Nos livros escolares de Israel, os palestinos são invisíveis

 

“Neveh Daniel é uma comunidade rural”, diz o livro escolar sobre a sociedade israelense “narrado” por Shulamit, uma menina de 9 anos, falando sobre sua família e sua casa.

“… A comunidade é localizada na região de Judéia e Samária e pertence ao Conselho Regional de Gush Etzion. Ainda no período bíblico, judeus viviam nesta área, e a Bíblia conta sobre vários eventos que aconteceram aí. Por exemplo, aqui foram enterrados nossos patriarcas e matriarcas, e aqui as histórias do Rei David e o Livro de Ruth tiveram lugar”.

O livro de 40 páginas para o 4º ano, parte de uma série, pretende fornecer um vislumbre das várias comunidades da sociedade israelense. Mas existe uma coisa que ele ignora: os vizinhos palestinos de Shulamit não tem os mesmos direitos que os membros da sua família.

A única menção são quatro palavras no final de uma sentença: Entre 1,7 milhão e 2,9 milhão de palestinos que vivem “na região chamada Judéia e Samária”, diz o livro, “não são cidadãos israelenses”.

Foto aérea na Cisjordânia, mostrando assentamentos judeus à direita da Barreira de Separação, e casas palestinas à esquerda

O controle de Israel sobre milhões de palestinos não é parte da mensagem. De fato, conforme estudo do Prof. Avner Ben-Amos, da Escola de Educação da Universidade de Tel Aviv, a Ocupação é raramente um tópico abordado nas escolas.

O livreto narrado por Shulamit é designado para alunos “conhecerem um pouco sobre o estilo de vida religioso” e aprenderem sobre a importância de Jerusalém e valores como “vida comunitária” e “ajuda mútua”.

Quando o governo de Israel considera anexar terras da Cisjordânia, as escolas do país continuam a usar textos como o de Shulamit e mapas que omitem a Linha Verde, quando levam as crianças em passeios pela Cisjordânia.

Ben-Amos foi explorar como os livros escolares israelenses e os exames para matrícula em faculdades abordam a Ocupação. Ele chama a situação de “negação interpretativa”.

Na maioria dos livros,  “o controle judeu e o status inferior palestino aparece como uma situação natural e auto-evidente, em que não se deve pensar”, ele escreveu num artigo a ser publicado num livro sobre ensino de História, editado por Eyal Naveh e Nimrod Tal.

Ben-Amos pesquisou sobre a forma em que textos para ensino médio e superior, em escolas públicas e público-religiosas interpretam os desdobramentos da Guerras dos Seis Dias em 1967. Ele examinou livros de História, Geografia e Educação Cívica, assim como materiais de educação informal, como seminários e excursões para estudantes de 2º grau.

Os livros escolares devem ser autorizados pelo Ministério da Educação, que, sob Limor Livnat (Likud) entre 2001 e 2006, bloqueou tentativas de ensinar também a narrativa palestina.

‘Uma tentativa de esconder e silenciar’

Ben-Amos descreve os livros escolares publicados nos primeiros 30 anos após 1967 como “uma lenta internalização do significado da guerra”.  Então, todos os livros de história descrevem “a grande vitória”, enquanto o tom geral é de “auto-satisfação e orgulho irrestrito”, diz.

A única exceção é um trabalho de Ruth Kleinberger, que dedicou quatro páginas à discussão entre esquerda e direita sobre o futuro da Cisjordânia, e a raízes teológicas e ideológicas do movimento de assentamento.

As últimas duas décadas assistiram a um limitado reconhecimento da Ocupação, mas com uma negação de suas repercussões, diz Ben-Amos, que acha que isto é intencional: Se os responsáveis pela educação ignorarem a pesquisa literária, se a informação sobre fatos não puder chegar às salas de aula, estamos falando de “uma atitude de esconder e silenciar”.

Alguns dos livros de história que examinou em 1970, sugerem “um desejo de evitar lidar com um passado que poderia ser controverso”, diz Ben-Amos. Um ou dois livros que apresentam a história numa forma mais complexa foram redigidos pelo Ministério da Educação.

Um deles, como o Haaretz reportou em 2009, usou uma seção do trabalho de um historiador palestino que dizia que o nascente exército israelense em engajou em limpeza étnica durante a guerra de 1948. O livro, que foi inicialmente aprovado pelo Ministério, foi logo recolhido das escolas. Foi devolvido a elas após esta seção e outras partes terem sido expurgadas ou mudadas.

Um livro dirigido a escolas públicas-religiosas apresenta a discussão sobre os territórios em poucas frases, mas descreve a guerra de ‘67 como um ato de “libertação” que permitiu “o retorno à Judéia e Samária, áreas onde nossos patriarcas e matriarcas viveram, onde o reino de David e Salomão foi estabelecido, o coração do povo judeu”.

Mesmo que um punhado de livros escolares descrevam criticamente a Ocupação, a pesquisa de Ben-Amos mostra que nenhum exame vestibular em História, entre 2010 e 2019 abordou uma questão sobre as mudanças de longo-prazo que a guerra causou. Alguns exames incluíram questões sobre a “influência da Guerra dos Seis Dias sobre Israel”, mas as respostas corretas se referiam à expansão das fronteiras do Estado, acessibilidade aos lugares santos e ao aumento da área sob assentamento pelos israelenses.

“O que não aparece nos exames para matrícula em universidades não é ensinado nas escolas”, diz uma veterana professora de História do centro do país. Ela diz que os efeitos a longo-prazo da guerra de 1967 são estudados, no máximo, “com algumas frases sobre a ampliação da cisão entre direita e esquerda. Isto é tudo”.

Prof. Avner Ben Amos

Prof. Avner Ben Amos

‘Uma nuvem sobre cada professor de História ‘

Também, o ponto de vista é de israelenses, normalmente só de judeus. “Eles não se referem às condições em que os palestinos vivem”, diz a professora. “Os palestinos não interessam a ninguém. São invisíveis. É muito conveniente para o governo”.

Os principais livros de Educação Cívica também refletem o ponto de vista dos israelenses. Os direitos limitados dos palestinos na Cisjordânia sob domínio israelense jamais são apresentados.

A primeira edição do livro, usada por 15 anos, analisava em profundidade o amplo debate israelense sobre a Ocupação.  Mas a questão foi reduzida a poucas frases na versão reescrita sob ministros da educação de direita.

O capítulo relevante consistia de um mapa de cidades e vilarejos árabes, enquanto uma linha quase invisível indica “Linha dos Acordos de Armistício de 1949”.

Conforme Ben-Amos, outro livro-texto de Educação Cívica ignora completamente a disputa pelos territórios ocupados – “um silenciamento da situação”, diz.  Em exames vestibulares sobre a matéria, nos últimos 20 anos, nenhuma questão apareceu sobre a limitação dos direitos palestinos ou suas relações com o Estado e os colonos.

“É um tipo de tabu”, diz um professor de História no Sul. “Não se fala dos palestinos vivendo sob um regime militar, e existe uma nuvem sobre todo professos que fala sobre isso. Essas questões nunca são discutidas em classe. O resultado é que os estudantes não podem entender o mundo em que vivem”.

Com relação à Geografia, que não é matéria obrigatória, Ben-Amos descobriu que os livros-texto não ignoram o choque entre Israel e os palestinos sobre a questão das fronteiras, mas descrevem o domínio continuado de Israel sobre a Cisjordânia numa “linguagem que borra a violência envolvida”

Enquanto isto, a Bíblia é usada. As “raízes do povo e da cultura judaica” são enfatizadas nas regiões de “Judéia e Samária” [Cisjordânia]. Citações do Gênesis e do Livro de Josué marcam a presença dos colonos na Cisjordânia.

Ben-Amos escreve que os mapas de livros de geografia descrevem a área entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão como um espaço único [idêntico ao mapa da Palestina utilizado pelo Hamas -NT], às vezes pontilhado por algumas poucas manchas marrons, assinalando a Área A, governada pela Autoridade Palestina. Mas os livros não oferecem “explicação para as várias áreas dominadas pela Autoridade”.

Os  exames de geografia também ignoram a Linha Verde [Linha do Armistício após a Guerra de 1967, reconhecida pela Comunidade Internacional -NT] e os palestinos, mesmo quando a questão se refere à população judia em “Judéia e Samária.”

“Não é uma negação simplista, dizer que esta realidade não existe. É uma negação mais complexa, baseada no fato de que as autoridades de educação conhecem a realidade nos territórios, mas não são dispostos ou capazes de admiti-la”, diz Ben-Amos.

“A abordagem transmitida para os estudantes é que não existe uma diferença fundamental entre o que acontece atrás da Linha Verde e a realidade dentro da linha; que é uma continuidade natural, histórica e geográfica”.

Ben-Amos disse que o fato de os livros escolares ignorarem a Ocupação ou tentarem normalizá-la se originam de auto-censura. Na ausência de diretrizes claras, ninguém quer entrar em listas negras e ser denunciado, o que foi o destino de professores e editores que tentaram transmitir uma mensagem mais matizada do que a permitida pelo Ministério da Educação.

[ publicado por Or Kashti no Haaretz  | 19|06|20  |  traduzido pelo PAZ AGORA | BR  ]

 

+ (des) EDUCAÇÃO em ISRAEL (inglês)



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