Descobri, recentemente, ser descendente de judeus sefarditas, originários da península Ibérica. Minha árvore genealógica alcança um personagem nascido no sul de Portugal e que passaria a viver em São Paulo, ainda no século 16.
Em 1628, depois de admitir ao inquisidor Luís Pires da Veiga ter proferido afirmações ofensivas à virgindade de Maria, ele confessa a jesuítas ser cristão-novo.
Não há notícia de punição pelo pecado cometido contra a mãe (virgem) de Jesus. Era, aparentemente, detentor de algum poder nos sertões paulistas, mas, por conta do episódio, registrado em caderno do Santo Ofício, é mencionado aqui e ali como bandeirante blasfemo.
O que mais intriga é a mutilação ideológica e espiritual.
Pessoas educadas no judaísmo são batizadas à força como cristãos-novos, sob pena de morte. Parte de seus descendentes abandona Portugal ou segue as tradições religiosas como criptojudeus, mas muitos, intimidados pela ameaça real da fogueira e de tantos castigos, deixam para trás raízes, ritos, costumes e crenças: com nomes trocados, paulatinamente se esquecem do passado e se distanciam da cultura original.
É um vazio irreparável.
Em 1773 (obra iluminista do marquês de Pombal), seria decretado o fim da distinção burocrática entre cristão-velho e cristão-novo, proibindo-se a “designação depreciativa” de pessoas de “origem hebraica”, mas as listas de cristãos-novos e seus descendentes (registros elaborados para a eficiência da vigilância religiosa e que seriam úteis para a reconstituição de tantas perseguições) passam a ser destruídas em 1768, por ordem real, como se nunca tivessem existido.
A Inquisição estabeleceu um modelo policial que seria replicado por governos de diversas linhagens. Além da observação atenta dos “familiares” do Santo Ofício, agentes leigos, “limpos de sangue”, com poderes para prender e confiscar, havia o perigo da suspeita se propagar pela denúncia voluntária e sorrateira de vizinhos, amigos e parentes.
Em saboroso ensaio publicado pela revista Piauí sobre a Queda do Muro de Berlim, a germanista Cláudia Cavalcanti lembra das “boas pessoas”, capazes de denunciar para a Stasi —serviço secreto da extinta Alemanha Oriental (RDA), país criado depois do colapso nazista—, às vezes anonimamente, ou pelo simples hábito de delatar, vizinhos, amigos e parentes.
A abertura do gigantesco acervo documental da Stasi (estima-se que na RDA havia um espião para cada grupo de 6,5 pessoas) permite a revelação de informações que abalam a própria percepção de um sobre o outro: a vida dupla, a traição. Afinal, “quem é ele”, o “filho exemplar” ou o “denunciador dos próprios colegas”?
Se nas colônias portuguesas a virgindade de Maria era protegida pelo aparato repressivo, a simples divulgação da estatística de suicídios ou a negação de ideia atribuída a Lênin poderiam ser motivo de desgraça nos labirintos do regime comunista.
Mas a Queda do Muro (outro marco libertário da história da humanidade) também não encerra o sentimento de intolerância que, por alguma razão (ou desrazão), reaparece, como fênix, assim como os esforços de vigilância e espionagem.
No Brasil, em tempos de fé e ira bolsonarista, listas de pessoas indesejáveis já são produzidas a partir de pensamentos expostos em redes sociais. Identificam pesquisadores que não merecem patrocínio, artistas que atacam os bons costumes ou escritores de linguajar inadequado.
[ por Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal . Presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004) | Publicado na Folha de São Paulo | 16|11|2019 | editado pelo PAZ AGORA|BR ]