Mil espelhos refletem a sua personalidade.
“Se perguntasse aos israelenses o que desejam para si mesmos no novo ano, suponho que apesar da importante vitória diplomática desta semana, muitos também pediriam um primeiro-ministro que não semeie o mal na terra, mas que tente com todas suas forças curar suas feridas”.
No Livro de Oséas lemos: “Porque estes semeiam vento, e colherão tempestade”. Durante quase doze anos, Benjamin Netanyahu semeou vento. Um vento maligno e incessante. Agora, nos dias da pandemia, os resultados são claros: Israel é um país dividido e desorientado, privado do coração de sua liderança e de si mesmo, presa fácil do torvelinho do coronavírus. Adivinho: se os israelenses responderam honestamente à pergunta “Que desejas para o ano novo? Aparte, claro, da saúde, imagino que muitos deles, inclusive os partidários de Netanyahu, simplesmente responderiam: uma vida estável, tranquila, segura, onde não haja corrupção e a presença de um governo, da Lei. Também imagino que muitos desejariam um primeiro-ministro (homem ou mulher) que, no lugar de ser um “mago” (como muitas vezes chamam Netanyahu), se ocupe dos los assuntos estatais e trate com todas suas forças de curar suas feridas. Isto é o que desejaria para todos nós: uma vida cristalina. Também o desejaria a Benjamin Netanyahu, de homem para homem.
Às vezes me pergunto se ele ainda se lembra da sensação de uma vida assim. Ainda existe na sua existência um lugar onde não finge, onde é claro como o cristal, livre? Durante anos nos acostumou a que quase todo o que toca de alguma maneira se confunde, se enreda em interesses ocultos, tortuosos ou tem um fundo duplo.
Eu o via há umas duas semanas quando, referindo-se ao assassinato de Yaakub Abu Al-Kyan, gritou: “Os cidadãos de Israel fingem saber a verdade!” e pensei nas agudas palavras do profeta Isaías: “Ai do que chamam o mal de bem e o bem de mal, que convertem as trevas em luz e a luz em trevas, que trocam do amargo a doce e do doce ao amargo! ” Sem dúvida, Netanyahu é um orador fantástico, um arengar extraordinário. Esta semana também se conseguiu um grande e muito importante logro político que poderia afetar as posições de outros países da região.
Então, por que tantos israelenses se sentem estrangeiros e exilados em seu próprio país? Por que muitos de nós sentimos uma constante sensação de asfixia, luta para respirar? Talvez porque hoje estamos sedados e ventilados. Somos uma excelente matéria prima apta para qualquer manipulação, um material leve e flexível para se modelar a ditadura “pseudodemocrática” que Netanyahu está instaurando.
Por esta razão, o movimento de protesto contra ele é um sopro de ar fresco alentador e essencial. De repente, as palavras claras e assertivas ressoam, perfurando o ilusório estrondo desse eu-eu-eu que nos submergiu durante anos. O protesto revive em nós uma sensação de bem-estar e, após anos de mentiras e exageros, finalmente ressoam palavras de verdade.
É certo que os manifestantes pertencem a grupos diferentes e em ocasiões não relacionadas, tem uma liderança dividida e ainda lutam em busca de direção. Mas precisamente nisto está sua força, neste torpor nas energias de quem tem que sacudir a sensação de asfixia, no grunhido que, corroborado por argumentos racionais, e bem formulados, se eleva afinado com força. Netanyahu acusa os manifestantes (e a esquerda e os meios de comunicação e a promotoria e a oposição e quem não …) de estar obcecados com o lema “Qualquer um, menos Bibi”. Na realidade, ele mesmo se converteu numa espécie de obcecado, “possuído” que tem todo o país como vício, impotente e quase apático ante seu egoísmo agressivo, sua corrupção. Um país que durante anos, sugado pelo vórtice de Bibi, se ocupou dele, da sua família, das suas cargas.
É como se ao nosso redor houvesse mil espelhos e todos refletissem a imagem de Netanyahu e, quando os olhamos, vemos a ele, e não o nosso reflexo. Mas como nos gostaria voltar para trás e revisar nossa reflexão, já que estamos preocupados com Israel e temos a sensação de que o milagre que o criou e a solidariedade que o manteve firme se desvanecem, nos manifestamos cada semana frente à residência oficial do primeiro ministro em Jerusalém, frente à sua casa em Cesaréia e em 315 pontes e cruzamentos em todo o país. E o continuaremos fazendo. Continuaremos gritando, gritando: Fora, Bibi! Saia das nossas vidas, siga seu próprio caminho e deixe-nos reconstruir sobre os escombros que deixas para trás. Toda a Sociedade israelense necessita recuperar-se de um longo período no qual perdeu o sentido comum
Oxalá pudéssemos voltar a aprender alguns princípios fundamentais: ser diferentes uns dos outros sem nos odiar, ter opiniões encontradas sem mostrar malícia, ser capazes de apagar a hostilidade e a suspeita que se acendem em nossos olhos quando olhamos para quem (nossos irmãos, sangue do nosso sangue) pensa diferente de nós.
Será um processo longo e complicado porque a fissura já se infiltrou nas dobras mais íntimas de Israel. Mas uma coisa é clara: não podemos começar este processo de cura enquanto Netanyahu permanecer no poder. Não adiantará.
Por outro lado, qualquer continuação do seu governo minaria a possibilidade de reorganização e condenaria Israel a uma maior deterioração. Inclusive a hipótese de uma provisão de interdição temporária do escritório do primeiro-ministro evoca um tipo mais profundo de interdição inerente a Netanyahu: não poderia sanear onde Israel mais necessita.
Quem esteve próximo dele, atesta que ele nunca escuta. Está desapegado da realidade e vive, para todos os efeitos, num espaço onde só ele e seus interesses existem. Exteriormente pode mostrar, ou alardear, uma habilidade fantástica, poder, agressão, segurança em si mesmo e uma espécie de preocupação paternal e compassiva por seus súditos.
Sem dúvida, gosta de se considerar como um “pai da nação”. Mas é um pai manipulador, cínico, explorador e utilitário. Não, apesar de todos os seus esforços é impossível perceber em Netanyahu qualidades terapêuticas taumatúrgicas. Para falar a verdade, nem sequer é possível perceber nele um sentimento de genuína compaixão pelos israelenses maltratados que ele mesmo, com suas ações e fracassos, tenha precipitado na situação em que se encontram,
Portanto, desde algum tempo, já não se trata de “Bibi Sim” ou “Bibi Não”. Estamos numa luta contra a decadência, a favor da reparação. Contra a doença, a favor da reabilitação. Contra o desesespero, a favor da esperança.
E nesta luta, todos decidirão que posição tomar. Feliz Ano Novo.
[ por David Grossman, escritor e veterano ativista do PAZ AGORA | publicado no Yediot Achronot em 18|09|20 – traduzido pelo PAZ AGORA|BR a partir da versão em espanhol da J-Amlat ]