JERUSALÉM — Foi a extraordinária frieza do assassinato que o tornou material para um filme sobre um crime real: um adolescente palestino arrebatado em uma rua de Jerusalém Oriental por judeus ortodoxos, chocado, espancado e queimado vivo ao amanhecer numa floresta.
Mas “Our Boys” [nossos garotos]. série em 10 episódios que começou neste mês na HBO [também no Brasil] está sob ataque em Israel principalmente por causa dessa singularidade, em meio a uma batalha ideológica e emocional entre políticas de luto e vitimização.
Alguns críticos acusaram os criadores de distorcer a realidade e ignorar o fato de que são mais comuns episódios de terrorismo palestino contra israelenses, criando uma falsa equivalência entre as duas comunidades, manchando assim a imagem de Israel.
“A série conta para todo o mundo como israelenses e judeus são assassinos e sedentos de sangue e como os palestinos são maltratados e oprimidos”, escreveu Yair Netanyahu, filho do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, no Twitter na semana passada.
Poucos palestinos a estão assistindo, porque antenas via satélite são mais comuns nos lares palestinos do que TV a cabo. Mas os que assistiram também tinham memórias dolorosas.
Hussein Abu Khdeir, pai do adolescente palestino morto, disse que viu com sua esposa Suha alguns capítulos. “Choramos muito”, disse. “Fomos levados para cinco anos atrás”.
A série, produzida pela HBO e o Keshet Studios de Israel, dramatiza o assassinato em 2014 de Muhammad Abu Khdeir e a caçada dos seus improváveis perpetradores.
As autoridades descreveram o crime como uma ataque de vingança contra o sequestro e morte de três adolescentes por militantes palestinos na Cisjordânia. Seus corpos tinham sido encontrados dois dias antes.
Os dois casos dominaram o noticiário em Israel no verão de 2014, capturando os corações e temores de judeus e árabes, aumentando tensões e contribuindo para uma espiral de violência que culminou numa guerra de 50 dias contra Gaza.
A série corre sobre o drama dos três adolescentes israelenses no primeiro episódio, mostrando tomadas reais dos apelos de suas mães à nação para orar para fossem encontrados com vida.
Mas move-se rapidamente para o coração da série: a morte do adolescente palestino e a investigação urgente e meticulosa pela Divisão Judaica [especializada em crimes de colonos judeus] da agência de segurança de Israel, o Shin Bet. Os agentes do Shin Bet penetram no mundo fechado das yeshivot [escolas rabínicas] de Jerusalém para rastrear os assassinos — um homem ortodoxo e seus dois sobrinhos que viviam à margem da sociedade israelense e não eram suspeitos usuais, nem estavam no radar de ninguém.
A reação contra a série começou após a transmissão dos primeiros dois episódios no meio de agosto, quando 120 famílias de soldados e civis mortos por palestinos assinaram uma carta para a HBO, demandando um esclarecimento explícito na tela de que o terrorismo palestino é estatisticamente mais significativo do que o terrorismo judeu.
Matan Peleg, diretor da ONG de extrema-direita Im Tirtzu, apoiando os parentes enlutados, descreveu que qualquer comparação seria “moralmente repreensível”.
A HBO não respondeu às queixas, e a crítica se tornou mais virulenta.
Num post ameaçador no Facebook no sábado, Avihu Gamliel, identificado na mídia de notícias israelense como membro convicto de uma organização judaica secreta, postou fotos dos três diretores locais, instando seus seguidores a “lembrar bem daqueles rostos”. No domingo, o post havia sido compartilhado mais de 800 vezes, antes de ser removido.
Os diretores — Hagai Levi de “The Affair” e “In Treatment”; Joseph Cedar, israelense nascido em New York, que dirigiu“Norman” e “Footnote”; e o diretor palestino Tawfik Abu Wael de “Last Days in Jerusalem”, que cresceu numa cidade árabe de Israel — foram lançados para a defensiva.
Eles disseram ter previsto críticas por focalizarem a vítima palestina em vez das israelenses, mas disseram não estarem preparados para a crueldade da campanha. Foram acusados (falsamente, insistem) de culpar as três mães por atiçarem a atmosfera fervente que levou ao assassinato de vingança. E de cinicamente tentar carrear a simpatia internacional na esperança de ganhar um Emmy.
“Isto não reflete realmente o que está na tela”, disse o Sr. Cedar sobre algumas das críticas. “Mas o apetite por encontrar um inimigo público é tão forte, que a realidade não importa”.
“Usar famílias enlutadas no debate público é na verdade uma forma de silenciar uma discussão”, disse por telefone de New York na 6ª feira. E se a competição de narrativas são a essência do conflito israelense-palestino, disse, “Não faz nenhuma diferença onde você começa. Somos todos vítimas e todos perpetradores”.
Levi disse que a série procurou ser justa e responsável e fornecer o contexto no primeiro episódio e que “a série não é sobre terrorismo. É sobre entender a natureza de um crime de ódio’.
Embora as queixas quanto a um viés anti-Israel venham mais da direita, os diretores afirmam que também foram criticados pela esquerda: a série daria mais atenção à séria caçada aos perpetradores do assassinato de um único palestino, enquanto ignora que soldados israelenses mataram muitos palestinos desarmados, impunemente.
Abu Wael, que supervisionou as cenas palestinas na série, teve que lidar com pressões de ativistas que se opunham ao seu trabalho com uma produtora israelense.Ele respondeu àqueles que queriam que boicotasse o projeto, dizendo: “As coisas não são preto e branco. A realidade é mais complexa”. “Para mim, como palestino”, acrescentou, “A ocupação em si é uma forma de terrorismo”.
Filmado inteiramente em hebraico e árabe, a série humaniza e investiga os mundos de todas vítimas e perpetradores. Alguma nuance pode ser perdida na audiência internacional, mas em Israel despertou profundas angústias pessoais.
Boaz Kukia, pai de Ron Kukia, soldado que aos 19 anos, fora de serviço, foi esfaqueado e morto em 2017 num ponto de ônibus no sul de Israel, assinou uma carta para a HBO. O problema, escreveu, é que o mundo irá tratar o terrorismo contra judeus como se fosse “o destino, um crime normal ou acidente de tráfego”.
Mas Robi Damelin, cujo filho, David, foi morto em 2002 por um franco-atirador palestino, quando prestava serviço militar de reserva num checkpoint da Cisjordânia, defendeu a série: “Nós não vemos o sofrimento dos outros”, diz o Sr. Damelin, membro do “Fórum de Família Enlutadas” [Parents Circle-Families Forum], ONG conjunta de israelenses e palestinos, pessoas que perderam parentes para o conflito e está trabalhando pela reconciliação. “Gostamos de ser vítimas”.
Levi disse que o primeiro episódio ficou na sala de edição por 18 meses. Todo o processo, disse, foi “muito angustiante, longo e complicado”.
Perguntado se teria feito algo diferente face ao furor, respondeu. “A maior questão é se eu o faria de novo”.
[ por Isabel Kershner – publicado em 28|08|2019 no New York Times e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]
> LEIA + > “OUR BOYS” , Bibi Netanyahu e a Deterioração da Democracia de Israel – Ariel Kanievsky