Por que você quer tratar do último artigo de Beinart no New York Times, que advoga uma Solução de Um Estado em Israel/Palestina? Os israelenses gostaram? Se interessaram?
Pouquíssimos israelenses prestaram atenção a Beinart. Israelenses como eu que o leram, o acharam muito desconectado das realidades de Israel e do Oriente Médio. Mas Beinart é uma grande figura na cultura americana liberal, incluindo o pensamento judaico liberal. O artigo de Beinart deve ser entendido em Israel como um alerta sobre como a distância entre as duas maiores comunidades judaicas do mundo está se ampliando, em grande parte por políticas equivocadas de Israel.
Nos últimos anos, a corrente política dominante de direita religiosa, conduzida pelo primeiro-ministro Netanyahu distanciou-se do Judaísmo liberal e dos americanos liberais. Mas se a corrente principal judaico-americana deixa de ser um aliado estratégico de Israel, não é apenas Israel que tem um problema. Este é o real significado do argumento de Beinart, particularmente quando reflete o pensamento de um segmento crescente da comunidade judaica americana. É desde um profundo respeito que eu abordo as lacunas e erros de percepção do programa de Beinart de Um Estado para Israel.
Por que Beinart está desconectado das realidades israelenses?
Primeiro, como Beinart de repente descobriu, em 2020, que a Solução de Dois Estados está defunta? Para a maioria dos israelenses e palestinos, ela saiu da agenda há pelo menos uma década. Estivemos descendo numa ladeira escorregadia em direção ao resultado de Um Estado, pelo menos desde as conversas Olmert-Abbas findas em 2008.
Secundariamente, o entendimento de Beinart sobre o fracasso do processo de Oslo, me parece perigosamente unilateral. Rabin, Peres, Barak e Olmert fizeram todos valorosos esforços para chegar a um acordo de compromissos com os palestinos. Mesmo Ariel Sharon, como primeiro ministro, mudou de idéia, adotou a Solução de Dois Estados e procurou empoderar os palestinos em Gaza [Na verdade, Sharon praticamente entregou Gaza ao Hamas, recusando-se a fazer uma retirada coordenada com a OLP -NT]. Onde estavam seus parceiros palestinos, a OLP? Fazendo demandas extremas, dividindo-se em duas políticas conflitantes, evitando suas próprias eleições democráticas.
Mas Beinart parece culpar apenas Israel. “Eu sabia que Israel estava errado em negar cidadania aos palestinos na Cisjordânia. … Na prática, Israel anexou a Cisjordânia há muito tempo”, afirma Beinart. Sim, os líderes de Israel são culpados pelos anos de ganância colonial que ignora os direitos básicos palestinos. E os palestinos? Não contribuíram para a atual confusão? Os horríveis bombardeios suicidas da segunda intifada não persuadiram os israelenses a abandonar a noção de coexistência com um Estado Palestino vizinho? Arafat e Abbas não exigiram em Camp David, há exatos 20 anos, o Direito de Retorno de milhões de descendentes de refugiados palestinos? E não afirmaram que “jamais houve um Templo no Monte do Templo”?
Beinart abre seu ensaio com uma coleção de fotos do famoso aperto de mãos entre Arafat e Rabin nos jardins da Casa Branca em 1993, no lançamento de um processo para “criar um Estado Palestino ao lado de Israel”. Um Estado Palestino não era, aliás, o objetivo acordado ou declarado dos Acordos de Oslo. Ainda mais, mesmo então não era a percepção de muitos israelenses.
Eu me lembro de ter perguntado ao meu então chefe, o Major-General Aharon Yariv, se ele planejava assistir à cerimônia de assinatura ao vivo na TV de Israel. “Não posso”, disse Aharele. “Muito doloroso. Eu sei quem é o Arafat real. Meu amigo próximo, Yitzhak, sabe”.
Aharon Yariv era um “peacenik”. Resultou que o Arafat real continuou terrorista. E Rabin seria assassinado por terroristas israelenses cultivados pelos males da Ocupação. Em retrospecto, o processo de Oslo nunca teve muita chance.
Os erros factuais de Beinart também dizem algo sobre o seu entendimento dos processos nos últimos anos. O Plano Trump premia os palestinos com “apenas 70% da Cisjordânia”? Ele os premia também com mais de 10% do Neguev israelense, em dois bizarros enclaves, o que é razão para não apenas palestinos como também alguns falcões israelenses também rejeitarem o plano.
“Mesmo em Gaza, os palestinos não podem importar leite, exportar tomates ou viajar ao exterior sem a permissão de Israel”? Nas fronteiras da Faixa de Gaza com o Sinai egípcio, Israel não tem nenhuma interferência no tráfego. E é o Egito que constantemente restringe o tráfego. Por que, perguntam os israelenses, são os vizinhos árabes dos palestinos tão desconfiados deles?
Até hoje, pesquisas mostram que a maioria dos israelenses aceita a idéia da Solução de Dois Estados. O problema é a percepção dos palestinos como maus candidatos para esta Solução de Dois Estados [e vice-versa -NT]. É a percepção que evoluiu entre os israelenses ao longo de 70 anos de conflito e duas intifadas. Ela emergiu do confronto entre israelenses com líderes palestinos, mesmo entre a própria população árabe-palestina de Israel, que rejeita os judeus como povo que goza do direito de autodeterminação em seu próprio lar nacional. Emergiu do horror de mães palestinas orgulhosas de suas crianças que se explodiam entre civis israelenses, a não mais que 15 anos.
Bem, aqui Beinart afirma que um Estado Judeu “não é a essência do sionismo”. A verdadeira essência é “uma sociedade judaica vibrante que possa prover refúgio e renovação para judeus”. O que, diz ele, é possível na Terra de Israel, dentro de um Estado Binacional Judeu-Árabe.
Esta é a própria essência do argumento de Beinart. Ele observa corretamente que israelenses de direita, como Moshe Arens e o Presidente Rivlin, advogaram que Israel e a Palestina se tornem Um Estado Democrático de todos seus cidadãos.
Mas ignora o fato de que eles, como seu mentor ideológico Jabotinsky, sempre assumiram alguma forma de garantia constitucional para que os judeus tivessem a última palavra; a visão de Jabotinsky era que o Estado Sionista teria um vice-presidente palestino. Não um presidente palestino.
Então também, nos primeiros dias do sionismo era difícil até imaginar conquistar um Estado. Mesmo quando em 1947 David Ben Gurion insistiu em declarar um Estado, estava em minoria entre os líderes sionistas. E sim, o Holocausto teve um papel na criação do Estado de Israel, particularmente na opinião mundial.
Mas é aí que termina a apreensão da essência de Israel por Beinart. Israel tornou-se um Estado e assim se manteve através dos esforços e sacrifícios de gerações de lutadores judeus. Ele enfrentou uma oposição árabe infatigável e brutal desde o início, tanto militar quanto ideológica. Os palestinos em particular cultivaram uma narrativa de vitimização e exílio que insiste não em um Estado Binacional igualitário e democrático, mas no reconhecimento de que o Sionismo nasceu no pecado. “Os judeus não são um povo com direitos nacionais em seu lar nacional histórico”. Os refugiados de 1948 devem ter o direito de retorno para as casas (não mais existentes) que seus antepassados abandonaram ou das quais foram expulsos (sim, foram expulsos; guerra é guerra, e os israelenses não se comportaram como anjos).
Lembre-se que, antes de 1988, a demanda da OLP era precisamente um Estado Binacional em toda a Palestina mandatória – não Dois Estados. Aquele Estado teria uma minoria judaica, usualmente especificada como apenas os descendentes dos judeus que chegaram antes de 1918 ou, esticando, 1948. Todos os refugiados palestinos retornariam.
Você está sugerindo que é assim que seria o Estado Binacional na visão de Beinart? Ele o compara com a Irlanda do Norte e a África do Sul, ambas democráticas. Ele diz que Líbano é uma má comparação, porque Israel está mais avançado.
Assim como o conflito israelense-palestino vem desafiando, há um século os esforços para resolvê-lo, sua solução definitiva desafia a comparação com as soluções soberanas de um mundo multiétnico e multiconfessional. Para entender isto, volte apenas para a conclusão do Comissão Peel de 1937 referente ao conflito árabe-israelense sob mandato britânico: “Um conflito irreprimível surgiu entre duas comunidades nacionais dentro das estreitas fronteiras de um pequeno país… Suas aspirações nacionais são incompatíveis”.
Eis David Ben-Gurion testemunhando num discurso de junho/1919, 30 anos antes de Israel se tornar um Estado: “Todos veem uma dificuldade na questão das relações entre árabes e judeus, Mas não são todos que enxergam que não existe solução para esta questão. Não há solução! Existe um golfo, e nada pode preencher esse golfo… Eu não sei qual árabe concordará que a Palestina deve pertencer aos judeus … E nós precisamos reconhecer esta situação … Nós, como nação, queremos que este país seja nosso; os árabes, como nação, querem que este país seja deles”.
Peel e Ben-Gurion escreveram essas palavras quando Israel/Palestina era Binacional. É claro que muito mudou desde então nas relações judaico-palestinas, mas, francamente, não necessariamente para melhor. Esta é a equação étnico-ideológica em que o Estado Binacional de Beinart nos mergulharia.
Não democrático e igualitário?
Não por muito tempo. Cidadãos árabes veteranos e novos de Israel-Palestina combinariam forças políticas para pressionar pelo “retorno” de milhões de bisnetos dos refugiados de 1948. A demografia trabalharia em favor de uma maioria árabe e, dentro de uma geração, poderia fazê-la acontecer.
Muitos judeus iriam confrontar a morte do sionismo e fugiriam, facilitando a acelerando a revolução demográfica. O país não mais seria um refúgio para judeus em perigo (sim, Peter, hoje ainda é, até mesmo caso Bibi se associar com ultranacionalistas como Orban, Bolsonaro e Trump).
Enquanto isto, extremistas nos dois lados, espalhariam violência por todo lado. Islamistas antissemitas do Hamas iriam atrair mais aderentes palestinos. Os colonos messiânicos também iriam recrutar mais judeus para sua causa exclusionista.
O Líbano, hoje quebrado, altamente faccionalizado e dominado politicamente pelo Hezbollah, proxy do Irã, pareceria melhor que nós, por comparação.
Lembre-se que quando Peel e Ben Gurion escreveram sobre Binacionalismo, o mundo árabe circundante estava sob influência do domínio colonial europeu.
Hoje o mundo árabe está fragmentado e violento. Sírios, iemenitas e líbios estão se matando uns aos outros, manipulados por uma série de poderes externos. Árabes e outros. Os únicos países árabes funcionando mais ou menos são monarquias. Neste sentido, pode ser mais realista que Beinart sugira que todos nós, palestinos e judeus, nos abriguemos sob o benevolente domínio do Rei Abdullah II da Jordânia.
Bem, claro que não! O quadro de referência de Beinart são os valores dos americanos liberais. Mas não é onde nós estamos, no Oriente Médio. Tampouco nós estivemos lá.
Tristemente – para Beinart, para mim, para muitos de nós – Israel está cada vez mais se comportando com os palestinos de uma maneira desagradavelmente levantina. Israel está crescentemente fascista e messiânico. Como seus vizinhos. Beinart está em outro planeta.
Mas se a Solução de Dois Estados está morta e Israel está de qualquer maneira deslizando por uma ladeira escorrogadia para o apartheid, por que não tomar a alternativa de um Estado Binacional Democrático? Certamente seria um final de jogo melhor.
Sim, a realidade atual é cinza. E sim, parece que vai piorar. Mas isto não torna melhor a alternativa imaginada por Beinart. Acho que seria bem pior: uma entidade violenta, disfuncional, um Líbano com esteróides. Certo, discutí-la numa coluna do New York Times pode ser um exercício divertido para judeus americanos liberais e outros e para uma porção da pequena minoria de liberais israelenses. Mas a realidade é outra.
Nós vimos a abordagem mais realista exercitada nas últimas semanas. Líderes dos Estados Unidos e Israel, megalomaníacos e criminosos, tentaram dirigir Israel para uma anexação unilateral de territórios da Cisjordânia, um movimento que constituiria outro passo gigante na direção do apartheid de Um Estado.
Um monte de líderes árabes e mundiais, de boa vontade nos advertiram contra isso. Assim também fez uma boa parte do mainstream judaico-americano, suas instituições e os políticos que expressam seus valores. Foram feitas ameaças de boicote econômico. A 2ª onda do COVID-19 também ajudou. Por enquanto, o status quo está mantido,
Este é um modelo para ativismo futuro por parte de israelenses sionistas, liberais e preocupados com segurança e suas contrapartes nos Estados Unidos [e na Diáspora judaica -NT]
O objetivo seria evitar ou frear qualquer queda maior de Israel pela ladeira escorregadia. Manter viva a perspectiva de um Estado de Israel judeu e democrático, que só pode existir se não dominar os palestinos.
Isto não é o mesmo que defender uma Solução de Dois Estados para amanhã – a ilusão da qual Beinart tão dolorosamente acordou. Mas se ele quiser começar uma conversa séria sobre alternativas, este é pelo menos um lugar mais realista para começar.
[ publicado por Yossi Alpher na APN [Americans for PEACE NOW | 12|07|2020 | traduzido por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR ]
Yossi Alpher é um analista de segurança independente. Foi diretor do Jaffee Center for Strategic Studies na Universidade de Tel Aviv, oficial graduado do Mossad e oficial da inteligência do EDI. Co-editou com o palestino Gassan Khatib, a newsletter Bitterlemons , que semanalmente abordava um aspecto crítico do conflito, analisado por especialistas dos dois lados. Várias de suas edições foram traduzidas pelo PAZ AGORA|BR.
Atualmente, publica uma coluna na newsletter da APN – Americans for Peace Now [peacenow.org], da qual este texto foi traduzido. As posições aqui expressas não representam necessariamente as posições da APN e do PAZ AGORA|BR.
APELO CONTRA A ANEXAÇÃO DA CISJORDÂNIA