Entrevista de Bernard Henri-Lévy por Seth J. Frantzman
O filósofo francês Bernard-Henri Levy examina o sofrimento dos curdos, os laços emergentes entre Jerusalém e Ankara, o papel global da América e as importantíssimas novas relações [de Israel] com o Marrocos e o Golfo.
Começou com uma chamada telefônica. Bernard-Henri Levy e eu estávamos falando enquanto eu estava no meu carro, voltando do centro de Jerusalém, onde fui comprar humus. A pandemia estava grassando e o inverno começando em Jerusalém. Ele queria falar sobre a recente guerra na Armênia e sobre os curdos.
A última vez que vi o filósofo francês, que é também um cineasta, ativista e autor de mais de 30 livros, foi em Erbil em 2017, durante o referendo pela independência da região do Curdistão. Alto e impecavelmente vestido, ele estava no Hotel Rotana durante a primeira votação na importantíssima tentativa da região curda de oferecer uma chance de independência para seu povo.
Muita coisa mudou agora. A Turquia estimulou o Azerbaijão a ir à guerra com a Armênia em Nagorno-Karabach e Ankara ocupou a região curda de Afrin na Síria. Israel fez uma paz abrangente com dois países árabes do Golfo, além do Sudão e Marrocos (e há até relatos de que o Paquistão também está considerando fazê-lo). O Marrocos é querido para Levy.
O trabalho de Levy como intelectual e escritor é exclusivamente interligado com seu ativismo humanitário. Seus livros incluem “O Vírus na Era da Loucura” (2020), “O Império e os Cinco Reis” (2019) e “A Vertigem Americana: Viajando pela América nos Passos de Tocqueville” (2005). Em junho de 1992, Levy convenceu o presidente francês François Miterrand a fazer sua viagem surpresa a Sarajevo. Levy foi nomeado pelo presidente francês Jacques Chirac para liderar uma missão de estado ao Afeganistão e apoiou a intervenção pela França e os EUA na Líbia em 2011. Desde 2015, Levy tem apoiado os curdos, primeiro na luta contra o ISIS e, depois, através de seu filme documentário “Peshmerga”, que estreou na seleção oficial do Festival de Filmes de Cannes.
Em 2018, depois do abandono do ocidente após o referendo curdo e o ataque turco a Afrin, Levy co-fundou com o ambientalista e filantropo Thomas Kaplan, a ONG Justice for Kurds (JFK) baseada nos EUA, da qual Kaplan é o líder e Levy é o presidente. Desde sua criação, a JFK é a base principal dos compromissos humanitários do Sr. Levy.
Bernard-Henri Levy sempre foi um sionista devoto, diz ele. Seu livro “A Genialidade do Judaísmo” (2017) examina o excepcionalismo de Israel e o pensamento judaico. Suas reportagens recentes foram publicadas no Wall Street Journal e em veículos europeus como o Der Stern, La Repubblica, L’Espresso, Kathimerini, Novoe Vremya e Paris-Match.
Falei com Levy sobre uma variedade de assuntos regionais. Considerando sua experiência e conhecimento sobre Marrocos, Israel, as regiões curdas e as grandes mudanças na região e no mundo, suas respostas oferecem uma janela crítica para os assuntos que afetam hoje o Oriente Médio e o Ocidente.
P: Acabamos de testemunhar uma guerra no Cáucaso alimentada pelo apoio de Ankara ao Azerbaijão. Como você vê o recente conflito em Nagorno-Karabach e seu efeito sobre a região?
Levy: Eu vejo como uma vitória de dois vilões que desafiam atualmente a influência do Ocidente: Putin e Erdogan. O mesmo pode ser visto na Síria e na Líbia. Todos representam um dos mais terríveis aspectos do estado das coisas no mundo: a retirada da América; o eclipse da Europa; a subsequente onda de grandes potências “revisionistas” – Rússia e Turquia, sim, mas também a China e o Irã – as quais, porque a natureza política detesta vácuo, estão lentamente preenchendo os espaços que estamos desocupando.
P: Os países ocidentais não dentais nãofizeram quase nada para conter os ataques contra os armênios e o conflito. Você acha que o mundo ocidental abandonou a ordem internacional liberal dos anos 90 e desistiu de promover cessar-fogos e de tentar fazer qualquer coisa para tentar parar guerras?
Levy: O ocidente voltou ao espírito de apaziguamento – a religião do cessar-fogo, a idolatria da paz a qualquer custo. Ao lidar com dois belicistas como Rússia e Turquia, o ocidente tem apenas uma obsessão: ganhar tempo. O novo não-intervencionismo do ocidente vem dos anos 90, quando por três anos olhamos para o outro lado durante o bombardeio de Sarajevo. Mas então, pelo menos, houve uma espécie de despertar. E como você sabe, o ocidente eventualmente lançou ataques aéreos contra as milícias sérvias que aterrorizavam a Bósnia.
Hoje? Nada desse tipo. Deixamos Erdogan enviar suas milícias para Afrin. Não apenas não fizemos nada, mas os EUA escolheram esse momento para anunciar e colocar em movimento sua retirada da Síria. E permitimos que os armênios, as vítimas do primeiro genocídio do século XX, fossem imobilizados e derrotados em Nagorno-Karabach. É doloroso. Estupido. Vergonhoso.
P: Grupos minoritários como armênios e curdos parecem estar cada vez mais sujeitos à limpeza étnica em lugares como Afrin. O que você acha que deveria ser feito sobre esses incidentes?
Levy: O lugar natural do ocidente – e para esse efeito, o de Israel – é ao lado desses povos perseguidos. Jan Patocka, um filósofo checo que era próximo a Vaclav Havel (o primeiro presidente da República Checa de 1993 a 2003), falou da “solidariedade dos abalados”. Ele sonhava com uma corrente fraternal ligando povos atormentados por um passado genocida. Esse é o meu próprio sonho para Israel. Estou convencido que apoiar povos aflitos é parte da vocação do sionismo.
E isso foi exatamente o que aconteceu quando, em 2017, Jerusalém foi a única capital do mundo a apoiar o referendo sobre a auto-determinação do Curdistão iraquiano. Eu estava em Erbil nesse dia. E na noite em que os resultados da votação foram anunciados, fiquei satisfeito de ver bandeiras israelenses entre as bandeiras curdas comemorando o sucesso do referendo.
P: A região do Curdistão no Iraque tem muitos desafios e o papel dos EUA na região de Rojava no ocidente da Síria é tênue. Você acha que essas duas áreas curdas podem ser reforçadas e estabilizadas?
Levy: Sim, com certeza. Isso é exatamente o que estou dizendo. Mais ainda, é a finalidade do Justice for Kurds, uma organização que fundei com o conservacionista americano e filantropo Thomas Kaplan. Te conto que agora mesmo a JFK está focada neste assunto. Somos a favor de apoio explícito a esses dois povos curdos e até para um terceiro contingente (se incluímos os curdos do Irã) e um quarto (se você incluir os da Turquia). Também somos a favor – no Iraque, Síria e outros lugares – do estabelecimento de um estado curdo independente.
E sabe por que? Primeiro porque lhes devemos isso. Os curdos lutaram por nós e não temos o direito de trai-los. Mas também porque acreditamos, Kaplan e eu, que a existência de um estado curdo seria um fator não de instabilidade, mas sim de grande estabilidade na região. Nada é mais instável do que ditaduras do tipo Síria ou estados falidos como o Iraque. Por outro lado, nada é mais favorável à estabilidade do que estados democráticos praticando o estado de direito, liberdades civis e o direito de se expressar como quiser. E esse seria o caso de um Curdistão independente.
P: Israel fez agora novos acordos de paz com pelo menos quatro países árabes. Você vê isso como um ponto de virada único ou como um processo que estava destinado a acontecer?
Levy: Nada é “destinado a acontecer”. Essa é a mais importante lição que eu extraí de muitos anos que gastei estudando a filosofia da história. A história não se move em uma direção específica. Nada nela é pré-determinado. Tudo depende da vontade das pessoas. E raramente essa lei será tão comprovada quanto nessa série de acordos de paz, onde tudo dependeu da vontade e da determinação de um punhado de indivíduos. No Marrocos, o rei Mohamed VI e seu conselheiro Fouad Ali El Himma. Nos Emirados, Mohamed Bin Zayed e seu embaixador nos EUA Yousef Al Otaiba. Em Israel, diplomatas de alto calibre, alguns dos quais conheço pessoalmente. E posso te dizer, parafraseando Churchill, raramente tantos deveram tanto à vontade, à determinação e à visão de tão poucos.
P: O anúncio da normalização com o Marrocos foi construído sobre anos de relações limitadas com Israel. Qual a sua avaliação sobre as relações Rabat – Jerusalém? Elas crescerão ou haverá desafios?
Levy: O que é certo é que esse pacto coroa décadas de sólidos acordos, embora menos visíveis. Ele é consistente com a longa tradição de proteção à comunidade judaica estabelecida pelos governantes do Marrocos. Nunca devemos esquecer que o rei Mohamed V se recusou a permitir que seus súditos judeus usassem a estrela amarela e que ele apoiou o General De Gaulle. Também não podemos esquecer que quando seu neto, Mohamed VI, o rei atual, escolheu alguém para defender a causa da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental, ele escolheu um homem chamado Serge Berdugo, que por acaso era o líder da comunidade judaica do Marrocos.
P: Os EUA estão indo da era Trump de diplomacia transacional e o enfoque de dureza com o Irã para a nova administração Biden. O que você acha que a equipe de Biden deveria fazer em relação ao Oriente Médio?
Levy: A primeira coisa seria evitar jogar fora o pouco de bom que foi feito pela administração Trump, o que aconteceu no Oriente Médio. Em outras palavras, preservar os valiosos acordos de paz com Abu Dhabi e Bahrein. Continuar as mais ou menos secretas conversações com os sauditas. E valorizar o ótimo acordo alcançado com o Marrocos. Trump foi puro desastre: com a exceção disso.
Mas, honestamente, não estou muito preocupado a esse respeito. Porque a equipe de Biden para o Oriente Médio é essencialmente Tony Blinken (indicado pela administração Obama para Secretário de Estado), com quem tenho algum conhecimento. Sei de onde ele vem. Eu conheci Samuel Pisar, homem admirável e sobrevivente do Holocausto que foi padrasto de Blinken e, acredito, o influenciou consideravelmente. Não posso imaginar Blinken dando as costas a esse legado. Estou totalmente convencido que, a esse respeito, não precisamos temer surpresas desagradáveis.
P: Você acha que os EUA estão num curso inevitável de declínio global ou poderão reter seu papel de liderança global e, se assim for, como você acha que esse papel deveria ser?
Levy: A América começou a se recolher, infelizmente, bem antes de Trump. Uma grande parte do mundo, principalmente a Europa, teve que começar a tomar medidas como se a América não existisse. E por essa razão, acredito, começamos a voltar para um tipo de mundo pré-colombiano que é ao mesmo tempo confuso e assustador. O que equivale a dizer que eu espero somente uma coisa da América: que renuncie à miragem suicida do ‘Primeiro a América’ e se reconecte com seu excepcionalismo.
P: A França tem sido difamada por Ankara, que parece estar cada vez mais forçando o extremismo…
Levy: Cada vez mais? Você acha? Para mim isso tem sido verdade por muito tempo. Ankara apoia o Hamas. Fornece um santuário para a Irmandade Muçulmana. Em 2015, durante a batalha por Kobani, forneceu suporte logístico para os mais radicais elementos do ISIS. E, a propósito, tem vilipendiado Israel por anos, sublinhando o enorme erro que Israel cometerá se cair na armadilha da suposta “normalização” que o presidente turco Recep Tayyip Erdogan está acenando. Não pode haver paz duradoura com uma Turquia que está em total acordo com a Irmandade Muçulmana.
P: Então, qual a sua avaliação das recentes tensões entre França e Turquia e aonde essa conflagração pode levar?
Levy: Acredito que o Presidente Macron está certo. Ele é o único líder ocidental a expressar as coisas claramente. Especificamente, que Erdogan é um imperialista, inimigo do ocidente e fascista. A única boa notícia é que a Turquia está mais fraca do que pensávamos. A ideologia neo-otomana invocada por Erdogan é frágil, um recorte de papelão, uma ideologia morta-viva. Estou convencido de que se lidarmos firmemente com os proponentes dessa ideologia, se nos recusarmos a ceder a eles e se mais líderes no Oriente Próximo e Europa expressarem seu apoio a Macron, não haverá nenhum enfrentamento – só o colapso do castelo de cartas que é a subcultura neo-otomana.
P: Você acha que os países da Europa Ocidental ou a OTAN algum dia confrontarão o regime turco?
Levy: A coisa mais importante é expulsar a Turquia da OTAN. Ela não tem mais lugar em uma aliança militar cujo propósito é proteger a Europa. E a (ONG) Justice for Kurds está comprometida em promover a conscientização sobre os perigos do regime turco. Nós reforçamos essa mensagem quando Kaplan e eu publicamos uma declaração no New York Times, “Está na Hora de Romper com Erdogan”, no aniversário de um ano da invasão turca a Rojava.
P: Você acha que Turquia ou Irã são as maiores ameaças hoje ou são parte da mesma ameaça?
Levy: Eles são inimigos históricos, é claro. E ambos estão cientes da rivalidade secular entre os elementos em seus países que têm nostalgia pelo império persa ou otomano. Mas hoje os dois países estão mais próximos do que pensamos. Especialmente em face de algum inimigo comum, seja esse inimigo Israel , os curdos ou o ocidente.
Pense novamente sobre o outono de 2017, na sequência do referendo curdo e a aliança tática entre o Presidente Hassan Rouhani do Irã e Erdogan. Lembre de Erdogan, na véspera de uma visita a Paris, insistindo em que as manifestações populares contra o regime em Mashad, Dorud e Najafabad eram um “problema interno” do Irã e que era lamentável que “pessoas de fora” estavam somando “provocação” à “rebelião”. E então, em agosto de 2018, com o valor da moeda turca despencando, junto com o Irã (e mais China, Rússia e Catar), refletindo sobre como o mundo poderia escapar da “ditadura do dólar”. E em abril do mesmo ano, a extraordinária foto de família de Putin, Erdogan e Rouhani posando sem nenhuma vergonha, apesar de seus divergentes interesses e rivalidades históricas, na véspera do encontro de cúpula sobre a Síria.
Não devemos nos enganar. A próxima “grande aliança” poderá ser entre a Turquia e o Irã.
O filósofo Bernard Henry Levy nasceu em 1948 na Argélia; é co-fundador do ‘La Paix Maintenant.org’ (Amigos do PAZ AGORA na França) e do ‘J-Call – European Jewish Call for Reason’ (Coletivo de Organizações Européias pela PAZ Israel-Palestina – www.jcall.eu
[ Entrevista por Seth J. Frantzman | Publicado no Jerusalem Post em 24/12/20 | traduzido por José Manasseh Zagury e editado por Moisés Storch ]