Políticas de ação afirmativa de acesso à educação favorecem processo virtuoso de transformação da sociedade
[ por Oscar Vilhena Vieira | publicado na Folha de São Paulo | 20|11|2021 ]
Como boa parte da classe média branca brasileira, cresci e fui educado num ambiente predominantemente segregado. Com exceção de uma colega negra, que era filha da servente da escola onde realizei o curso primário, jamais tive colegas ou professores negros nas escolas e universidades pública ou privada que frequentei.
Apenas quando fui estudar nos Estados Unidos, em meados dos anos 1990, tive a oportunidade e o privilégio de conviver com alunos e professores negros, que muito me marcaram, como Kimberlé Crenshaw.
O fato de que apenas 1,8% dos jovens negros, entre 18 e 24 anos, se encontravam no ensino universitário em 1997, conforme dados do IBGE, indica que minha experiência pessoal não foi destoante em relação ao padrão de segregação racial que imperou por mais de um século em nosso sistema de ensino universitário.
Essa realidade apenas começou a ser alterada em 2001, com a adoção de uma pioneira política de ação afirmativa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, paulatinamente expandida com a criação do Prouni, em 2004, e consolidada com a promulgação da lei 12.711, de 2012, que estabeleceu um robusto programa de ação afirmativa para as universidades federais pela combinação de cotas sociais, para alunos oriundos de escolas públicas e de baixa renda, e cotas raciais e étnicas, além de cotas voltadas a alunos portadores de necessidades especiais.
Essas medidas, convalidadas pelo Supremo Tribunal Federal, provocaram uma verdadeira revolução no ensino universitário, antes reservado a brancos oriundos de famílias mais afluentes e escolas de melhor qualidade. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), em 2018, pela primeira vez, o número de alunos negros suplantou o de brancos na universidade pública, apesar de persistir desigualdade racial nos cursos mais concorridos. Proporcionalmente, o número de brancos com diploma universitário ainda é bem maior, mas os avanços são evidentes. Como salientou o professor José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, esse conjunto de políticas constitui “a mais criativa, consistente e potente engenharia do Estado brasileiro para combater o racismo”.
O fato é que políticas de ação afirmativa de acesso à educação, não apenas contribuem para corrigir distorções estruturais sedimentadas pelo racismo e pela desigualdade –e, portanto, são uma questão de justiça–, como também favorecem um processo virtuoso de qualificação do ensino e transformação da sociedade. Nesse sentido, o reforço das políticas de ação afirmativa, sobretudo com a criação de mais e melhores condições para a permanência de alunos negros e de baixa renda na universidade, é uma condição indispensável para qualquer projeto sustentável e equitativo de desenvolvimento econômico, estabilização da democrática e consolidação do Estado de direito no Brasil.
Como salienta Hédio Silva, grande advogado e ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, embora as ações afirmativas constituam o pilar de uma política antirracista, elas devem estar associadas a outras medidas urgentes, como o “combate ao crescente racismo religioso, voltado a suprimir a dignidade do povo preto” e a “interrupção urgente do extermínio sistemático de jovens negros em nossas periferias sociais”, sem o que a combalida democracia brasileira seguirá incompleta.
Neste dia de tributo a Zumbi de Palmares, Dia da Consciência Negra, é necessário apelar à consciência de brancos antirracistas para se juntarem ao povo negro nessa dura, mas indispensável caminhada pela supressão dos grilhões que estruturam o racismo brasileiro.
[ por Oscar Vilhena Vieira | publicado na Folha de São Paulo | 20|11|2021]
Oscar Vilhena Vieira é Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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