Discurso pronunciado pelo escritor David Grossman no último sábado, 22 de maio, na Praça Habima de Tel Aviv, durante evento de apoio à coexistência entre árabes e judeus em Israel.
Érev tov, masa’a el kheir, boa noite.
Permitam-me dedicar minhas palavras desta noite às crianças dos povoados israelenses na fronteira com a Faixa de Gaza, às crianças de Gaza e a todas crianças que sofreram em sua carne e espírito a guerra que acaba de terminar. O frênesi de cada um dos lados por “gravar nas consciências” sua própria vitória se traduziu em inúmeras derrotas. Uma geração inteira de crianças, em Gaza e Ashkelon, crescerá e viverá com o trauma dos disparos, as explosões e as sirenes.
A vocês, crianças, que são verdadeiramente conscientes das queimaduras do conflito, eu digo: sinto a necessidade de lhes pedir perdão porque não conseguimos criar para vocês uma realidade melhor e mais benévola, essa realidade a que todas as crianças do mundo tem direito.
Queridos amigos, queridas amigas:
Esta última guerra acaba de demonstrar até que ponto os dois lados, Israel e Hamás, estão bloqueados, presos no círculo vicioso que eles mesmos construíram. Até que ponto são, há décadas, uma espécie de sistema automático que só sabe dar voltas, seguidamente, com uma força cada vez maior.
Uma salva de foguetes e outro bombardeio, uma salva, uma incursão aérea, mísseis Qassam e a Cúpula de Ferro, as sirenes… E de novo, esta comoção rítmica que se torna tão familiar, cada vez mais forte, que se transforma em incêndio e nos turva o juízo.
E aí chega esse momento em que é evidente que a guerra já não tem sentido, coisa que todo o mundo sabe, tanto em Israel quanto em Gaza, mas é impossível parar, impossível baixar as armas, como se a própria força deixasse de ser um meio para se converter num fim. E esse enorme pilão continua golpeando repetidamente, em Beersheba e em Gaza, e as crianças tremem de medo, enquanto os especialistas falam sem parar nos meios de comunicação, se desfazem em elogios sobre nós e desdenham nossos inimigos. E nós, reféns dos extremistas de toda índole, ficamos com a boca aberta vendo seres humanos que se convertem em alvos, mães que se jogam sobre seus filhos para protegê-los na rua, arranha-céus sendo derrubados como castelos de cartas. E familias inteiras que desaparecem em um piscar de olhos.
E tudo isso pode continuar até a eternidade — o mecanismo não tem um interruptor de emergência —, salvo que Joe Biden faça um leve gesto com a mão e, de repente, nos despertemos do feitiço hipnótico da destruição, miremos a nossa volta e nos perguntemos: O que aconteceu aqui? O que está acontecendo ali? E por que temos a sensação de que os elementos mais extremistas do conflito voltaram a nos manipular? E como é possível que, depois do inferno que milhões de pessoas viveram, em Gaza e Israel, quase nos encontramos de novo no ponto de partida?
E, por cima de tudo, faço esta pergunta: Como é possível que Israel, o meu país, um Estado com um imenso poder de criação, invenção e audácia, leve mais de um século fazendo girar as rodas do conflito e tenha mostrado incapacidade para transformar sua enorme força militar em uma alavanca para mudar a realidade e nos liberar da maldição das guerras cíclicas? Quem nos abrirá uma via diferente?
Desde logo, é mais fácil fazer uma guerra do que forjar a paz. De fato, na nossa vida cotidiana seguimos fazendo a guerra, enquanto que a paz exige uns passos psíquicos dolorosos e complicados, muitas iniciativas que são uma ameaça para povos acostumados quase exclusivamente a lutar.
Nós, os israelenses, nos negamos ainda a comprender que se acabou a época em que nosso poder bastava para determinar uma realidade que só nos convinha, que respondesse às nossas necessidades e nossos interesses.
Será que esta última guerra nos convencerá de que nosso poder militar já é quase irrelevante? Que, por mais longa e pesada que seja a espada que brandimos, na hora da verdade sempre acaba sendo uma espada de dois gumes?
A guerra atual acaba de terminar e a questão mais candente dentro de Israel é qual relação haverá agora entre os judeus e os árabes.
O que acontece nas cidades israelenses é espantoso. Não tem nenhuma justificação. Cometer um linchamento de transeuntes por serem judeus ou árabes é a definição mais desprezível do ódio e da crueldade.
As vítimas foram assassinadas e lhes foi negada sua humanidade. Os assassinos, nestes momentos, se convertem em bestas selvagens.
Mas agora — agora que os ânimos se acalmaram e o Estado de Direito, por fim, começa a se ocupar dos criminosos — é possível falar do que se passou, tratar de comprender o que ficou em evidência nas duas sociedades e suas causas. Porque é desta lucidez que depende o nosso futuro, judeus e árabes.
Israel está a ponto de emprender uma quinta campanha eleitoral. Os sucessos do mês de maio e a intensidade do ódio desencadeado entre árabes e judeus serão um fator crucial nestas eleições.
É fácil imaginar que os políticos desviarão o medo e a desconfiança para o racismo e a sede de vingança. Os instintos baixos que acabam de explodir na realidade israelense servirão de combustível para esta campanha eleitoral, e para os agitadores será mais fácil que nunca levar a cabo sua tarefa.
Creio que todos sabemos a quem isto irá beneficiar. Todos sabemos também que realidade teremos se os extremistas nacionalistas e racistas forem encarregados de promulgar as leis.
Por isso, a verdadeira batalha não é a que se trava entre árabes e judeus, mas entre quem — em cada lado — aspira viver em paz, com uma cooperação digna, e quem — nos dois lados — se alimenta do ódio e a violência para formar sua mentalidade e sua ideología.
Oxalá consigamos restabelecer e reforçar as forças mais sãs das sociedades, a quem nos negamos a ser cúmplices da desesperança. Para que, se uma onda assassina como esta voltar a nos atacar — e temo que voltará a acontecer dentro de alguns anos — , possamos enfrentá-la com uma resistência meditada e madura, como está ocorrendo já nestes dias, em inumeráveis reuniões, discussões e iniciativas magníficas.
Na minha opinião, tal como estamos demonstrando ao nos congregarmos aqui hoje com nossa determinação, nosso compromisso (sumud) com a idéia de paz, igualdade e cooperação digna entre os dois povos e com nosso “apesar de tudo” — que é uma fonte de grande esperança nestes dias escuros —, se deixa entrever a possibilidade de que encontremos o caminho que quase perdemos, a complicada e exigente via de viver aqui juntos, em plena igualdade e em paz, todos nós, árabes, judeus, seres humanos.
[ publicado no El País | 25|05|2021 | traduzido por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR ]