Ex-chefe do Mmossad: o Irã não pode ser parado na sua tentativa nuclear; mas pode ser dissuadido
Shabtai Shavit, um especialista em Irã que dirigiu a agência de 1989 a 1996, oferece uma, às vezes, chocante série de avaliações e recomendações que visam garantir a segurança e a sobrevivência de Israel.
Chefes do Mossad não tendem a dar entrevistas. Certamente não enquanto no cargo e, em muitos casos, dificilmente mesmo depois que se aposentam. Shabtai Shavit, o sétimo dos 12 diretores do Mossad até hoje – cujo mandato se estendeu desde sua nomeação em 1989 por Yitchak Shamir, passando pelo segundo mandato de Yitzchak Rabin como primeiro-ministro, até o breve período de Shimon Peres após o assassinato – é um dos casos em questão. Mais que silêncio midiático, Shavit não era nem identificado publicamente como chefe do Mossad até que saiu do cargo em 1996 (antigamente a identidade do chefe do Mossad era segredo N.T.).
Alguns anos depois, consegui falar com Shavit brevemente sobre uma obsessão particular que tenho: a questão sobre quem orquestrou a explosão, em 1989, do voo 103 da Pan Am, no ar, sobre Lockerbie, Escócia, com a perda de 270 vidas. Nessa época, no cargo de diretor do fundo de saúde Macabi, polida mas sucintamente, colocou de lado minha indagação e devolveu a pergunta para mim num tom suave , “Não foram os líbios?”, como se o pior ato de terrorismo jamais cometido no Reino Unido, poucos meses antes de ele assumir o Mossad, não lhe tivesse interessado muito.
Agora, entretanto, Shavit publicou um livro. Publicado em hebraico em 2018, seu “Chefe do Mossad” sairá em inglês em setembro e esse, o mais taciturno dos ex-chefes de segurança israelenses, está finalmente receptivo para uma conversa mais longa.
Nem em seu livro nem pessoalmente, entretanto, Shavit abandonou uma vida inteira de disciplina. “Chefe do Mossad” deve ter passado por várias rodadas de verificações de segurança, para verificar que não contém informação sensível. Mas Shavit, de 80 anos, que entre outros papéis enquanto crescia no serviço, passou dois anos e meio vivendo no Irã, não escreveu um livro de memórias de operações.
Evitando todo tipo de contos reveladores de espionagem e bravura que poderia contar, ele focou longamente, em vez disso, em doutrina e análise, como diz o subtítulo do livro “Em busca de um Israel protegido e seguro”.
Sentado em sua casa, com a distância de mim requerida no meio da crise do coronavírus, Shavit é um entrevistado envolvente e franco. Ele é qualquer coisa menos discreto em suas avaliações do atual e mais longevo primeiro-ministro de Israel, e surpreende, ao menos para os meus ouvidos, no seu enfoque sugerido para o quase nuclear Irã. Ele argumenta que Israel não pode impedir na prática que o Irã se junte ao clube das armas nucleares – uma avaliação que, de acordo com informes do exterior, um de seus sucessores, o atual chefe do Mossad Yossi Cohen, parece estar fazendo atualmente o máximo para contradizer – mas que Israel pode dissuadir o Irã de usar a bomba.
Na sua narrativa, além disso, o assassinato de Yitzhak Rabin matou tanto o processo de paz com os palestinos, que ele está convencido que Rabin teria continuado apesar de não gostar do contexto de Oslo e detestar Yasser Arafat, como também o esforço para forjar um acordo com o Presidente Hafez Assad da Síria.
Mas certamente, postulei, se Israel tivesse chegado a um acordo com Assad pai e renunciado ao cume estratégico de Golan, essa concessão teria voltado para nos assombrar no meio do caos e da carnificina realizada por Bashar, o filho de Hafez. Shavit, caracteristicamente, foi polidamente evasivo. A inteira subsequente história da Síria teria mudado e portanto a minha questão “não era relevante”.
A seguir, uma transcrição editada de nossa entrevista, conduzida em hebraico em 2 de junho.
ToI: Está evidente no livro que você admirava enormemente Yitzhak Rabin.
Shavit: Eu tive boas relações com Shamir também. Duas pessoas de lados opostos do espectro político. O que tinham em comum era seu estadismo.
ToI: Eu sempre tive a sensação de que Shamir tinha muito medo de fazer qualquer coisa que pudesse prejudicar Israel.
Shavit: Rabin também era extremamente cauteloso. Dos três primeiros-ministros com quem trabalhei, aquele com quem trabalhei mais brevemente, Peres, (por alguns meses) após o assassinato de Rabin, era o único preparado para assumir riscos sem pensar até o fim – apesar de, é claro, sempre com boa intenção, não por desejo de causar dano. Ele sonhava com alguma coisa, ia até o fim, e nem sempre pensava completamente. Os outros dois eram extremamente cautelosos.
ToI: Se Rabin não tivesse sido assassinado, o processo com os palestinos teria terminado diferente? Você escreveu que ele detestava Arafat.
Shavit: Essa é uma questão teórica. Não posso dar uma resposta empírica. Posso avaliar que se Rabin tivesse vivido, o processo teria continuado. Essa estimativa é baseada no fato de que no seu segundo mandato, de 1992 em diante, o entendimento amadureceu com ele de que a única maneira de mudar fundamentalmente a situação, e não continuar a viver sob a espada, era um processo diplomático: Já que Israel é tão forte – militar, econêmica e internacionalmente – ele pode se permitir tomar riscos. Estou citando quase diretamente as palavras que escutei dele. Então temos que fazer o que pudermos, inclusive nos preparar para concessões, para obter a paz, porque a paz seria uma mudança estratégica.
Muito poucas pessoas lembram disso, mas em 1993, um ano após ser eleito, ele estava conduzindo três processos diplomáticos simultâneos – com os palestinos, os jordanianos e a Síria.
Se não tivesse sido assassinado, o processo de Oslo teria continuado – embora possivelmente num ritmo mais lento. Ele foi arrastado para Oslo. Ele não liderou isso. Ele foi enganado; eles esconderam coisas dele; não foi reportado a ele honestamente por Peres e seu grupo. Ele não amava realmente o processo. Mas teria deixado continuar.
ToI: Com a Jordânia ele chegou a um acordo (e você escreveu que esse foi o processo pelo qual ele deveria ter recebido o Prêmio Nobel da Paz)…
Shavit: E com a Síria não – porque Assad não estava preparado para transigir e concordar com uma fórmula viável.
ToI: Sua avaliação é que Arafat poderia ter sido um parceiro. Ainda assim, até a morte de Rabin, o terror continuou; o apoio público ao processo estava colapsando; Rabin não poderia estar satisfeito com o que estava acontecendo…
Shavit: Ele não amava o processo – esta é uma informação interna da qual sou testemunha. Eu trabalhava muito próximo a ele.
Mas é a minha impressão – não posso dizer que é a verdade definitiva – que ele teria deixado o processo continuar. Ele atribuía maior importância ao processo palestino, se eu tiver que ordenar, do que o da Síria.
Se ele tivesse vivido, os três processos teriam continuado. Ter os EUA como parceiro no processo com a Síria não acontece todo dia. Ele não teria deixado isso morrer.
Ele me dizia, ‘não vou deixar de virar uma única pedra no esforço para conseguir resultados positivos’.
ToI: Um acordo com a Síria teria sido muito perigoso, não? Teríamos deixado o Golan e quem sabe o que teria acontecido (dado o horror que se desenrolou lá sob o filho de Assad, Bashar).
Shavit: Isso foi em 1993. Estamos em 2020. São só hipóteses. Dizer que teríamos perdido com o acordo não é relevante. Se você não assume riscos, não chega a lugar nenhum. Rabin estava preparado para assumir riscos, mas não por gostar deles.
ToI: Então, se o processo com a Síria tivesse continuado, a história inteira da Síria teria sido diferente? Não apenas Israel-Síria, mas a própria Síria?
Shavit: Sem dúvida. Tive um pequeno papel, porém crucial, no processo da Síria. Depois do encontro entre Assad e Clinton em Genebra (em janeiro de 1994), Rabin me chamou e disse: não posso fazer uma avaliação definitiva, preto no branco, sobre as concessões que Assad estaria disposto a fazer em troca da retirada das Colinas de Golan. Estou recebendo todo tipo de informação de numerosas fontes; isso não está criando uma imagem sólida.
Então ele me enviou ao Rei Hassan do Marrocos para pedir ao rei para verificar com Assad o que ele estava disposto a conceder. Foi pedido ao rei para esconder o fato de que éramos nós que estávamos perguntando e que inventasse uma razão diferente para perguntar. Ele tinha uma razão plausível – estava entre os ‘guardiões dos lugares sagrados de Jerusalém’. Estava envolvido nos processos do Oriente Médio. Ele despachou o meu equivalente para Assad. Antes de ele reportar de volta para o rei, (esse chefe da inteligência marroquina) veio aqui. Eu o levei até Rabin e ele lhe deu um longo e detalhado relatório verbal. O que convenceu Rabin de que Assad não estava preparado foi que o oficial marroquino veio com a famosa sentença de Assad: quero molhar meus pés no Mar da Galiléia. O marroquino disse que escutou isso diretamente de Assad. E isso convenceu Rabin de que Assad não estava pronto, ainda não estava pronto.
Mas isso não significa que Rabin teria abandonado o esforço. Ele não abandonaria.
ToI: Vamos voltar aos palestinos. Sem negociações por anos. Uma proposta americana. E agora o governo israelense fala sobre anexação unilateral (de 30% da Cisjordânia, incluindo todos os assentamentos e o Vale do Jordão, alocado para Israel no plano do Presidente Trump).
Shavit: As decisões que Netaniahu toma, especialmente agora que está com um pé no tribunal (onde está sendo julgado por suposta corrupção), são decisões táticas que tem a ver com seu julgamento. Mesmo as decisões que tomou no curso da crise do coronavírus. Estou dizendo algo horrível. Estou dizendo que nosso primeiro-ministro não é um estadista. Não está tomando decisões como um estadista. Sinto muito. É realmente o que eu penso.
Me peça para provar isso? Não posso dar uma prova algorítmica, resultado de testes de laboratório. Mas conheço esse cliente, Deus sabe desde quando.
Quando ele foi eleito pela primeira vez (em 1996), eu tinha concluído meu mandato. Ele me pediu para vir trabalhar para ele. Queria que eu reunisse tudo sobre o assunto iraniano. Concordei em fazer em tempo parcial. Eu estava dirigindo o fundo médico Macabi. Por que não aconteceu? Isso é Bibi.
Eu lhe disse que sei como a hierarquia de defesa funciona. O sistema hoje, em 1996 – da inteligência militar, Mossad, Shin Bet, Ministério da Defesa, Comissão de Energia Atômica, e assim vai – é uma mistura (de hierarquias) que requer que minha carta de nomeação – que preparei – seja assinada tanto por você, o primeiro-ministro, quanto pelo Ministro da Defesa Itzik Mordechai. Sem a assinatura do ministro da defesa, eu seria ignorado pelo Ministério da Defesa, pelas FDI…É assim que é.
Ele não queria que Mordechai assinasse a carta de nomeação. Isso o teria diminuído. Então não houve acordo. Isso foi em 1996.
Hoje, em cada assunto de que trata, ele cria pânico, para aumentar a descrição do perigo, para que depois possa dizer ‘quem livrou vocês disso? Eu’. Sem compartilhar o crédito com ninguém.
ToI: E sobre anexação?
Shavit: Não quero diminuir a questão do seu legado, o lugar de Netaniahu na história, como uma consideração a ele. Todo mundo quer ser lembrado. Mas essa não é sua primeira prioridade. Na sua ordem de prioridades, a número 1 é como ele pode empurrar, travar seu julgamento.
Depois que Trump veio com o ‘Acordo do Século’, ele viu isso como uma ferramenta – para Bibi, não para o Estado de Israel. Até hoje, ele não compartilhou seus planos específicos de anexação com o Ministro da Defesa Gantz e o Ministro do Exterior Ashkenazi. Nem sequer mostrou a eles os mapas.
Bibi teve um encontro a sós (semana passada) com (o enviado de Trump) Avi Berkowitz. Gantz e Ashkenazi tiveram uma discussão separada com ele. Um representante americano, com uma agenda, e eles falaram com ele separadamente!
Bibi foi o gatilho para tudo isso (a ideia da anexação). Na época ele pensou ‘isso vai funcionar bem para mim’. Mas desde que levantou a questão, o tempo passou, aconteceu todo tipo de coisa, inclusive o coronavírus.
Pode-se falar um bocado sobre Bibi, mas bobo ele não é. Ele pode avaliar situações melhor que outros. A situação política é frágil; o governo pode cair em qualquer dia. A economia está na pior crise que eu possa recordar. O vírus não acabou; estamos em uma nova onda. Nossa posição internacional – com exceção dos EUA – está entre as piores por décadas. Em novembro há eleições nos EUA e, se olharmos para as pesquisas, Joe Biden será o próximo presidente. E Biden já disse: Bibi, comigo não haverá anexação.
Bibi sabe disso tudo. Na minha estimativa ele está procurando uma árvore para descer. Está procurando alguém para culpar.
ToI: Fácil de achar.
Shavit: Está caminhando para isso.
ToI: Para culpar Gantz?
Shavit: Ele vai encontrar um jeito.
ToI: Vamos falar um pouco sobre o Irã. Você escreveu que é tarde demais – que é fato que eles vão alcançar o estágio de declarar que são uma potência nuclear.
Shavit: Deixe-me primeiro dizer que estou falando desses assuntos não como político ou como figura pública, mas como um oficial de inteligência. Um oficial de inteligência que fornece aos tomadores de decisão, fornece a seu chefe, não apenas inteligência, mas também avaliações e até recomendações. Não me é ‘permitido’ olhar para os melhores cenários, cenários positivos. Não tenho escolha. Tenho que ir para os piores cenários. Se as coisas resultarem melhores, todo mundo se beneficia.
Então o pior cenário é que os iranianos não desistirão da sua decisão, da sua determinação, de alcançar uma capacidade independente em armas nucleares.
Seu racional não é necessariamente ‘eu quero ter a bomba para jogá-la sobre Tel Aviv’. Seu racional primário diz ‘precisamos obter imunidade e no momento em que tivermos armas nucleares, teremos obtido imunidade’. Ninguém vai mexer conosco.
Olha o caso da Coréia do Norte. Clinton tentou. Na era Bush, eles nunca pararam de falar nisso…e ainda assim a Coréia do Norte não apenas manteve suas capacidades nos campos nuclear e de mísseis, mas está continuamente trabalhando em novas tecnologias nessas áreas.
Os iranianos estão determinados a criar imunidade para eles e quando falam em imunidade não é apenas contra Israel. É também contra os EUA e (o presidente turco) Erdogan. Mas, mais do que qualquer outra coisa, é contra o Iraque. Eles não saíram com louvor da guerra de oito anos com o Iraque nos anos 80. O resultado da guerra foi o gatilho para os iranianos tomarem a decisão estratégica de ir para toda a gama de armas não-convencionais – não apenas nucleares. Nuclear, mísseis balísticos, armas químicas, biológicas, cibernética… Cibernética também, na terminologia profissional, é parte dos armamentos não-convencionais.
Se o Irã conseguir a bomba, ele também derrota a Turquia. Seus líderes se encontram. Se visitam. É tudo amável. Mas basicamente, essas duas potências estão competindo pela hegemonia no Oriente Médio.
E então há Israel. Novamente, não sou um desses que dizem que no momento em que obtiverem a bomba eles ameaçarão fisicamente a existência de Israel. Não. Mas um país com a bomba pode criar todo tipo de eixo de influência para promover seus interesses.
Quando o Paquistão desenvolveu sua bomba, ele não tinha dinheiro. Era um país empobrecido. Foram aos sauditas. E os sauditas lhe deram dinheiro para financiar seu projeto nuclear. Em troca, eles devem aos sauditas.
Quando você tem a bomba, você pode usá-la para criar novas redes de conexões, para aumentar sua influência.
Então, embora eu não compartilhe da opinião de que no momento que os iranianos tiverem a bomba eles a usarão fisicamente, isso os eleva – em termos de influência e status. Isso ajuda suas capacidades estratégicas, na região e mais além.
ToI: Aonde isso nos leva e quando devemos fazer o que?
Shavit: O acordo de Obama (o JCPOA de 2015, destinado a controlar a atividade nuclear iraniana) nos dava 15 anos, nos quais todo tipo de coisa poderia acontecer. Agora, com Trump tendo se retirado do acordo, os iranianos têm urânio enriquecido suficiente para pelo menos uma bomba, e em alguns meses…
ToI: Eles podem irromper?
Shavit: Sim, irromper. Fazer uma conferência de imprensa e dizer ao mundo: nós a temos. E ninguém vai dizer eu quero verificar, para se convencer. Nós, nessa situação, temos que criar uma dissuasão real contra o Irã.
Não seremos o garoto louco da vizinhança. Não temos que anunciar aos iranianos, ao mundo, escutem, não permitiremos aos iranianos conseguir a bomba. O que isso significaria? Que vamos embarcar em uma operação militar para destruir o que eles têm. Não acho que essa seja a política correta, porque quando você ameaça você tem que ser capaz de agir. Você vê uma situação onde o primeiro país a usar uma bomba nuclear desde Hiroshima seria a ‘grande potência’ que é o Estado de Israel? Difícil de imaginar. Então o recurso é criar dissuasão real.
Isso significa que temos que garantir que temos as capacidades de tal forma que se você (os iranianos) perder a cabeça um dia e quiser usar (a bomba) contra nós, deve levar em consideração que o Irã deixará de existir. O preço que você terá que pagar se quiser usar essa capacidade contra nós será proibitivo.
ToI: Você está usando termos da guerra fria.
Shavit: Sim.
ToI: E você aceita que eles obtenham a bomba?
Shavit: Sim. Eu olho ao redor do mundo e para os principais atores no mundo. Depois do fim da guerra fria, o mundo se moveu na direção da globalização, na direção dos grandes blocos, na direção dos acordos para criar uma rede global estável. Hoje, o mundo está se movendo na direção exatamente contrária, com o desmantelamento de tudo o que foi conquistado nesses acordos.
Os chineses estão indo pelo caminho deles. Os russos estão indo pelo seu caminho. E os americanos não estão indo a lugar nenhum, certamente não sob Trump. Se ele for reeleito, será uma catástrofe para os EUA e para o mundo livre.
Nessa panorama, eu tenho a chance de criar uma situação onde haverá apoio internacional para mim, numa ação militar contra o Irã?
ToI: Em seu livro, você é muito crítico ao Obama, mas ainda mais ao Trump. É um retrato sombrio.
Shavit: Novamente, isso decorre de minha posição como oficial de inteligência. Tenho que ser pragmático. Posso ser um idealista, mas os ideais não podem ter lugar nas minhas avaliações.
Por sinal, a mesma (estratégia de dissuasão) vale para o Hezbollah. Com o Hezbollah nós não temos que iniciar, mas temos que garantir a capacidade de tal forma que se, que os céus não permitam, eles começarem a lançar dezenas de mísseis sobre Israel, nós entremos no Líbano, certamente no sul do Líbano, e os arrasemos.
Essa tem que ser nossa estratégia: primeiro dissuasão. E se a dissuasão não funcionar, então haja sem piedade.
ToI: Então, neste mundo muito problemático, com esses líderes pobres, aonde isso nos leva? Como sobrevivemos?
Shavit: Neste ponto eu acrescento um outro elemento à discussão: minha crença pessoal. Minha crença pessoal diz que sobreviveremos. Não vejo hoje nenhuma força que pode nos chutar para fora ou nos invadir ou ditar nossa rendição.
ToI: Deixe-me fazer o advogado do diabo. Estaremos bem, mesmo que a anexação nos deixe cada vez mais desprovidos de aliados, com um presidente americano isolacionista? E / ou apesar do líder do Irã, que você diz que é possível dissuadir com princípios da guerra fria (sobre destruição mutuamente assegurada) ser citado no seu livro dizendo ‘minha missão na terra é provocar a destruição do Estado de Israel?
Shavit: Entre ter razão e ser inteligente, eu prefiro a segunda opção. Eu tomo as decisões inteligentes para sobreviver. Considerando tudo o que eu disse, se todas as coisas forem assim, nós sobreviveremos. Há um elemento de fé nisso? Sim, há um elemento de fé.
ToI: Anos atrás, eu perguntei a você sobre Lockerbie (a explosão do voo da Pan Am na rota de Londres para New York). Isso aconteceu em dezembro de 1988, logo após você assumir como chefe do Mossad. Você me falou que foram os libios. Mas todas as evidências pareciam apontar para o Irã (vingando a derrubada pelos EUA de um avião de passageiros da Iran Air no julho anterior), usando os serviços da FPLP-CG (a Frente Popular para a Libertação da Palestina – Comando Geral de Ahmed Jibril). Então pergunto a você novamente.
Shavit: É um segredo público que foram os líbios – as agências de segurança de Kadafi. O terror é global. Fronteiras internacionais não significam nada. Quando uma organização de inteligência quer atuar em um determinado território não familiar, ela procura quem pode ajudar. Quando o Hezbollah quis responder, se vingar, pela ação das FDI que matou (seu co-fundador Abbas) Musawi, eles procuraram os iranianos e os iranianos lhes deram o uso da sua embaixada em Buenos Aires (e eles explodiram a embaixada de Israel em 1992, matando 29 civis – 25 argentinos e 4 israelenses). Mais tarde ficou claro para nós que o ponto inicial para os que explodiram a embaixada foi no Paraguai.
Por que estou dizendo tudo isso? Em Lockerbie, não estou dizendo que tenho todas as peças do quebra-cabeça. Não estou dizendo que os líbios não usaram algum operativo do Jibril ou alguém de alguma outra organização em Londres. Esse tipo de cooperação existe no terror internacional. Mas quem está por trás disso? Kadafi.
ToI: Ficando na Argentina. (Dois anos após a explosão da embaixada, um homem-bomba do Hezbollah, num ataque encomendado pelo Irã, explodiu os escritórios da principal organização judaica, AMIA). Eu conheci Alberto Nisman um pouco (o promotor argentino que expôs os responsáveis e que foi achado morto com uma bala na cabeça na sua casa em 2015). Obviamente ele foi morto. A alegação em um recente documentário na TV israelense, Uvda, de que o Mossad ajudou Nisman com a investigação – chegando até Irã…?
Shavit: Se Israel ajudou não foi através do Mossad. Se aconteceu, foi através do Ministério do Exterior. Mas eu não sei…
A “estrela” do show da TV (um consultor de segurança israelense que teria dado a Nisman material incriminatório sobre a presidente da Argentina Cristina Fernandez de Kirchner e seus possíveis esforços ilícitos para inocentar o Irã) não era um homem do Mossad. Ele foi para a Argentina como oficial de segurança da embaixada…
ToI: Finalmente, você vê um futuro, algum dia, de um retorno das relações normais com o Irã? Você viveu lá (por dois anos e meio, no início de sua carreira no Mossad), embora há muito tempo.
Shavit: Vou dizer algumas coisas. Uma, o povo iraniano não é uma nação homogênea. Junto com a maioria persa, há cerca de 35 grupos étnicos. Lurs, Uzbequis, Azerbaijanos, Árabes – você escolhe. O que os unifica é o Islã shiita. Khamenei é azerbaijano. Ele não é persa. Ainda assim, ele é o líder espiritual. Isso diz algo sobre a capacidade de controlar um país que é maior do que a Europa Ocidental e tem uma população de mais de 80 milhões de habitantes.
Não é apenas ele. Eles construíram um sistema de governo onde o líder espiritual fica no topo, com hierarquias controladas pelos líderes religiosos. E eles controlam o dinheiro do país. Abaixo deles há duas organizações militares – o que eu chamo de o antigo exército iraniano e a Guarda Revolucionária. A Guarda Revolucionária é um exército em todos os aspectos. Mais do que isso, é a Guarda Revolucionária e não o exército, quem controla todos os sistemas não-convencionais – químico, biológico,nuclear e os mísseis.
Nos últimos 20 anos, eu detectei uma certa mudança de direção – longe da subserviência cega da Guarda Revolucionária e da obediência à liderança religiosa-espiritual. Vejo algumas fissuras nessa disciplina automática. A Guarda Revolucionária centraliza tanto poder hoje, que se tornaram o maior poder do Estado. Eles controlam a economia. Controlam o turismo. Controlam as construtoras. E aqui e acolá eles não aceitam automaticamente o que escutam da liderança espiritual-religiosa.
Olhando para a frente para as tendências a longo prazo, eu não descarto duas possibilidades.
Uma, uma mudança no regime que virá de baixo – dos civis, da oposição, nascida da insatisfação popular: o povo se levanta e muda a liderança. Considero essa uma probabilidade pequena. Considero com alta probabilidade a possibilidade de que, mais adiante, a Guarda Revolucionária mude o equilíbrio de poder. Hoje, os clérigos controlam a Guarda Revolucionária. Não descarto a possibilidade de ocorrer o inverso – a Guarda Revolucionária controlando os clérigos. Isso pode parecer improvável, mas eu não descarto.
ToI: E quais seriam as consequências?
Shavit: A boa notícia é que estaríamos lidando com pragmáticos, com pessoas racionais. A má notícia, é que o poder pode lhes subir à cabeça e levá-los a tomar decisões desagradáveis.
[ por David Horovitz | publicado no Times of Israel | 08|07|20 – traduzido por José Manasseh Zagury ]