O Lado Certo da História – Richard Zimler

Richard Zimler: “A memória do Holocausto tem de competir com a propaganda neonazi”

O escritor Richard Zimler alerta para o facto de a memória do Holocausto estar a desvanecer-se rapidamente. Foi um dos temas da sua recente intervenção no Dia da Memória do Holocausto em Colchester, intitulada O Lado Certo da História, que o DN reproduz.

A 19 de abril de 1506, eclodiu um pogrom em Lisboa, Portugal, liderado por padres dominicanos que gritavam “Morte aos judeus!” e “Morte aos hereges!”. Os manifestantes que seguiam esses fanáticos religiosos pela cidade acabaram assassinando cerca de dois mil cristãos-novos, judeus que haviam sido batizados à força numa conversão em massa nove anos antes. Os seus corpos foram arrastados para a praça central de Lisboa e queimados em duas enormes piras.

Descobri esse crime contra a humanidade em 1990, enquanto pesquisava a vida quotidiana em Portugal no século XVI, mas quando perguntei aos meus amigos portugueses o que sabiam sobre o massacre, todos responderam: “Que massacre? De que é que estás a falar?”

Depressa descobri que o pogrom não era mencionado nos manuais escolares ou livros de História. Tinha sido apagado da memória.

Essa amnésia em Portugal pareceu-me um segundo crime, porque aqueles dois mil cristãos-novos mortos eram tão reais para eles próprios como nós somos para nós mesmos. Eles tinham alegrias e tristezas, aniversários para comemorar, dores nas costas e bronquites, e casas à espera de uma limpeza de primavera; e sonhos ainda por realizar.

Assim, decidi fazer do massacre o pano de fundo para o romance que estava a planear escrever sobre um iluminista de manuscritos judeu que vivia em Lisboa. Ao longo da minha vida fui percebendo que tenho uma personalidade profundamente subversiva; escrever sobre acontecimentos que aqueles com poder económico e político preferem branquear ou esquecer dá-me um grande sentido de missão.

O romance O Último Cabalista de Lisboa acabou por contar a história de Berekiah Zarco, um jovem cristão-novo estudioso que sobrevive ao Massacre de Lisboa e descobre que o seu amado tio, o seu mentor espiritual, foi assassinado na cave da família. Embora assolado pela dor e pelo desespero, ele decide tentar encontrar o assassino. Mas como cabalista interessado no significado simbólico dos acontecimentos, ele começa a interessar-se muito mais pelo que o assassinato do seu tio e o pogrom significam para a sua família, os judeus, toda a humanidade e até para Deus. Berekiah oferece ao leitor a sua própria interpretação na última página do romance e as suas palavras dão à narrativa um significado arrepiante.

Até agora, o livro já foi publicado em 23 idiomas, e fez de mim um inimigo da hierarquia da Igreja. A ala mais repressiva da Igreja Católica – Opus Dei – colocou o livro na categoria das obras absolutamente proibidas.

Ficariam surpreendidos ao saber que fiquei satisfeito com esta proibição? Porque é uma prova de que aqueles com poder religioso e político que desejam impedir que a verdade seja exposta têm medo de mim! Como deveriam ter. Porque não faço tenção de ficar calado.

Com alguma sorte, o filme de O Último Cabalista de Lisboa começará a ser filmado em setembro. Mas mais importante do que o sucesso do livro é o que ele me ensinou: que valorizo ​​a oportunidade de escrever sobre pessoas cujas vozes foram sistematicamente silenciadas. Isso dá-me a energia – a raiva a arder em fogo lento – de que preciso para ir em frente durante os dois a três anos que levo para escrever um romance. Também me faz sentir que estou a combater do lado certo da história, que me parece ser o melhor lugar possível para se estar.

Peço-vos que se lembrem disto: o lado certo da história é sempre o lado que tem uma memória.

Muitos crimes do passado contra a humanidade já foram esquecidos. Eu cresci no estado de Nova Iorque, que já foi território de iroqueses e outras tribos nativas americanas. Mas sabem quanto tempo dedicámos nas nossas aulas à sua cultura, história, religião e música? E a como eles foram brutalmente expulsos das suas terras e assassinados pelo governo dos Estados Unidos?

Ficariam chocados se eu dissesse que não lhes dedicámos nem um único dia? Infelizmente, a complacência, a culpa e os interesses políticos incentivam um esquecimento deliberado em populações inteiras. E é isso que acontecerá com o Holocausto, a menos que trabalhemos muito a sério para o evitar.

Já existem sinais graves de que a maioria das pessoas na América e na Europa não entendem o genocídio nazi. Nos EUA, 41% dos adultos e 66% dos homens e mulheres jovens nascidos após 1990 não sabem o que era Auschwitz. Eles não têm noção de quantos judeus morreram nos campos da morte; ou quantos ciganos ou homossexuais ou comunistas.

A memória do Holocausto está a desvanecer-se rapidamente.

Estão cientes de que o antissemitismo é extremamente forte agora em países como o Japão, a Suécia e a Espanha, onde quase não existem judeus?

Na Hungria, na Lituânia e noutros países da Europa Oriental, onde antes existiam comunidades asquenazes prósperas, a história foi reescrita para exonerar os seus cidadãos de qualquer culpa. Agora, na Polónia, é crime escrever ou falar sobre a colaboração polaca no plano dos nazis para exterminar os judeus.

Será que daqui a cem anos alguém nesses países e no resto do mundo saberá alguma coisa para além dos contornos mais vagos sobre o Holocausto? Dado o desprezo pela verdade evidenciada por alguns dos nossos políticos mais poderosos e pela comunicação social, duvido.

Portanto, acho que o que estamos a fazer hoje aqui é extremamente importante. Especialmente se desejarmos deter o aumento do ódio étnico e religioso que floresce em todo o mundo contemporâneo – infelizmente, até mesmo no Reino Unido.

A extensão do antissemitismo

Há cerca de 40 anos, tomei conhecimento da extensão do antissemitismo no mundo moderno em circunstâncias muito difíceis. Estávamos em 1982… O ano em que a Argentina invadiu as Malvinas e em que o E.T. ligou para casa. Nesse verão fiz um estágio nos escritórios da United Press em Paris. Na época, a UP era uma das principais agências de notícias.

No meu primeiro dia de trabalho, entrei nos escritórios da United Press e cinco repórteres e fotógrafos estavam a olhar para uma televisão montada numa parede lateral. A rececionista indicou-me o chefe da agência em exercício. O nome dele era Georges Sibera. Era careca e barrigudo, tinha o rosto vermelho e suava muito. Parecia bêbedo. Embora eu não conseguisse ver a televisão do lugar em que me encontrava, o som tornou claro que se tratava de uma reportagem relacionada com soldados israelitas arrasando uma aldeia palestiniana. Enquanto esperava uma pausa, Georges ergueu o dedo médio na direção da televisão e amaldiçoou os soldados israelitas. Alguns minutos depois, quando a reportagem terminou, aproximei-me dele e apresentei-me. E a primeira coisa que ele me disse – juro que não estou a inventar isto – foi: “Espero que você não seja mais um judeu!”

Questionam-se, por vezes, se admitiriam ser judeus quando confrontados com um antissemita hostil, possivelmente muito bêbedo?

Senti a minha cabeça a encolher-se para dentro dos ombros como a de uma tartaruga, sorri levemente e respondi: “De facto, para o bem e para o mal, sou judeu.”

Ele olhou-me de cima a baixo. Um inseto prestes a ser esmagado deve sentir-se tão encorajado como eu me senti naquele momento; depois, ele mostrou-me a minha mesa.

Trabalhei para o antissemita Georges durante três meses naquele verão. Talvez por um prazer perverso, ele fez-me cobrir todos os comícios antissionistas, onde aprendi o cântico da altura, que com algumas rimas simpáticas se referia ao primeiro-ministro de Israel na época, Menachem Begin, e ao então presidente americano, Ronald Reagan:

A bas Begin, a bas Reagan,
Vive les combattants Libanais Palestiniens
(Abaixo Begin, abaixo Reagan,
Viva os combatentes libaneses palestinos…)

Passei horas a aperfeiçoar os meus artigos sobre esses comícios, apesar de pouco do que escrevia interessar aos leitores americanos. Mas a minha deceção perdeu rapidamente toda a importância. Porque às 13.15 de 9 de agosto de 1982 dois assassinos de um grupo terrorista palestiniano atiraram granadas para a sala de refeições do Jo Goldenberg, um conhecido restaurante judeu no bairro judeu de Paris. Depois, correram lá para dentro disparando armas automáticas, assassinando seis pessoas e ferindo outras 22.

Naquela noite, fui ver o restaurante, que havia sido isolado, embora fosse fácil detetar sangue seco nas pedras do lado de fora.

Na manhã seguinte, Georges enviou-me ao hospital Hotel Dieu para entrevistar o marido de uma dos dois americanos assassinados no ataque. O nome dele era David. Ann, a sua mulher, tinha sido morta. Eles eram professores universitários em Chicago e estavam a trabalhar num livro sobre a história da arquitetura. Ann e David estavam sentados ao balcão quando os terroristas atiraram as suas granadas lá para dentro.

David e eu conversámos durante toda a manhã, em parte porque ele estava desesperado por falar inglês com alguém. Embora tivesse sido ferido no ombro por uma bala, conseguia falar coerentemente. Disse-me que ele e Ann haviam sobrevivido às duas explosões de granadas e tentaram rastejar juntos até à parte de trás do restaurante. Quando os disparos das armas automáticas começaram, ele cobriu o corpo dela com o seu. Tinha a certeza disso. Ele, simplesmente não conseguia entender como ela tinha sido morta, ou porquê. Não fazia sentido. Disse-me que se um deles tivesse de morrer, ele deveria ter sido o escolhido.

O que David me contou durante as horas em que conversámos deu-me as minhas três primeiras lições sobre o ódio aos judeus.

PRIMEIRA: que pode tornar-se mortal quando menos se espera.
SEGUNDA: que ataques como este – a inocentes longe de qualquer conflito – NUNCA fazem sentido.
TERCEIRA: se forem judeus e conseguirem viver a vossa vida sem nunca serem atacados, considerem-se com sorte, porque ser-se espancado, esfaqueado ou baleado é apenas uma questão de estar no lugar errado na hora errada.

Nas semanas que se seguiram, aprendi uma QUARTA LIÇÃO desanimadora: que muitas pessoas supostamente inteligentes são incapazes – ou não querem – de distinguir entre antissemitismo e antissionismo. Quero enfatizar que o ataque que matou Ann e feriu David não passou de antissemitismo visceral. Porquê?

As pessoas mortas eram cidadãos franceses e americanos, não representantes de Israel ou do seu governo. Os terroristas escolheram um restaurante judeu, propriedade de um cidadão judeu-francês, na capital francesa.

No entanto, muitos jornais parisienses referiram-se àquilo como um ataque antissionista, exatamente a mentira que os terroristas queriam que eles escrevessem, o que me enfureceu. E ainda enfurece.

E aqui está a QUINTA LIÇÃO: é difícil encontrar justiça no mundo muito injusto em que vivemos. Porque digo isso?

Embora agora saibamos onde residem atualmente os homens suspeitos de planear e realizar o ataque, os governos da Jordânia, da Noruega e dos Territórios Palestinianos recusam-se a permitir que sejam extraditados.

De volta a David no hospital… A sua preocupação mais profunda e angustiante era como contar à filha de 3 anos que a mãe tinha morrido. Parei de tomar notas quando ele me disse isso, porque a nossa conversa não se encaixava na minha definição de notícias, era simplesmente muito pessoal e privada.

Depois de quatro horas de conversa, deixei-o. Chorei no corredor durante algum tempo e depois entrevistei vários sobreviventes franceses do ataque. Só me lembro de uma pessoa, porque o que vi chocou-me profundamente. Era uma francesa idosa e tinha talvez duzentos pequenos orifícios no rosto e no corpo. Os buracos estavam cobertos de sangue, tinham sido feitos por estilhaços e balas. No entanto, ela conseguiu conversar comigo, sorrir, perguntar-me sobre o meu trabalho e contar-me exatamente o que lhe tinha acontecido.

Ainda hoje, quase 40 anos depois, quando ouço um tropo ou referência antissemita – por muito leve que seja -, eu penso nela e em como ela era corajosa e maravilhosa, e penso em David, é claro.

Depois de deixar o hospital, voltei à redação para registar a minha história. Mal tinha terminado, um repórter sénior gritou comigo por não ter gravado a minha conversa com David, pois poderíamos ter enviado o som para clientes de rádio. Poucos minutos depois, Georges gritou comigo em inglês e francês, já que um idioma não podia conter todo o seu desprezo.

E foi assim que aprendi que realmente não queria ser jornalista, embora durante os oito anos seguintes acreditasse que sim, até encontrar coragem para começar a escrever os meus romances.

Um breve post scriptum. Localizei o endereço de e-mail de David no ano passado e escrevi-lhe uma breve mensagem. Ele agradeceu-me por entrar em contacto e por ter passado tanto tempo com ele no hospital, mas disse-me que não queria tornar-se o que chamou de “vítima profissional”. Como explicação, contou-me que uma modesta placa na parede do restaurante Jo Goldenberg – indicando os nomes das vítimas – foi substituída recentemente por uma outra enorme e vistosa. Mas o apelido da sua mulher tinha sido escrito incorretamente. E aqui está o que eu achei tão comovente: ele escreveu que, em vez de ficar irritado ou chateado com o erro de ortografia, ficou profundamente aliviado, porque agora Ann – a sua mulher morta – era mais uma vez dele, como deveria ser.

Experiência pessoal

A minha experiência pessoal mais recente com antissemitismo aconteceu na primavera passada.

Um pouco de contexto… Sempre que um novo romance meu é publicado, venho geralmente ao Reino Unido para fazer ações de promoção. O meu último livro, O Evangelho segundo Lázaro, foi lançado em abril passado. Então, um velho amigo meu, que é publicista a meio tempo, começou a tentar organizar eventos para mim três meses antes disso.

Tenham presente que as suas tentativas para interessar os organizadores de eventos em mim nem sempre são bem-sucedidas. Eu não sou suficientemente conhecido. Mas em março do ano passado, pela primeira vez, fui recusado por ser judeu.

Naquele momento, o meu publicista telefonou e confessou – num tom angustiado que eu nunca tinha ouvido antes – que eu acabara de ser rejeitado por duas organizações culturais que tinham anteriormente demonstrado entusiasmo em organizar um evento comigo. “Eles perguntaram-me se você era judeu e, no momento em que respondi que sim, eles perderam todo o interesse. Até deixaram de responder aos meus e-mails e às minhas mensagens telefónicas.”

Vou chamar John ao meu publicista, pois ele prefere permanecer anónimo. John disse-me que as conversas finais que teve com os dois coordenadores do evento o convenceram de que não eram antissemitas, mas temiam uma reação – protestos dos seus membros e de outros – se fizessem um convite a um escritor judeu.

Depois da minha conversa telefónica com ele, fiquei chocado e chateado. Eu nunca esperaria que a minha carreira no Reino Unido fosse prejudicada pelo facto de ser judeu. Aquilo fez que o país me parecesse um lugar que eu não conhecia e talvez nunca tivesse conhecido. Até mesmo perguntarem sobre a minha crença religiosa me pareceu ultrajante. Obviamente, não acredito que alguém saia beneficiado quando os escritores são censurados pela sua etnia ou fé.

E, mais uma vez, não vamos desviar-nos com referências a Israel. Embora seja perfeitamente legítimo para aqueles que se opõem às políticas de Netanyahu protestarem contra elas – eu mesmo o faço muitas vezes – não tenho qualquer ligação com Israel. Não tenho investimentos nem família lá. É verdade que o meu novo romance se passa na Terra Santa, mas decorre dois mil anos antes da fundação do Estado de Israel. Quanto à minha nacionalidade, sou americano e português.

Mas, como aprendi em Paris em 1982, muitas pessoas recusam-se a reconhecer a diferença entre antissemitismo e antissionismo. Ou entre um judeu e um israelita. Na sua opinião, todos os judeus são responsáveis ​​pela política israelita. Todos somos culpados de estabelecer colonatos judeus em terras palestinianas e de frustrar as esperanças palestinianas numa pátria estável. Todos nós, portanto, merecemos ser envergonhados e punidos.

Qualquer judeu que seja um pouco conhecido, como eu, não pode postar nada no Facebook – um jantar tranquilo com amigos, um lançamento de um livro, uma viagem ao Reino Unido – sem receber insultos e até, ocasionalmente, ameaças de trolls anti-Israel.

Felizmente para mim, o meu caso em particular não é importante – poderei escrever os meus romances e ganhar a vida mesmo que nunca receba outro convite para falar no Reino Unido. Mas e os artistas, escritores, cientistas e outros judeus cujas carreiras são prejudicadas ou bloqueadas pelo medo de protestos?

Uma coisa eu sei: quem não recebe os judeus por temer uma reação contrária torna possível que os que nos odeiam consigam o que querem – espalhar o seu preconceito irracional e fazê-lo parecer aceitável. Mas é realmente este o “novo normal” que queremos para o Reino Unido?

Os crimes de ódio

Quando os organizadores desta cerimónia me pediram para falar sobre o antissemitismo contemporâneo, decidi imprimir todas as notícias atuais que conseguisse encontrar sobre esse preconceito. Mas logo surgiu um problema – novas histórias de terror apareciam todos os dias, demasiadas para eu falar delas.

Os crimes de ódio contra judeus, como o tiroteio na sinagoga em Pittsburgh em 2018 que matou 11 fiéis, estão a aumentar; e mais violentos do que nunca.

Fomos considerados alvos pela extrema-esquerda e pela extrema-direita.

Vários artigos que li abriram-me os olhos sobre as causas e as manifestações do atual aumento do sentimento antijudaico, revelando nuances nas quais eu não pensava muito.

Um primeiro exemplo – eis uma manchete de novembro passado: estudante ativista trabalhista contemplou o suicídio após uma reação por se manifestar contra o antissemitismo.

Esta história que apareceu no Jewish Chronicle relatou como uma estudante de 19 anos da Universidade de Hull, que por acaso não é judia, foi ameaçada, intimidada e insultada por ativistas trabalhistas e por dezenas de trolls na internet quando concordou em falar com os repórteres do programa Panorama da BBC, fazendo uma exposição sobre o antissemitismo no Partido Trabalhista. Como resultado, entrou em depressão profunda e pensou em matar-se.

Tudo isto demonstra o que tivemos de aprender nos últimos anos – que uma boa parte do preconceito contra os judeus se torna ainda mais repugnante e perigoso devido à intimidação de intolerantes que tentam sufocar a indignação e os protestos. Para nos calar a boca.

Outro artigo, este de dezembro passado: o Partido Trabalhista pediu para suspender o candidato que partilhou uma mensagem questionando a herança judaica de Nick Robinson.

Neste caso, uma deputada trabalhista – Jean Anne Mitchell – culpou o jornalista Nick Robinson e o seu estilo de questionar pela má exibição de Jeremy Corbyn num debate na televisão. Mitchell disse aos colegas na sua mensagem que Robinson era filho de pais judeus alemães. Como se a sua identidade religiosa e cultural fosse um crime em si, ela acrescentou: “E isso faz dele judeu!”

Então, quando tudo o mais falhar, culpem-se os judeus. Porque não se sofrerão consequências graves. E, quem sabe, algumas pessoas muito ignorantes podem até acreditar.

A próxima história vem de Itália e foi publicada em novembro passado: sobrevivente italiana do Holocausto com escolta policial após ameaças da extrema-direita.

Essa foi uma das peças mais perturbadoras que li nos últimos meses porque informava os leitores que Liliana Segre, uma sobrevivente de Auschwitz, recebe ameaças online todos os dias, muitas contra a sua vida.

Um professor do Véneto escreveu no Facebook: “Segre ficaria bem num pequeno e agradável incinerador.”

Qual a razão para essa mulher de 89 anos se ter tornado uma vítima? Porque ela propôs formar uma comissão parlamentar para combater o racismo, o antissemitismo e o incitamento ao ódio.

Quantas ameaças violentas recebe ela por dia? 5, 10, 20? Tentem 200!

O significado? Os que odeiam judeus não têm escrúpulos. E quando achamos que não podem descer mais baixo, eles conseguem-no.

Eis duas histórias que temos de entender para lutarmos contra aqueles que desprezam e denigrem judeus e outras minorias.

A primeira refere-se a um discurso proferido pela secretária do Interior, Priti Patel, na conferência do Partido Conservador em Manchester, em outubro passado. Ela prometeu acabar com a liberdade de circulação após o Brexit. Ao falar das críticas que recebeu pelas suas propostas, disse em tom desafiador: “Esta filha de imigrantes não precisa de sermões da elite metropolitana e liberal do norte de Londres.”

Confesso que a afirmação condescendente de Patel me agrada de uma maneira perversa, porque gosto de descodificar os insultos usados por políticos sem vergonha que se sentem constrangidos de mais para expressar o seu desprezo abertamente.

Quem é a elite liberal metropolitana do norte de Londres tão desprezada por Patel?

São os judeus, é claro. Lá de cima, da frondosa Hampstead, que fazem compras na Daunt Books no Belsize Park e passeiam os seus cães no Heath.

Os judeus e seus amigos.

O que Patel está a dizer é que existem filhos de imigrantes bons e lúcidos como ela, homens e mulheres que aprenderam as lições certas da história inglesa e que sabem o que precisa de ser feito para excluir estrangeiros e refugiados. E há filhos de imigrantes maus e mal orientados, aqueles judeus moralistas e velhos do norte de Londres, que não aprenderam as lições certas com as suas experiências e que são elitistas e isolados demais para entender os problemas envolvidos.

Os judeus são difamados da mesma maneira nos EUA, é claro, onde por muitas décadas os republicanos denunciaram críticas da chamada elite liberal urbana de Nova Iorque, ou seja, os judeus e seus amigos.

Para que não pensem que estou a mostrar parcialidade criticando um político conservador, aqui estão os meus três momentos favoritos na história recente do antissemitismo no Partido Trabalhista: em 2012, Jeremy Corbyn partilhou uma imagem de um mural de Londres na sua página no Facebook que mostrava um grupo de banqueiros, alguns dos quais desenhados com caricaturas claramente ao estilo nazi, jogando um jogo de domínio do mundo. Em 2013, ele disse que certos “sionistas” no Reino Unido “não entendem a ironia inglesa”, que era a sua própria linguagem codificada, é claro, para afirmar que os judeus ingleses não são realmente ingleses. E o meu favorito de todos foi a desastrosa entrevista na televisão, na qual ele hesitou por um período de tempo vergonhosamente embaraçoso antes de reconhecer como antissemita a teoria da conspiração lunática que afirma que “os sionistas de Rothschild dirigem Israel e os governos mundiais”.

É de admirar, então, que tantos jornalistas, políticos e figuras culturais judeus declarassem durante a recente eleição que se sentiam perdidos na terra de ninguém entre duas vertentes diferentes, mas igualmente repugnantes, de fanatismo?

Aqui está outro exemplo recente da minha própria vida da natureza omnipresente do ódio aos judeus…

Todas as semanas viajo de comboio em Portugal porque, embora a nossa residência permanente esteja no Porto, o meu marido é deputado no Parlamento e temos de estar em Lisboa pelo menos quatro dias por semana.

No dia em particular de que quero falar, em 2018, quatro britânicos estavam sentados em volta da sua mesa no centro da nossa carruagem. O comboio deixou Lisboa às 10.00 e, às 11.00, cada um dos turistas já tinha bebido duas latas grandes de cerveja e estava a falar muito alto. Quando começaram a discutir os ataques do 11 de Setembro em Nova Iorque, um deles disse aos outros: “Lembrem-me de contar a história VERDADEIRA.”

“Não, conta-nos agora”, respondeu um dos seus amigos.
“Está bem. Vocês sabem que não era realmente Bin Laden quem estava por trás de tudo.”
“Não?”
“Foram os israelitas.”
“A sério?”
Sim, eles pagaram aos americanos para realizarem os ataques eles mesmos.”
“Tens a certeza?”
“Absolutamente. Há provas por toda a internet.”

Vou poupar-vos do resto da conversa alcoolizada deles. O que quero dizer é que essa teoria da conspiração específica e outras igualmente idiotas são aceites por milhões de pessoas na América, no Reino Unido, no Médio Oriente e em todo o mundo. Eles estão convencidos de que os judeus financiaram os ataques do 11 de Setembro como um esquema para ganhar dinheiro.

Lembram-se da manifestação da supremacia branca em Charlottesville, Virgínia, em agosto de 2017? Talvez se lembrem de Trump declarar que havia boas pessoas entre os neonazis e os membros do Ku Klux Klan lá reunidos. Uma contramanifestante, Heather Heyer, foi morta e 19 ficaram feridos quando um nacionalista branco chamado James Alex Fields Jr. dirigiu o seu carro contra a multidão de manifestantes.

Eis o material de que os pesadelos são feitos: o cântico dos racistas que marchavam naquele dia era: “OS JUDEUS NÃO NOS SUBSTITUIRÃO.”

Porquê aquele grito de guerra em particular?

Grupos de direita em todo o mundo espalham a crença de que a “raça” branca – e eu estou a usar esse termo não científico porque é a palavra que eles usam – está condenada à extinção. O que eles chamam “maré crescente de cor” – de negros e latinos – vai ultrapassá-los e exterminá-los. E quem financia e controla essa maré crescente? Adivinharam – os judeus!

Agora, ao ler sobre essas teorias da conspiração, tive uma pequena revelação. Talvez vocês tenham tido a mesma…

Nada dessa loucura é novidade. O antissemitismo baseia-se em calúnias insanas desde a Idade Média.

Sabem por que razão Eduardo I expulsou os judeus de Inglaterra em 1290? Foi em grande parte por causa de acusações de assassinatos rituais, em particular o Blood Libel, que diziam que os judeus matavam crianças cristãs para usar o sangue delas nos seus rituais religiosos, incluindo no fabrico de matzá.

Esta pode ser a teoria da conspiração mais bizarra e difícil de acreditar de todas. No entanto, milhões de ingleses e mulheres acreditavam mesmo nisso.

No caso mais famoso, 45 anos antes da expulsão, o rei Henrique III deu aprovação oficial à acusação de que um rapaz do Lincolnshire, de 9 anos de idade, chamado Hugh, tinha sido sequestrado por judeus, torturado e crucificado.

O rei mandou prender 90 residentes judeus de Lincoln e acusou-os de assassinato ritual. Dezoito deles foram enforcados.

O ódio aos judeus cresceu tanto nas décadas seguintes que Eduardo I decidiu livrar o seu reino daquela minoria maligna, venenosa e assassina de uma vez por todas.

Uma previsão… As teorias da conspiração tornar-se-ão mais poderosas e influentes nos próximos anos. Porque vivemos numa época em que centenas de milhões de pessoas recebem as suas notícias através de tweets posts no Facebook. Uma época em que os líderes das nações mais poderosas do mundo não tentam distinguir entre factos e fraude.

Infelizmente, as fantasias lunáticas têm sempre vantagem sobre a verdade porque apelam para a necessidade de as pessoas ignorantes de uma razão oculta e abrangente para elas não terem a vida que desejam.

Não conseguiram entrar no Britain’s Got Talent porque a televisão é dirigida por judeus. Não foram aceites pela universidade que queriam, porque os judeus que manipulam o sistema dão prioridade a negros e indianos.

Acreditar nessas conspirações é muito mais fácil do que assumir a responsabilidade pela nossa vida.

Quão amargas e pouco instruídas são as pessoas que subscrevem as teorias da conspiração antissemita? E porque estão tão enfurecidas? Quero concentrar-me na América por um momento, porque a conheço muito melhor do que ao Reino Unido.

Os Estados Unidos são um país onde dezenas de milhões de idosos perdem todas as suas economias por causa de um sistema nacional de saúde inadequado e insuficiente. Um país em que os diabéticos se endividam para comprar insulina – ou racionam perigosamente o seu uso – porque os preços são inflacionados para gerar enormes lucros para as empresas farmacêuticas. Nos Estados Unidos, a insulina custa sete vezes mais do que no vizinho Canadá. A louca e invencível guerra às drogas põe os jovens que fumam marijuana na prisão por dez anos ou mais. As prisões administradas por empresas privadas obtêm enormes lucros com a sua infelicidade e a infelicidade de todos aqueles que estão atrás das grades.

O resultado? Um sistema de justiça criminal projetado para encarcerar o maior número possível de pessoas. Atualmente, 2,2 milhões de americanos estão atrás das grades – mais de um quinto do total mundial. É também um país onde as crianças refugiadas são mantidas em gaiolas e separadas de suas famílias, e o presidente fala das suas pátrias como “países de merda”. As crianças crescem sem aprender a teoria da evolução de Darwin ou a história da escravidão, porque esses tópicos são considerados incompatíveis com os ensinamentos bíblicos. O sonho americano? Bem, o salário mínimo caiu catastroficamente nos últimos 50 anos. Se o salário mínimo federal de 1968 tivesse acompanhado a inflação e a produtividade, seria agora de 22 dólares por hora. Em vez disso, é de 7,25 dólares por hora. Cerca de 70% dos americanos nascidos na pobreza morrerão na pobreza. A maioria das crianças minoritárias nascidas em guetos nunca conseguem sair deles. As suas escolas, financiadas pelos impostos locais em diminuição, são inadequadas e perigosas.

Quanto à classe média em encolhimento, as famílias endividam-se para toda a vida para pagar a educação dos seus filhos, porque as universidades custam agora cerca de 54 mil libras [64 mil euros] por ano em propinas e taxas. Na cintura da ferrugem da América, onde fábricas e sindicatos foram destruídos, e nas suas áreas rurais, a desesperança é tão grande que o uso de drogas é de proporções epidémicas. Mais de 42 mil americanos morreram de overdose de opioides em 2016 e milhões ainda permanecem tão viciados que não veem forma de sair.

Como resultado de tudo isso, 45 mil americanos cometem suicídio todos os anos. Outro 1,1 milhão tenta-o.

slogan de Trump é Make America Great Again (Tornar a América Grande Novamente) e as suas soluções para a desesperança de dezenas de milhões de pessoas variam de incentivos fiscais para os super-ricos, um aumento do orçamento militar, até à retirada de financiamento a todos os programas ambientais do país. Tornar a América Grande Novamente? A América nunca foi tão cruel, infeliz, desesperadora e ameaçadora. Talvez não para onde os turistas vão, o centro de Manhattan, Hollywood e Washington DC. Mas façam um passeio curto até ao Bronx ou Compton ou a cidades industriais outrora orgulhosas como Scranton e verão os prédios incendiados, os viciados em metanfetaminas e as infinitas avenidas onde os únicos restaurantes são McDonalds e Kentucky Fried Chicken. Centros comerciais e supermercados outrora prósperos são abandonados e fechados. Nos EUA, chamamos a esta nova fase de colapso urbano o Apocalipse do Retalho. Isso significa que, nos bairros de baixos rendimentos, os poucos empregos disponíveis pagam o salário mínimo absurdamente baixo que mencionei. E mesmo que tenham a sorte suficiente de conseguir um emprego, os seus empregadores contratar-vos-ão em regime de meio tempo ou demitir-vos-ão antes do término do período de estágio, para não precisarem de pagar o seguro de saúde.

Somente os EUA, entre os países desenvolvidos, viram a expectativa de vida dos seus cidadãos cair três anos seguidos, e pela primeira vez num século.

Os EUA são um navio avariado com um comandante sociopata e, apesar de meio afundado, aqueles que festejam no convés mais alto – o comandante e a sua família e os líderes do Partido Republicano – simplesmente não se importam.

Dado tudo isto, é realmente surpreendente que homens brancos desempregados, em particular, sejam atraídos por grupos de ódio neonazis que lhes oferecem camaradagem, um objetivo na vida e acesso a armas? Considerando a sua educação inadequada e a confiança nas redes sociais para notícias e opiniões, é de admirar que eles não entendam quem é realmente responsável pelas suas vidas desesperadamente difíceis e, em vez disso, culpem judeus, negros, imigrantes e feministas?

Então, como vamos lutar contra isso? Como vão impedir que o Reino Unido se torne uma versão menor, mas igualmente brutal e miserável, da América, com índices cada vez mais altos de xenofobia e racismo, antissemitismo e violência?

Algumas recomendações: fortaleçam o Serviço Nacional de Saúde., reforcem o vosso sistema educativo, ensinem aos vossos filhos que uma boa educação não é um luxo, é o direito deles. Como são os cuidados de saúde. Como é um trabalho decente com um salário decente.

Votem contra todos os políticos que mentem sistematicamente. Que dão incentivos fiscais aos super-ricos. Que revelam em linguagem codificada que desprezam as minorias.

Denunciem qualquer um que fale sobre teorias da conspiração. Evitem que os vossos filhos se tornem vítimas deles e de todas as ideologias cheias de ódio, insistindo para que aprendam a raciocinar e a pensar por si mesmos.

Mostrem aos vossos filhos que respeitam o conhecimento. E respeitem a verdade.

Lutem contra todo o preconceito. Defendam muçulmanos, negros, homossexuais e ciganos que são maltratados. E peçam-lhes que façam o mesmo por vocês.

Recusem-se a adotar a linguagem do bode expiatório. Falem e ajam com compaixão. Demonstrem solidariedade e empatia pelos refugiados e por todos os que lutam para conseguir comida suficiente e abrigo adequado. Lembrem-se de que, exceto pelo acaso do nascimento, vocês poderiam ser um deles.

Frustrar os planos dos nazis

Para terminar, quero voltar ao Holocausto por um momento e citar Erik Cohen, o narrador do meu romance Os Anagramas de Varsóvia. Erik não sobrevive ao genocídio nazi. Mas, antes de ser morto, ele fala com o seu melhor amigo sobre a aniquilação que os judeus estão a enfrentar: “Depois de os alemães perderem, eles vão querer que esqueçamos tudo o que aconteceu. Lembre-se de uma pessoa, mesmo que apenas de uma! E você terá frustrado os planos deles.”

Então, parte do que estamos a fazer aqui hoje é frustrar os planos dos nazis. Sintam-se gratos por essa oportunidade. Tenham orgulho de estar aqui. Devemos isso aos mortos – aos milhões que foram assassinados nos campos da morte -, o continuar a frustrar os planos dos imitadores ideológicos dos nazis no Reino Unido contemporâneo e noutros lugares. Todos os dias. Em todos os sentidos.

E não se esqueçam: o lado certo da história é sempre o lado que tem uma memória.

 

[ publicado no Diário de Notícias | Lisboa, 30|01|2020 ]

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