UMA ARÁBIA SAUDITA ARMADA NUCLEARMENTE PODE SER PARCEIRA DE ISRAEL PARA A PAZ?
Riad está construindo sistematicamente uma infraestrutura nuclear que pode facilmente mudar a finalidade de civil para militar. Uma Arábia Saudita cujos interesses estratégicos estão hoje alinhados com os EUA e com Israel pode ser um país completamente diferente mais adiante.
Enquanto o primeiro-ministro de Israel estava o ocupado submetendo uma nação inteira a três rodadas de eleições e quase a quarta, com a auto infligida catástrofe conhecida como anexação da Cisjordânia e com seu sombrio fracasso na condução da crise sanitária e econômica do COVID, ele parece ter deixado cair a bola de um dos mais sérios desafios de segurança nacional: a nuclearização do Oriente Médio, que continua não apenas de forma persistente, mas inclusive com até mais ímpeto.
Esse assunto se cruza de forma significativa com o do Irã nuclear e o acelerado processo de normalização entre Israel e vários países do Golfo.
Um Oriente Médio nuclear já não é um assunto do Irã apenas. Há programas nucleares, nominalmente civis, também em quatro outros países considerados atualmente amigáveis a Israel. Para ser mais exato, todos os quatro refletem necessidades legítimas de energia, mas os especialistas no campo estão convencidos de que o gás natural ou fontes de energia renovável forneceriam alternativas mais baratas e mais eficientes.
Uma experiência amarga nos ensina que programas nucleares civis no Oriente Médio tem a desagradável tendência de transformar-se em base tecnológica para programas militares. O programa nuclear do Irã, também, era pelo menos parcialmente motivado por necessidades verdadeiras de energia.
Os Emirados Árabes Unidos, nosso diminuto novo amigo, acabou de tornar-se o primeiro país árabe a operar um reator de energia nuclear, o primeiro de quatro ainda em construção por uma firma sul-coreana.
Felizmente, os Emirados concordaram em aderir ao “padrão de ouro” americano e renunciar ao ciclo independente do combustível nuclear, minimizando assim os perigos de que os reatores sejam usados para propósitos de proliferação nuclear. Entretanto, é importante notar que os EAU, que têm vastos recursos financeiros e ainda maiores ambições, estão ganhando agora conhecimento tecnológico e infraestrutura para um futuro programa nuclear militar, caso queiram.
No Egito, a construção de quatro reatores de energia russos, a ser completada até 2026, está programada para começar no meio do próximo ano. As medidas preliminares necessárias, antes do início da construção, já estão em andamento.
Na Turquia, dois dos quatro reatores russos já estão em construção, devendo estar todos prontos até 2025. No ano passado, o Presidente Erdogan afirmou o direito da sua nação de obter armas nucleares, em parte como resposta às capacidades nucleares que ele atribui a Israel.
As notícias mais preocupantes vêm da Arábia Saudita, que está construindo sistematicamente uma infraestrutura nuclear civil que pode facilmente ser reconfigurada para fins militares. Um reator de pesquisa próximo a Riad, construído com assistência argentina, estará operacional dentro de meses.
Um local não declarado no noroeste da Arábia Saudita, que a Inteligência americana suspeita que pode ser para processamento de urânio natural, um estágio crítico para construir um ciclo de combustível nuclear independente, está atualmente em construção, com ajuda chinesa. Outro local não declarado, próximo a Riad, também é suspeito de fazer parte de um programa nuclear.
Uma companhia sul-coreana está projetando um reator para geração de energia para os sauditas, o primeiro de muitos programados. Uma instalação construída pelos chineses para a fabricação de mísseis balísticos, que podem potencialmente carregar uma ogiva nuclear, também está em construção na Arábia Saudita.
Considerando esses desenvolvimentos, os EUA estão cada vez mais preocupados que os sauditas podem estar escondendo outros locais e que o programa nuclear pode ser na verdade para uso civil, como alegado. Diferentemente dos EAU, os sauditas rejeitaram a exigência americana de renunciar ao ciclo de combustível nuclear independente, aumentando muito a preocupação para com suas intenções. A cooperação saudita na área nuclear e de mísseis com a China, que não impôs limitações rigorosas nesse tipo de cooperação, como fazem os EUA, aumenta mais ainda o nível de preocupação.
Considerando tudo isso junto, esses desenvolvimentos aumentam as preocupações de que os sauditas tenham adotado uma política de “cobertura nuclear”, ou seja, a criação de uma base para uma futura opção nuclear, casa assim decidam.
E qual é o último informe sobre o progresso do Irã? Está sob construção um segundo reator de energia russo, dos três previstos para estar prontos até 2028. O Irã essencialmente renunciou a seu comprometimento com o acordo nuclear de 2015 e está agora a poucos meses de ter material físsil suficiente para a primeira bomba.
Os esforços americanos para intensificar a pressão sobre Teerã, através da extensão da proibição do Conselho de Segurança da ONU sobre a venda de armas convencionais ao Irã, que expira em outubro, falharam. Mais ainda, a tentativa atual de usar a “reimposição” de sanções contidas no acordo nuclear do qual o Presidente Trump retirou os EUA (com a intenção de usar como alavanca para forçar o Conselho de Segurança da ONU a estender a proibição de vendas de armas), agora é mais provável que provoque o colapso final do acordo e uma aceleração do programa nuclear do Irã.
Até o momento, a pressão americana conseguiu somente um resultado inequívoco – um perigoso fortalecimento de relações entre a China e o Irã, incluindo laços militares.
O resumo é que, enquanto o Irã está fazendo um progresso constante em direção a uma capacidade nuclear “de fuga”, a região inteira se aproxima do cenário de pesadelo de um Oriente Médio com múltiplos atores nucleares. Esses processos ainda levarão anos para acontecer, mas as bases estão sendo estabelecidas agora, às vistas de Trump e Netaniahu, e refletem o colapso da política de não-proliferação que buscavam em conjunto. Mais quatro anos disso e alguns desses processos terão ultrapassado o ponto de não-retorno.
A chamada “Doutrina Begin”, que estabelece que Israel tomará todas as medidas, incluindo militares, para impedir que um ator hostil na região consiga armas nucleares, foi implementada até agora nos casos do Iraque e da Síria, mas não no do Irã.
Mais quatro países, Arábia Saudita, EAU, Egito e Turquia, agora se juntam ao Irã na lista dos países contra os quais a Doutrina Begin pode não ser mais aplicável. Todos os quatro têm dois fatores em comum: todos são aliados americanos e gozam, pelo menos até certo ponto, de uma garantia americana de segurança. Segundo, Israel tem relações pacíficas, oficiais ou não, com todos eles. Bombardear, presumivelmente, não é uma opção.
Israel tem que encorajar a próxima administração americana a se manter firme na exigência americana de que os sauditas adotem o “padrão de ouro” e abdiquem do ciclo independente do combustível nuclear, mesmo que isso arrisque uma ruptura temporária entre americanos e sauditas.
Os sauditas são uma ligação crucial nas políticas americana e israelense em relação ao Irã, mas não se isso significar que eles tenham um programa nuclear militar próprio.
Uma Arábia Saudita cujos interesses estratégicos se alinham hoje com os interesses dos EUA e de Israel, pode ser um país muito diferente mais adiante. Já está em andamento uma mudança doméstica dramática. A administração Trump tem vacilado em relação ao “padrão de ouro”, mas há apoio bipartidário no Congresso para exigir que os sauditas o adotem.
Para conseguir um novo acordo com o Irã, antes que ele se torne um país no limiar nuclear ou até mesmo cruze o limiar, a próxima administração americana deve tirar vantagem da situação econômica que a administração Trump conseguiu criar.
Está, entretanto, mais do que na hora de que nós em Israel confrontemos uma amarga realidade: para conseguir um acordo nuclear melhor, teremos que oferecer ao Irã incentivos mais abrangentes, caso contrário ele não negociará.
Para esta finalidade, Israel tem que decidir quais exigências são absolutamente críticas e onde podemos fazer concessões, de formas que possamos apresentar para a próxima administração uma posição coerente o mais rápido possível, antes que os eventos aconteçam com ou sem nossa participação. Está muito claro que Joe Biden é infinitamente mais competente para alcançar um novo e melhor acordo sobre as ambições nucleares do Irã do que Donald Trump.
Se a Doutrina Begin verdadeiramente não é mais aplicável ao Irã, ou ao menos aos quatro países “amigáveis” adicionais que têm programas nucleares, as opções de Israel serão limitadas.
Assumindo que o desarmamento regional não está previsto, nos restarão três caminhos: o fim da “ambiguidade nuclear” de Israel, que é improvável que fortaleça a dissuasão israelense; um tratado de defesa com os EUA, que não resolve o pesadelo de um Oriente Médio com múltiplos atores nucleares; uma possível aliança regional de segurança com os países sunitas, de preferência em seguida a um acordo de paz com os palestinos.
Para aumentar as possibilidades de que ao menos algumas dessas opções efetivamente se concretizem, é essencial que reconstruamos nossas relações com os Democratas, que podem muito bem liderar os EUA após as eleições de novembro e fazermos o nosso máximo para obter progresso com os palestinos, ou ao menos demonstrar qual lado é o obstáculo.
Mas ao invés de investir pensamento nesses assuntos de segurança nacional críticos e mesmo de sobrevivência, Israel está totalmente preocupado com as intermináveis maquinações políticas e legais de um primeiro-ministro cuja única preocupação é salvar seu pescoço e que há muito esqueceu os perigos da nuclearização regional. Nosso Rei Sol projeta somente uma sombra profunda.
[por Chuck Freilich | publicado no Haaretz em 01|09|20 | traduzido por José Manasseh Zagury]