enterros dignos.
“Sim. Esta é a tendência. A História também está morrendo. Os historiaores preencheram seu grande papel de nações criadores e agora são menos necessários. As faculdades de humanidades estão em sua fase crepuscular. O que nascerá em seu lugar? É uma questão diferente. Embora eu ache que não havia muita humanidade na faculdade de humanidades no passado, tampouco”.
Talvez parte da atração dos intelectuais pela esquerda venha dos papéis significativos que intelectuais desempenharam naqueles regimes [comunistas]. De um certo ponto de vista, os intelectuais estiveram no poder.
“Intelectuais públicos têm um papel importante em transformar instintos em idéias coerentes e programas políticos. Um intelectual é um cara qie cria opiniões através de palavras. Em partidos de trabalhadores no Ocidente, omtelectuais não foram em geral autorizados a dirigir os partidos, mas nas revoluções não-ocidentais, o lugar do intelectual é central. Lenin foi um intelectual, per se; Mao na China – e até Stalin. Fiquei surpreso quando li Stalin. Eu tinha como imagem dele um georgiano grosseiro, mas este definitivamente não é o caso. Ele tinha todo tipo de complexos, mas ele era um inteletual. No final, quando eles se tornam líderes, não têm mais tempo para escrever”.
YVocê escreveu um livro entitulado “The End of the French Intellectual?” A situação é realmente tão preocupante?
“Não existem mais coisas como intelectuais na França. Não há mais gente como Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Na França, mais do que em qualquer lugar no mundo, os intelectuais ocuparam um lugar muito importante na cristalização de idéias da esquerda, após o Caso Dreyfus. Foi um conjunto de intelectuais de nível muito alto, que não mais existe hoje. Gente das universidades também se permitiram irromper noespaço público. Mas algo aconteceu. Não existem mais estrelas. Há pessoas aábias na universidae, mas estão ocupadas com coisas muito pequenas. Não são intelectuais. Não se preocupam em abrir a boca, porque sabem que não devem arriscar. Ao mesmo tempo, a mídia gosta de simplicidade. A realidade molda um tipo de intelectual público que não tem profundidade. Gente como Bernard-Henri Levy e Alain Finkielkraut têm sucesso porque fazer aparições impactantes na TV. Mas não são filósofos. Ninguém fará um seminário sobre a filosofia deles”.
Mas você foi capaz de empacotar as suas idéias num estilo de mídia inteligente. “When and how” – a frase aparece nos títulos de vários dos seus livros [em hebraico] – uma marca poderosa.
“Esta é uma questão um pouco dolorosa. Eu quero disseminar minhas idéias. O título original do livro era ‘Haleom Kehalom’ [A Nação como um Sonho], e então mudei para ‘Como e Quando [foi Inventado o Povo Judeu?]’. Este é um título muito intrigante, um gatilho muito longo. Fiquei realmente surpreso quando vi que se tinha tornado um best seller.”
Houve os que se queixaram por você ter escrito fora do seu campo de pesquisa
“Houve também outros historiadores que se mudaram para outros campo, e ninguém os criticou. Mas, tratando-se de Shlomo Sand, houve alguns problemas porque eu não estava escrevendo sobre meu campo. O caso é outro. rapidamente percebi que eu havia tocado em um dos elementos que dão forma a toda a consciência judaica-israelense”.
Você realmente acha que o que escrveu é tão escandaloso? A hipótese dos Khazares é tão ameaçadora à academia universitária?
“Esqueça os Khazares. O fato é que até hoje nenhum livro foi publicao sobre o ato do exílio em conexão com a destruição do Segundo Templo. Porque não houve exílio. Ainda, nenhum graduado do segundo-grau sabe que havia um reinado no Yemen que foi convertido ao judaísmo no século V -C.E. Como pode ser? A convenção de que os judeus são um povo, uma raça, que foi desenraizada e está errando pelo mundo tem uma força tremenda”.
Então você acha que foi corajoso?
“Eu tive um certo papel como intelectual crítico em Israel. Mas eu o fiz após me tornar um professor titular, Não tenho muita coragem. Se tivesse publicado o livro antes de ser titulado, não teria sido promovido. Com certeza. Existem mecanismos iliberais na Universidade. Hoje, eu não ganharia uma posição de ensino e não atingiria o cargo de professor. Não tenho ilusões sobre isso”.
Você agora vai ter problemas com a esquerda – não tem medo de que eles te chamem de derrotista?
“Já passei disto. Há muito tempo parei de me perceber como um herói da classe trabalhadora”.
[ Entrevista de Shlomo Sand por Ofri Ilany | publicada no Haaretz | 26|11|2021 | traduzida pelo PAZ AGORA|BR ]
NOTA: Os pontos de vista expostos pelo autor NÃO COINCIDEM NECESSARIAMENTE com os do PAZ AGORA e dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA e estão aqui publicados para alimentar o debate construtivo.