Os novos ministros nomeados de Israel já cumpriram sua principal promessa: unir os israelenses, embora por repulsa e desgosto.
Dê crédito a quem merece crédito. Mesmo antes de Benjamin Netaniahu e Benny Gantz, junto com seus comparsas e aliados, tomarem posse no domingo na Knesset, eles atingiram uma das metas centrais de seu novo governo: prometeram unidade e proveram unidade. O público israelense nunca esteve tão unânime em compartilhar tal senso coletivo de desgosto e repulsa.
Embora os fãs de Netaniahu estejam, sem dúvida, satisfeitos por seu líder ter se mantido no posto e embora muitos dos seus frustrados e abatidos oponentes tenham se convencido de que esse é o menor dos males, a grande maioria do público vê o novo governo como uma abominação. É uma mutação, dentro de uma farsa, embrulhada em uma palhaçada.
Há muito podre no “Reino da Dinamarca”
O novo governo de Netaniahu não poderia ter sido criado se não fosse por uma rara confluência de corrupção e vaidade, sem o suporte de legiões de políticos cheios de ego e vaidade, mas totalmente desprovidos de auto-consciência, sem um ambiente político que permita profanar a democracia e assaltar a boa governança e sem a violação premeditada do que resta do que costumava ser a luz que guiava Israel – mamlachtiut (comportamento à altura da dignidade do cargo N.T.), a colocação dos interesses do Estado acima de qualquer outra coisa.
O estabelecimento do novo governo e sua composição ecoa a paródia “The Ministry of Silly Walks”, de cinquenta anos atrás, do grupo Monty Python, um precursor dos cargos ridiculamente redundantes inventados por Netaniahu e Gantz para os seus colegas; “The Purge”, uma série na qual, neste caso, os únicos sobreviventes são os cães de guarda aduladores de Netaniahu; e naturalmente “Godfather”, “Goodfellas”, “Scarface” e outros do gênero, dada a monstruosa construção, já que quase tudo o que aconteceu no último ano, é parte de uma operação selvagem que visa livrar o Chefão das suas aflições legais.
Não é apenas o inchaço artificial do governo, a pompa vazia do poder ou a ignorância deliberada dos verdadeiros desafios do país, em um momento em que mais de um milhão de israelenses estão desempregados e milhares de pequenos negócios estão colapsando. Para criar seu monstro Frankensteiniano, Netaniahu e seu novo comparsa Gantz minaram as fundações do governo ao desmembrar ministérios, retalhando artificialmente divisões e departamentos, gerando incontáveis e custosos gabinetes ministeriais, assessores e motoristas particulares e estabelecendo uma miríade de ministérios encarregados por uma combinação de ‘nada’, ‘coisa nenhuma’ e ‘gurnischt’ – sem que ninguém os impeça ou faça algum protesto esporádico.
Metade do novo gabinete é composto por políticos noviços do Kachol Lavan que, apesar de se gabarem de serem íntegros e transparentes, luxuriosamente tomaram metade das pastas apesar de serem apenas um quarto dos membros da nova coalizão; e pelos principais bajuladores (dentre os membros) do Likud, escolhidos estritamente por seus talentos para o servilismo e sua disposição para serem os Rottweilers de Netaniahu no seu assalto ao estado de direito. Não é coincidência que esses likudniks com um pouquinho de integridade e que ainda têm traços de moralidade foram humilhados, excluídos e colocados de lado.
Nunca os legisladores israelenses pareceram tão desligados dos seus eleitores ou abstraídos de suas necessidades. Liderar pelo exemplo, com muito raras exceções, foi eliminado de seus manuais. Os cofres do Estado, se depender dos novos ministros, são seus caixas-pequenos, destinados a servir suas necessidades, salvar suas honras e realizar suas fúteis aspirações.
Não é de admirar que além da nova enxurrada de piadas, farpas e memes sobre os gastos dos novos gabinetes, que está bombando nas redes sociais, as palavras dos profetas também estão experimentando um renascimento. “Vejam como a cidade fiel se tornou uma prostituta”, disse Isaías, “Seus governantes são rebeldes, sócios de ladrões; todos eles amam as propinas e correm atrás de presentes”.
A “arte do possível” eles chamam para isso, na esperança de que com o passar do tempo e a necessidade de resolver problemas cardinais – incluindo os perigosos delírios de anexação de Netaniahu – as pessoas esquecerão a repulsiva concepção do governo, o qual o ex-ministro Yossi Beilin apelidou de “uma orgia de irresponsabilidades”. Eles estão errados: essa é uma mancha indelével, que derramará sua sombra escura sobre o governo em cada um dos dias de sua existência.
Se e quando chegar o dia em que os historiadores forem solicitados a explicar a destruição final da democracia israelense, eles terão que incluir as chicanas e o absoluto cinismo que permitiram o estabelecimento de um governo com 34 ministros, 16 vice-ministros e uma vergonha que vai permanecer na infâmia.
Depois de castrar o Knesset, ameaçar os tribunais, anular os guardiães e desencorajar a mídia, Netaniahu e seus companheiros estão agora serrando os pés do próprio governo, como se fosse a herança dos pais deles. Eles abandonaram todas as pretensões de lógica, integridade ou decência e trouxeram a política israelense para as poças do respeito e da apreciação pública. Como qualquer estudioso do século XX pode contar, isso, numa casca de noz, é como nascem as ditaduras.
[ por Chemi Shalev | Publicado no Haaretz em 17|05|20 – traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]