Coronavírus e Democracia em Israel

Após mais de um ano, Israel ainda tem um governo interino e nenhum orçamento aprovado. Agora tem também a crise do corona para administrar. O presidente do Knesset (Parlamento), Yuli Edelstein, que postergou a convocação do Knesset, diz que as opções atuais são entre uma coalizão de unidade e anarquia. Por que anarquia?

Edelstein, em coordenação com o premier Netanyahu, está procurando manter o domínio do Likud, agora minoritário, a todo custo. Aparentemente no seu ponto de vista, amplamente adotado pela direita, uma coalizão formada pelo Azul e Branco de Benny Gantz, que conte com os 15 mandatos da Lista Árabe Unida é o equivalente a anarquia. Em outras palavras, os votos árabes e os membros árabes do Knesset seriam para ele ilegítimos.

O premier Netanyahu tem um toque ligeiramente mais nuanceado: apenas porque alguns desses 15 deputados árabes fala positivamente de terroristas, diz ele, que todos são desqualificados. Isto, dito por um primeiro-ministro que é aliado de judeus extremamente racistas e messiânicos, dos dos quais são ministros interinos de Saúde e Educação. O ministro da saúde, Yaakov Litzman, por acaso está sob investigação policial por obstrução de justiça. Na semana passada informou os israelenses de que “o Messias chegará antes do Pessach para nos libertar [do corona]”. Palavras do Ministro da Saúde !!!

Enquanto isto, o governo não eleito e não confirmado de Netanyahu está emitindo proclamações de emergência com respeito ao monitoramento de celulares para rastrear os pacientes de corona e envolver o exército no combate do vírus.  A Suprema Corte declarou que esse monitoramento deve parar até amanhã, a não ser que haja um comitê parlamentar para supervisioná-lo. A Suprema Cortes também foi demandada pelo Azul e Branco para julgar a legalidade do fechamento do Parlamento por manobras de Netanyahu.

O início desta semana são dias críticos.  Terá sucesso Gantz em convocar o Knesset, substituir seu presidente e estabelecer os comitês necessários para legislar e supervisionar?

Poderá Netanyahu manobrar Gantz para um governo emergencial de unidade, apesar das objeções de muitos do Azul e Branco? A Suprema Corte de Justiça prevalecerá?  Fracassarão os dois lados, direcionando para uma quarta rodada de eleições em algum tempo indeterminado pós-corona, mantendo-se sob controle de um Netanyahu movido a ego e avesso às leis?

Atrás desses cenários alternativos, parecem haver duas questões muito básicas. Uma é o desejo desesperado de Netanyahu por ficar no poder e evitar ser processado  apesar da lei e da ausência de apoio da maioria. A outra são as atitudes da direita contra os árabes israelenses à medida que eles consolidam seu poder político.

Na semana passada, ao se recusar a convocar o Knesset recém-eleito, Edelstein, por conta de Netanyahu, disparou alarmes com vistas às distâncias anti-democráticas que Netanyahu e seus apoiadores podem ir para segurar o poder, tendo as batalhas contra o corona e contra os árabes israelenses como justificativas. Aqui vão as respostas de dois israelenses muito respeitados.

O escritor-filósofo Yuval Noah Harari (Sapiens, 21 Lições para o Século 21) escreveu neste domingo, nas páginas do Yedioth Ahronoth que as decisões de Netanyahu são questões de vida e morte, sobre os limites da nossa liberdade, sobre a distribuição de dezenas de bilhões.  Bem agora, estas decisões estão sendo feitas por um homem que é acusado de corrupção, fraude e quebra de confiança…  Os representantes do povo não estão monitorando o que este homem decide, porque ele fechou o Parlamento …

Há muitos outros países emitindo regulamentos de emergência. Isto é necessário e legítimo. Os que emitem tais regulamentos na Itália ou Canadá são governos democraticamente eleitos pelo povo. Aqui, a pessoa que regulamenta não recebeu um mandato do povo …

Hoje [segunda, 23/3] é um teste de sobrevivência para a democracia em Israel. Se o Knesset não se reunir, não eleger um novo presidente e não nomear comitês …

E o ex-chefe do Mossad, Ephraim Halevy escreveu no Haaretz : “Se os milhares de servidores da saúde árabes – médicos, enfermeiras e farmacêuticos – resolvessem ficar em casa, todo o sistema entraria em colapso…  Todo aquele que desqualifica um deputado árabe, desqualifica seus apoiadores, incluindo os médicos que estão hoje salvando vidas de israelenses – judeus, árabes ou druzos.  Esta é uma desgraça e, pior, uma ferida auto-infligida”.

Mas pode Gantz realmente formar uma coalizão governante baseado em 61 deputados que incluem 15 da Lista Unida e pelo menos dois direitistas do Azul e Branco que se opõem a um governo dependente de votos árabes?

Não. Tudo o que Ganz está aparentemente tentando fazer é reunir o Knesset e assumir o controle dele substituindo Edelstein por Meir Cohen, do Azul e Branco e estabelecer um Comitê de Acordos (que definiria os outros comitês). Ele espera obter apoio da Suprema Corte para essas ações. Enquanto isto, os 59 deputados apoiadores de Netanyahu planejam boicotar o Knesset. Gantz usará então o Comitê de Acordos e Cohen criará nos comitês  chefiados pelo Azul e Branco.  Se essas ações tiverem sucesso, ele deseja introduzir legislação que evitaria que um Netanyahu indiciado formasse governos futuros.

Gantz  precisa dos 15 votos da Lista Árabe Unida e da tolerância daqueles dois direitistas para essas medidas, nada mais. Caso tenha sucesso em pelo menos alguma dessas manobras, planeja negociar um governo de união com Netanyahu de uma posição de força política. Na segunda-feira, a Corte Suprema ordenou a Edelstein que viabilizasse a eleição de um novo presidente do Knesset dentro de dois dias. Este é um passo na direção certa. O Parlamento também deverá encontrar formas de permitir a reunião e votação na era do coronavirus; Vários deputados já estão em quarentena.

No último sábado, Netanyahu não ofereceu publicamente a Gantz um governo de união, baseado em paridade, rotação após 18 meses (primeiro Netanyahu, claro) e alguma forma de partilha do ministério da Justiça (que pudesse influenciar nos trâmites legais de Netanyahu’?

Aparentemente, esta oferta pode parecer boa, Gantz parece tentado. Mesmo a demanda de Netanyahu de que seria o primeiro a servir como primeiro ministro, e Ganz nomearia o ministro das finanças e o presidente do Knesset, poderia ser considerada razoável.

Mas ao analisar a proposta, Gantz enfrenta dois problemas, que na verdade são um: Netanyahu não tem credibilidade nem no centro nem na esquerda.

Isto significa, primeiro, que um governo “paritário” não seria realmente baseado em paridade por causa de dois importantes componentes do Azul e Branco – os dois partidos liderados por Yair Lapid e Moshe Yaalon: eles se recusariam a participar. Afinal, a plataforma eleitoral do Azul e Branco para as três eleições seguidas foi   “Só Sem Netanyahu”. Lapid e Yaalon serviram como ministros senior em governos de Netanyahu, em anos recentes e ambos resolveram, após sair ou serem demidios: “nunca mais”.

Então Gantz traria para o governo de união proposto até 20 deputados, incluindo Avodá e Meretz. A Lista Árabe não seria convidade e nem buscaria um convite (alguns dos seus membror mais extremistas mal talvez cooperariam na tentativa desta semana de assumir o controle do Knesset por parte de Gantz). Mesmo Avodá e Meretz não podem ser contados; seu terceiro componente, Gesher, representado por Orly Levy-Abakasis, já passou para o Likud em troca de promessas duvidosas de Netanyahu.

Gantz poderia tornar-se ministro do exterior num ostensivo governo de união baseado em paridade e Gaby Ashkenazi do Azul e Branco o ministro da defesa. Mas Netanyahu encontraria rapidamente formas de neutralizar esta minoria  (20 de quase 80 deputados) no seu governo de “unidade”. E o Azul e Branco acabaria. Seguiria o caminho de todos seus partidos predecessores “centristas” que começaram com montes de votos e acabaram em farrapos. Lembra do Dash? E do Kadima?

Segundo, Netanyahu não pode depender da rotação do primeiro-ministro após 18 meses. Ele encontrará uma saída. Uma crise nova e conveniente como o corona. Gantz e Ashkenazi irão então se sentir obrigados a sair da coalizão, e  Netanyahu poderia optar por novas eleições; atualmente ele tem pesquisas mostrando que o bloco do Likud , turbinado pelo corona, venceria. Ou ele poderia talvez buscar ser eleito presidente, sucedendo Reuven Rivlin (cujo mandato vencerá nessa época), garantindo assim imunidade contra processos judiciais até que tenha quase 80 anos.

Pelos padrões dos Estados Unidos e europeus, Israel parece estar lidando com bastante sucesso com o vírus: só uma morte, e uma curva “achatada” que de certa forma permite que o sistema de saúde funcione. Seguramente isto, e a imensidão da crise global, põe  dilemas políticos de Israel com o corona numa luz mais positiva. Certamente, pelos padrões internacionais, Netanyahu merece algum crédito…

Sim, Netanyahu é um administrador de crises capaz, apesar da predileção de seus bajuladores por soluções medíocres. E sim, os problemas relacionados ao vírus que Israel está sofrendo – falta de kits de teste, de máscaras, compensação financeira para desemptregados, etc.   são compartilhados com o resto do mundo. Mas o perigo apontado por Yuval Noah Harari é real. Esta é a primeira vez na história de Israel que o partido que perdeu eleições se recusou a transferir o poder. Israel poderia ao fim da pandemia restar com menos democracia e menos legalidade. Aí, Netanyahu pessoalmente constitui um autêntico perigo ao futuro do bem-estar do país.

Tudo isto, num paíes duramente colocado para encontrar unidade e governança no melhor dos tempos entre o mainstream, como Litzman, e a comunidade árabe.

Então, também, as ameaças a segurança que Israel enfrentou há tres meses não foram embora. Na verdade estão adormecidas: o Irã está preocupado com uma epidemia de corona muito mal administrada, enquanto a Faixa de Gaza acaba de registrar seus primeiros dois casos. Mas Irã e Gaza são instâncias onde o corona poderia provocar novas ameaças militares. Não é difícil imagina o Irã e/ou o Hamas promovendo ataques a Israel de Síria, Líbano e Gaza para desviar as atenções das epidemias selvagemente descontroladas em casa. Ou o Irã embarcando num programa de armamento nuclear.

Será suficiente que o EDI tenha colocado tripulações de submarinos e pilotos em “cápsulas” seladas para assegurar que o corona não ameace a prontidão e funcionamento do exército de Israel?

Não. Para lidar com cenários como esses, com  uma grande crise global induzida pelo corona e crises economicas locais além de possíveis choques no balanço internacional de poder, Israel preceisa estar tão unido quanto possível atrás de lideranças que não esejam explorando suas crises para sua própria sobrevivência política. Infelizmente, este não é o caso.

 

Yossi Alpher é um analista de segurança independente. Foi diretor do Jaffee Center for Strategic Studies na Universidade de Tel Aviv, oficial graduado do Mossad e oficial da inteligência do EDI. Publicou com o palestino Gassan Khatib, a newsletter Bitterlemons, que semanalmente abordava um aspecto crítico do conflito, analisado por especialistas dos dois lados, que teve várias edições traduzidas pelo PAZ AGORA|BR.

Atualmente, publica uma coluna na newsletter da APN – Americans for Peace Now [peacenow.org], da qual este texto foi traduzido. As posições aqui expressas não representam necessariamente as posições da APN e do PAZ AGORA|BR.

 

Comentários estão fechados.