Tem coisas que só deveriam acontecer da cabeça de um contador de estórias. Um mestre hassidico. Quem sabe da pena de um Agnon. Só ele pra transformar fato comum em passo mágico. Fosse numa aldeia judia da Rússia czarista. Numa ruela de uma Jerusalém mal renascida, onde morava o escritor nos anos trinta. Mas não. É fato fresco. Revelado nesta manhã de sábado de aleluia no bairro de Botafogo. O Luiz Elias mora na casa do outro lado do muro construído mais pra aproximar do que pra impor distancia. Com menos de dois metros de altura, o que arremata a fronteira é uma parede vazada de cobogó cor de tijolo crescendo sobre a divisória em direção ao fundo dos nossos quintais. Como se fosse o lado de um triângulo ela sobe até alcançar a tela de arame enredada de alamandas amarelas, buganvílias esmirradas de floração incerta e um pé de arvore de São Sebastião chegado da caatinga com má fama de espirrar leite que cega.
Delicado como sempre, Luiz Elias pedia desculpas. É que na noite anterior não tinha resistido. Ao invés de tapar os ouvidos se deixou levar pelas coisas que eu contava diante da tela dividida em quatro do meu lap top. Tinha achado a estória tão bonita que não conseguiu despregar o ouvido. Pelo contrário. Ele e a mulher acabaram largando a transmissão da missa e vindo pro quintal escutar melhor os meus silêncios amealhados ao longo de tantos livros. Falei do Egito de cada um. Da escravidão que a gente reclama mas não quer largar. Do deserto que anda e do mar que fecha os caminhos. Da sarça que ardia sem queimar e do Moises gago tendo que dar ordens pro Faraó.
Fiz a benção da Matzá em aramaico. Expliquei que era a língua que Jesus falava e que ele tinha sido preso no meio de uma ceia como a nossa. Fazia perguntas. Dava respostas. Falava rápido. Frases curtas. Estávamos no virtual. Tinha que me adaptar. Ser objetivo. Olhar pra todas as janelas da tela ao mesmo tempo. Lembrei os cruzados. A peste negra. O nazismo. Os campos de concentração. Gueto de Varsóvia. Tudo isso para dizer que sempre daríamos um jeito de celebrar o Pessach apesar da internet instável e sobrecarregada. Não seria uma quarentena a mais que iria nos impedir.
Fiz de tudo pra despertar o interesse da plateia. Acabei cansado de competir com celulares escondidos do meu olhar abaixo do tampo da mesa. Corpos impacientes sumindo e entrado no quadro. Olhares distantes apesar da proximidade ilusória que a cena criava. Ao deitar tinha concluído que era hora de desistir. Jogar a toalha de linho da avó pro fundo do armário. Deixá-la amarelar junto ao pano de cobrir Matzá bordado em hebraico e a estante de livros que ninguém iria querer. Nem dada.
E o Luiz Elias, de ouvido grudado nos meus esquecimentos,
ouvia tudo aquilo como se fosse só pra ele.
[ Paulo Blank, escritor e psicanalista, é membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA ]