Por que esta rodada foi diferente de todas outras…

O que mudou nesta rodada de eleições em Israel?


Este texto foi redigido a partir de um debate virtual de que o autor participou na ASA – Associação Scholem Aleichem. Acesse AQUI para assistir à live realizada em 21|03|2021.


Genealogia do voto tribal em Israel

Será que as eleições que ocorreram na última terça-feira (23) anunciariam uma mudança ou continuidade em relação às últimas três rodadas? Minha resposta é ambivalente: em primeiro lugar, há uma mudança, que é uma escalada séria à direita. Em segundo, não há maior diferença na política de sabotagem do governo à Joint List [Lista Árabe Unificada] e aos partidos ultra ortodoxos. Foi esta política que emperrou os resultados das duas primeiras rodadas, levando à formação do “Governo do Corona” enquanto enganava os eleitores do Azul e Branco. Considerado que as promessas de véspera da eleição sejam cumpridas, as duas alternativas de governo, a conduzida por Netanyahu e a composta pelos partidos que prometem não compor com ele, estarão muito mais à direita do que as que existiam nas três rodadas anteriores.

Como isso aconteceu? O processo teve lugar ao longo do último ano, o Ano do Coronavírus, durante o qual militantes de direita passaram por um processo de politização e libertação do discurso tribal “Bibi é a única opção”, enquanto os assim chamados eleitores da “esquerda” se submeteram a outro processo de despolitização, seguindo a decepção da Magnes [editora da Universidade Hebraica de Jerusalém], que apelou ao voto em candidatos de direita, só para se livrar de Bibi. Uma postura que se resumiu ao slogan “Vá embora” e a alcunha de “ditador” atribuída a Netanyahu.

Se nas primeiras três vezes houve uma polarização tribal entre os campos “Bibi é a única opção” (daqueles ditos de “direita”) e “Tudo menos Bibi” (da assim chamada “centro-esquerda”), nesta eleição tudo acabou se misturando e ficando embaçado. Uma caricatura feita por Amos Biderman, chargista do Haaretz, mostra as lideranças partidárias bebendo cadeiras, umas dos copos das outras, ilustra o cenário não dicotômico ou situação tribal, onde Netanyahu está ao centro, bebendo tanto da direita como da esquerda. A charge deixa de fora o partido mais extremista à direita, liderado por [Ithamar] Ben-Gvir e [Betzalel] Smotrich, cuja expectativa é radicalizar a coalizão em torno de Netanyahu. Os dois partidos ultra ortodoxos, socialmente isolados também não participam da “bebedeira” e são considerados fora do jogo da “centro-esquerda”, em função do consistente boicote de Liebermann, que desde abril de 2019 não vota com partidos religiosos. Porém, a inclusão das duas facções de cidadãos árabe-israelenses no “jogo da bebedeira” é de fato significativo.

As populações árabe-israelense e a ultra ortodoxa foram as que mais sofreram por conta da pandemia. Ambas são as mais pobres, com famílias extensas e alta densidade demográfica. A mídia noticiou com destaque as violações das restrições impostas pela quarentena durante festas de casamento que ocorreram nos dois grupos populacionais, mas houve uma diferença perceptível no comportamento dos representantes ultra ortodoxos na comparação com os árabes. Ao mesmo tempo em que a liderança árabe agiu para conter as violações, as forças políticas e religiosas dos ultra ortodoxos se comportaram de uma forma que ajudou e até estimulou o desrespeito ao isolamento, o que provocou grande insatisfação entre os demais israelenses.

Em outras palavras, houve uma mudança significativa em grande parte da opinião pública em relação a esses grupos: os ultra ortodoxos estão sendo ainda mais deslegitimados entre os eleitores laicos, enquanto a população árabe-palestina de Israel é elogiada por seu comportamento. Isto se reflete em uma mudança de 180 graus na política de Netanyahu em relação a este último grupo, alterando sua campanha de ódio tribal contra os árabes e contra a “esquerda”, buscando o apoio deles para a coalizão, e expressando empatia pelo que a maioria dos árabes enfrenta de dificuldades e fazer campanha eleitoral no meio deles. O passo não menos relevante foi a aproximação com o RAAM [partido islamista que se afastou da Lista Unida] e o incentivo para se distanciar da Aliança de Todos [Common Alliance]. Nisto também foi ajudado pela recente aproximação com países árabes conservadores e a paz com Emirados Árabes Unidos.  Este acordar foi visível nessa quarta rodada, não só para uma parceria para os “jogos de bebida”, mas também para “os jogos de montagem” do governo após a eleição.

Os movimentos de Netanyahu durante a pandemia de covid-19 – em termos políticos, econômicos e sanitários – provocaram uma mudança que está no cerne da campanha eleitoral. Mesmo sendo bem-sucedido ao dividir politicamente seus opositores (Azul e Branco, Aliança de Todos e direita), ele também gerou rejeições que antes não existiam, devido à gestão da crise de coronavírus de acordo com suas posições políticas: adiar o julgamento contra si e até à eleição chegar em uma situação confortável. A decepção com Gantz e o racha na oposição criaram desesperança e descolamento entre os votantes de “esquerda”, ao passo que a cisão na direita liderada por Smotrich aliado a Ben-Gvir, junto ao descontentamento com Netanyahu por ter fechado o país, fracassos na contenção da pandemia, prejuízos econômicos e tratamento diferenciado aos partidos ultra ortodoxos, levou [Rafi] Peretz a se aliar com [Naftali] Bennett àqueles que exigem a queda de Netanyahu.

YAIR LAPID (líder centrista) corteja NAFTALI BENNET (extrema direita), enquanto BIBI (LIKUD) corteja AVIGDOR LIEBERMANN (extrema direita). Tudo vale para formar uma coalizão de governo.

YAIR LAPID (líder centrista) corteja NAFTALI BENNET (extrema direita), enquanto BIBI (LIKUD) corteja candidato islamista). Tudo vale para formar uma coalizão de governo.

Israel lidera o mundo no nível de contágios, junto aos Estados Unidos, mas Netanyahu consegue escapar das críticas por seu fracasso pelo sucesso na vacinação.

Enquanto seus opositores à direita o atacam por não frear a pandemia, ao que Netanyahu rebate com a obtenção de vacinas, os partidos de “esquerda” balbuciam e se distraem com palavras gastas e gritos de “Ladrão”. Os eleitores desses partidos estavam divididos em relação às evidências de risco do coronavírus, as quarentenas, o uso de máscaras e até as vacinas e a fase verde. Netanyahu está jogando com o bem-sucedido acordo firmado com a Pfizer e vacinando a maioria da população. A oposição foi incapaz de destacar a terrível situação em que o recorde de infectados com covid-19 no país (90 mil a cada milhão de pessoas) atesta uma taxa de infecção mais alta do que todo o descontrole na Europa Ocidental e América do Sul. Israel é o líder no mundo em índice de infectados por covid-19, ao lado dos Estados Unidos, mas Netanyahu consegue se desvincular das contestações de que é alvo por este fracasso.

O que salva Netanyahu é o extraordinário sistema de saúde pública de Israel, de onde ele tem reduzido os investimentos há anos e que, apesar disso, continua a ser um serviço público, social, universal e profissional de excelência. Graças ao sistema de saúde israelense, a taxa de mortalidade é baixa, em que pese o alto número de mortos (inferior a Europa, América do Sul e Estados Unidos). O fato de que o Órgão de Assistência à Saúde (HMO, na sigla em inglês) compartilha dados médicos sobre todos os cidadãos de Israel desde que entrou em vigor a Lei da Saúde Pública, em 1995, e que o Governo poderia garantir a transferência de estatísticas sobre os efeitos da vacinação à Pfizer, sinaliza a excelência do sistema de saúde e a qualidade da informação. A ponto de assinar um acordo que tornará Israel o laboratório global para testagem da vacina, documento esse que extrapola os conflitos sobre imunizantes e a Carteira de Identidade Verde [da qual são portadores os palestinos que vivem em Jerusalém Oriental], é porque o ótimo sistema de saúde de Israel foi criado antes de Netanyahu chegar ao poder, conseguindo funcionar maravilhosamente apesar dele, porém nosso mágico diz que é uma conquista pessoal sem qualquer oposição a revelar suas mentiras. A campanha do “Senhor Vacinas” e a promessa do Pessach em família, com a canção “O que há de diferente nesta noite? Estamos todos vacinados”, são o que permitiu a Netanyahu ficar à frente nas pesquisas eleitorais, independente se seus aliados somarão ou não 61 cadeiras no Parlamento.

Para concluir, é importante enfatizar que o tribalismo da esquerda “Tudo menos Bibi” e o ódio arrogante em relação a “biblistas” são responsáveis pela guinada à direita nestas eleições.

O tribalismo é apolítico, mobilizando apoio através de sentimentos de pertencimento a um grupo, hostilidade e medo do outro, e não através de uma discussão política em questões importantes que preocupam o Estado e a população.

Enquanto líderes de direita como Bennett e Saar fizeram contestações políticas a Netanyahu, a tribo de “esquerda”, identificada com a classe média laica e instruída, com ashquenazim arrogantes contra todo o “resto”, foi deixada com a palavra de ordem única “Tudo menos Bibi” e protestos na Balfour [residência oficial do primeiro-ministro] e o despretensioso slogan “Vá embora”. Então não há surpresa que os eleitores migraram para a direita de Lieberman, [Gideon] Saar e Bennett, enquanto Meretz e Azul e Branco disputavam votos para garantir a cláusula de barreira. E qual é a opção aparente contra o governo de extrema-direita de Netanyahu com Ben-Gvir, Smotrich, Bennett e os ultra ortodoxos (e possivelmente o Ra’am)? A coalizão “100% Ashquenazi”, de esquerda-centro-direita, com Bennett, Saar e Lieberman, [Yair] Lapid.

Como já se mencionou, o cenário virou todo à direita, e os boicotes ainda não se dissiparam por completo, podendo ditar um governo ainda mais de direita, com ou sem Bibi.

Este texto foi redigido a partir de um debate virtual de que o autor participou na ASA – Associação Scholem Aleichem. Acesse aqui para assistir à live realizada em 21|03|2021. que contou também com o cientista político palestino Jawdat Abu El-Haj.

 

[ por  Lev Greenberg, presidente da Associação de Sociologia de Israel, sociólogo e cientista político da Universidade Ben Gurion  | publicado em www.haokets.org em 22|03|2021].

[ tradução de Daniel Feldman Israel, jornalista e Coordenador de Comunicação na ASA – Associação Scholem Aleichem do Rio de Janeiro ]

[ revisão e edição dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA – www.pazagora.org ]

Comentários estão fechados.