A NOVA PROPOSTA DE ORÇAMENTO MOSTRA QUE A COALIZÃO ESTÁ PROMOVENDO REFORMAS ABRANGENTES, APESAR DE SUA FRAGILIDADE
Por quase 40 anos, orçamentos estatais israelenses têm vindo ao mundo em duas partes. A primeira é a proposta de lei com todos os números: uma infinidade de colunas de projeções de receita e despesa, detalhadas até o nível de agência e programa.
A segunda parte é conhecida pelo desajeitado nome de “Hok Hahesderim” ou a “Lei das Disposições”. Essa lei compreende algumas centenas de páginas de prosa densa, delineando as reformas estruturais, institucionais e políticas necessárias para fazer funcionar os números da outra parte.
Quando os israelenses falam de “orçamento estatal”, eles se referem às duas leis em conjunto: os números crus e suas consequências institucionais e políticas.
A elaboração da Lei das Disposições é um processo árido, complexo e altamente burocrático, normalmente ignorado pela imprensa e a maioria dos deputados. E isso é um erro, porque nenhum outro texto – nenhuma outra lei, nem o acordo de coalizão e nenhum discurso político – oferece uma janela mais clara para as verdadeiras prioridades e intenções do governo.
A Lei das Disposições tem que ser aprovada para que o orçamento seja aprovado e o orçamento tem que ser aprovado se o governo quiser evitar a imediata convocação de eleições, exigidas por lei quando a votação do orçamento fracassa. Assim, nenhuma coalizão que deseja sobreviver pode se dar ao luxo de votar contra a Lei das Disposições, um fato que a transformou em um conveniente veículo para todos os que querem garantir que um item de legislação seja aprovado como lei.
Tudo isso nos traz à atual proposta de Lei das Disposições, que deve enfrentar a primeira votação no gabinete neste domingo.
É um documento extraordinário, que as autoridades do Ministério das Finanças acreditam estar entre as mais complexas leis de disposições de todos os tempos, ao longo de cerca de 400 páginas, contando os apêndices.
Parte dessa extensão é função dos sem precedentes três anos e meio desde a aprovação da última Lei das Disposições em março de 2018. Nenhum orçamento estatal foi aprovado desde então, por causa dos dois anos de crise política que começou no ano seguinte.
Mas existem mais razões básicas para a extensão da proposta de lei. Ela inclui a maior coleção de grandes reformas políticas que se possa lembrar, reformas que muito poucos no serviço público acreditaram que poderiam ser aprovadas enquanto ainda estivessem vivos.
É uma ironia que ressalta as estranhas novas regras deste governo sem precedentes: a talvez mais frágil coalizão da história de Israel, que detém a maioria da Knesset com a menor margem possível e abrange profundas diferenças políticas, está pronta para promover as mais ousadas reformas em uma geração.
CONCORRÊNCIA NA KASHRUT
As reformas incluem uma profunda reestruturação do sistema estatal de Kashrut, um monopólio fechado há muito protegido pelos partidos ultraortodoxos Shas e Judaísmo Unido da Torah, que se tornou um terreno fértil para a pequena corrupção e uma fonte de frustração sem fim para as indústrias de alimentação e hotelaria de Israel.
O novo sistema, defendido pelo Ministro dos Assuntos Religiosos Matan Kahana, romperá o monopólio de supervisão do Rabinato, permitindo que companhias privadas de Kashrut se formem e ofereçam supervisão, com o Rabinato estatal estabelecendo os padrões gerais de Kashrut. Cada empresa terá que publicar as especificações de seus próprios padrões e a empresa que quiser oferecer um padrão mais leniente do que o do Rabinato terá permissão para apelar para quaisquer três rabinos municipais para fazê-lo.
Kahana espera que a burocracia religiosa, patentemente disfuncional, seja substituída por um próspero mercado livre formado por empresas de supervisão concorrentes, com empresários e consumidores coroando os vencedores através das forças de mercado.
É o tipo de reforma que poucos acreditavam ser possível até que, de repente, lá estava ela totalmente desenvolvida e redigida na Lei das Disposições.
OVOS MAIS BARATOS
Há também a reforma da indústria agrícola sendo promovida pelo Ministro da Agricultura Oded Forer e o Ministro das Finanças Avigdor Liberman.
O setor agrícola de Israel há muito é uma das mais protegidas e protecionistas indústrias do país, uma relíquia do passado socialista de Israel que sobrevive principalmente por causa das preocupações entre os estrategistas de defesa, que acham que o fim dos massivos subsídios e proteções aos agricultores pode fazer encolher a produção israelense de alimentos, tornando o país incapaz de se auto alimentar em caso de um futuro bloqueio em tempos de guerra. O resultado tem sido um regime de quotas impostas pelo governo em todo o espectro da produção agrícola, de ovos a abacates, para evitar excesso de oferta no mercado e manter os agricultores solventes financeiramente.
A nova reforma vai diminuir consistentemente essas quotas e, crucialmente, relaxar os atuais limites draconianos para importação de produtos frescos do exterior. Vai agilizar as importações através da adoção dos padrões europeus para muitas categorias de produtos. O plano inclui um generoso pacote de subvenções governamentais para a modernização das fazendas e da infraestrutura, incluindo novas isenções fiscais para encorajar o investimento comercial no setor agrícola.
Mas está enfrentando um oposição veemente, na última semana, por parte de agricultores e lobbies agrícolas que temem a nova competição. Esse tipo de resistência condenou por décadas as tentativas de reformar o setor agrícola. Agora não mais.
As projeções do Ministério das Finanças dizem que se espera uma economia para os consumidores de 2,7 bilhões de shkalim (830 milhões de dólares) em suas despesas de supermercado. O preço dos ovos deve baixar cerca de 25%, de acordo com números do governo.
A suspensão de restrições à importação tem outra vantagem, dizem as autoridades. Alguns produtos sazonais, como as nectarinas, estarão disponíveis o ano inteiro, em vez da estreita janela da colheita do verão israelense. Novos itens como as frutas do bosque, que não crescem na bacia do Mediterrâneo, estarão disponíveis pela primeira vez nos supermercados israelenses.
FACILIDADE DE IMPORTAÇÃO
Uma reforma abrangente do Instituto de Padrões de Israel, promovida pela Ministra da Economia Orna Barbivai, poderá ser a mais dramática do lote.
O Instituto é o órgão oficial que concede certificação de segurança para os produtos (vendidos) no mercado israelense. Tem sido por muito tempo o gargalo que encarece muitos produtos ao consumidor na economia israelense. Diferentemente da América do Norte e da maioria da Europa, o Instituto de Padrões de Israel mantém um padrão israelense próprio para segurança e funcionalidade para incontáveis produtos, de pasta de dente a móveis, de televisores a alimentos.
Isso significa que os importadores para nosso pequeno mercado não podem se basear nas certificações de padrões que recebem dos EUA e da União Europeia. Para vender seus produtos para o pequeno Israel, tem que passar por um novo e completo processo de checagem e verificação. Isso também significa que os produtos têm que ser checados nos portos quando chegam ao país. A certificação do exterior não é suficiente para aprovar sua entrada. Essa burocracia adicional pode significar que os containers às vezes esperam semanas nos portos enquanto os produtos são testados.
O sistema israelense não é um acidente. Foi construído num esforço deliberado de aumentar o custo das importações para oferecer proteção às indústrias locais contra os competidores estrangeiros. Essa é parte da razão pela qual os bens de consumo em Israel custam em média 30% mais do que em outros países da OCDE, com uma diferença ainda maior quando se trata de comida embalada e artigos de toilette.
A nova reforma é tão abrangente quanto sua presença na Lei de Disposições era inesperada. Em lugar da tradicional checagem de carga nos portos, o Instituto de Padrões permitirá a entrada de produtos com reconhecida certificação internacional. A checagem nos portos será substituída por um sistema de checagem de segurança surpresa nas lojas. Em outras palavras, Israel adotará a regulação básica de padrões atualmente em uso nos EUA e na União Europeia. As importações chegarão sem entraves, novos importadores entrarão no mercado e os preços nas prateleiras das lojas mergulharão, espera Barbivai, para o nível europeu.
Há muito mais na Lei das Disposições: um imposto sobre bebidas açucaradas que pretende controlar o estratosferico consumo de açúcar e o consequente aumento da diabetes, que quadruplicou nas últimas duas décadas; um acentuado aumento de imposto sobre plásticos descartáveis que dobrará seu preço no mercado num esforço para desestimular seu uso; uma taxa, pela primeira vez na história, para entrar de carro na área metropolitana de Tel Aviv nas horas de rush, etc..
REFORMAS FUNDAMENTAIS
Essas reformas tem uma característica em comum: todas foram defendidas por muitos anos, mas não puderam avançar devido à resistência de grupos industriais, agências governamentais ou facções políticas diversas. Os partidos ultraortodoxos se opuseram a taxar as bebidas açucaradas e os utensílios de plástico descartáveis, enquanto os agricultores e lobbies industriais resistiram às reformas na agricultura e nas importações.
Mas o que explica a repentina indiferença a todas essas resistências, tudo de uma vez? Não são as personalidades envolvidas. As reformas estão sendo promovidas por diferentes ministros de todo o espectro de partidos políticos.
Pode de fato ser o resultado da fragilidade e instabilidade do governo Bennett-Lapid.
Os últimos 12 anos de governo de Benjamin Netaniahu foram marcados por um duro controle sobre o gabinete e a coalizão. Novas iniciativas e reformas controversas foram contidas. Menos iniciativas significavam menos lutas desestabilizadoras. Estabilidade era essencial, assim nada que pudesse causar dissensão dentro da coalizão poderia avançar. Ninguém nem contemplou reformas na burocracia religiosa estatal enquanto os partidos ultraortodoxos estavam na coalizão. Sempre que possível, a política doméstica era feita de acordo com os grupos de interesse relevantes.
Assim foi que 12 anos de governo Netaniahu viram um monte de atenção dada ao Irã, aos palestinos e à outras preocupações geopolíticas, mas relativamente poucas reformas significantes relativas às necessidades diárias dos israelenses comuns. Apesar dos protestos contra o custo de vida em 2011, o custo de vida não foi seriamente tratado nos anos subsequentes.
A priorização da estabilidade levou o governo à imobilidade. Burocracias ineficientes e monopólios religiosos estatais ficaram sem tratamento. Os gargalos da economia, como o Instituto de Padrões, não foram desafiados.
Essa lógica se auto reverteu no novo governo – não por causa que Naftali Bennett está mais devotado a reformar burocracias antigas e ineficientes do que seu antecessor; na verdade nem é por causa de Naftali Bennett.
A capacidade do novo governo de promover reformas não vem de seu líder, mas da falta de um. Nenhum político individualmente domina esta coalizão como fez Netaniahu. É um governo profundamente consciente de que qualquer de seus membros pode derrubá-lo a qualquer momento. Nesse sentido é um gabinete mais igualitário do que qualquer outro na história de Israel. Bennett e Lapid têm que persuadir e convencer. Eles têm muito pouco espaço parlamentar para exigir ou punir.
Este simples fato de matemática política concedeu a cada chefe de partido e ministro do gabinete na nova coalizão, autoridade incomumente ampla sobre os domínios políticos concedidos pelos acordos de coalizão.
A reforma agrícola de Liberman e Forer é deles e ninguém no gabinete tem capacidade significativa de pará-la, exceto apelando para a boa vontade. O mesmo é válido para a reforma nas importações de Barbivai e na reforma do Kashrut de Kahana – cada um é mestre do seu domínio.
É claro que a fragilidade da coalizão faz com que cada ministro e partido esteja ansioso para ser visto conquistando grandes vitórias rapidamente. No passado, as propostas de reforma do Ministério das Finanças às vezes encontravam ministros céticos, armados com contra-argumentos fornecidos por lobistas e grupos de interesse. Essas mesmas autoridades do Tesouro estão agora encontrando ministros ansiosos por novas iniciativas e formas de deixar suas marcas.
As autoridades do Ministério das Finanças têm andado pelos salões dos ministérios em Jerusalém esta semana com um ar perplexo pela inesperada boa sorte.
Quando o governo tomou posse no mês passado, os especialistas sugeriram que pairar permanentemente sobre a beira de um precipício político tornaria tímidos os novos ministros e sem confiança o governo. Se a Lei das Disposições indica alguma coisa – e ela indica – a vida na beira do precipício teve o efeito contrário.
[ por Haviv Rettig Gur | publicado no Times of Israel em 28|07|21 |traduzido por José Manasseh Zagury ]