Pedra rememorando as vítimas do Massacre de Lisboa em 1506.
Largo do Rossio, Lisboa
Em 19|04|1506, um pogrom eclodiu em Lisboa, Portugal, liderado por padres dominicanos aos gritos de “Morte aos Judeus!” e “Morte aos hereges!”. Amotinados, seguindo esses religiosos fanáticos pelas ruas da cidade, acabaram assassinando cerca de dois mil cristãos novos, judeus portugueses que haviam sido batizados à força numa conversão em massa nove anos atrás. Seus corpos foram arrastados para a principal praça, que ainda fica no coração da capital portuguesa – o Largo do Rossio – e queimados em duas grandes piras diante da igreja dominicana. A madeira para transformá-los em cinzas foi paga por marinheiros visitantes do norte da Europa, sem dúvida esperando por um espetáculo inesquecível para marcar sua estadia.
Descobri este crime contra a humanidade em 1990, quando pesquisava a vida diária em Lisboa nos Séculos XV e XVI. Mas quando perguntei aos meus amigos portugueses o que sabiam sobre o massacre, todos respondiam: “Que massacre? Do que você está falando?”.
Logo descobri que o pogrom não era mencionado em livros escolares portugueses, nem mesmo em trabalhos de referência padrão sobre a História portuguesa. Os dois mil cristãos novos assassinados – entre um terço e metade da população de judeus convertidos à força na cidade – foram apagados com sucesso das memórias coletivas e individuais.
Indignado, decidi fazer do pogrom o pano de fundo do romance que planejava sobre um escriba judeu que vivia na capital portuguesa. Em tais maneiras, pela minha vida, aprendi que tenho uma personalidade profundamente subversiva; me dá satisfação escrever sobre eventos que aqueles com poder econômico e político prefeririam apagar ou esquecer.
O Último Cabalista de Lisboa [NT: Primeiro romance publicado pelo autor, em 1996] acabou por contar a história de Berekiah Zarco, um brilhante e estudioso jovem cristão novo que sobrevive ao Massacre de Lisboa em 1506 apenas para descobrir que seu amado tio Abraham, seu mentor espiritual, havia sido assassinado na adega da família. Assolado pela dor e desesperança – e com seu amigo de infância Farid ao lado – Berekiah decide tentar perseguir o assassino e buscar vingança. Mas, como cabalista interessado no significado simbólico dos eventos, fica muito mais interessado no que o assassinato de seu tio e o pogrom significavam para sua família, os cristãos novos de Portugal, toda a Humanidade e mesmo para Deus. Berekiah oferece ao leitor a sua própria interpretação na última página do romance e suas palavras dão à narrativa um inesperado e arrepiante significado.
O romance me tomou um ano de pesquisas e mais dois para escrever. Fiz o possível para criar uma narrativa na tradição cabalista – com diversos níveis de significado que os leitores precisam descobrir e interpretar por si mesmos. No seu nível mais acessível, O Último Cabalista de Lisboa é um clássico policial mas também é um apanhado da jornada espiritual do narrador e – espero eu – muito além .
Como acontece às vezes quando escritores empreendem projetos que desafiam a História oficial, descobri que era impossível conseguir um editor. Ao longo de dois anos, meu agente literário enviou meu manuscrito para 24 editoras americanas e nenhuma aceitou. A grande maioria dos editores reconheceu que eu havia escrito um livro dramático e perspicaz, mas também disseram ao meu agente que um romance situado no Portugal de 1506 não tinha chance de vender a leitores americanos. Um editor, de uma famosa editora de New York, acrescentou que ele já havia comprado o seu “livro judeu” do ano. Embora chocado com essa termo pejorativo , sua honestidade me ajudou a entender meu fracasso em encontrar uma editora, pois ficou claro que estas mantinham cotas. Pelo que entendo, mesmo em 2019, tais limites não explícitos podem existir para ficções com protagonistas judeus, assim como as que apresentam personagens afro-americanos, gays, asiático-americanos ou membros de qualquer outra etnia ou minoria sexual.
As 24 cartas de rejeição que recebi me deixaram deprimido e desorientado. Meu agente literário desistiu de vender direitos sobre o romance. Tomamos caminhos diferentes.
À época – 1994 – meu parceiro de longa data, Alex, e eu mudamos da região de San Francisco (EUA) para o Porto, Portugal, onde lecionei jornalismo. Gastei muito do meu tempo livre numa fase de desesperança, questionando o que deveria fazer da minha vida, dado que eu obviamente não iria me tornar um romancista.
Uma idéia maluca me salvou: por que não mostrar o manuscrito a um editor português? Afinal, o argumento situava-se em Lisboa e todos os principais personagens eram portugueses…
Perguntei a dois escritores conhecidos meus por indicações de editores com boa reputação e liguei para a único que aparecia em ambas as listas – Maria da Piedade Ferreira, diretora de uma pequena editora chamada Quetzal Editores. Em meu pobre português, descrevi a ela a história. Ela concordou que eu enviasse o manuscrito. Mas três meses se passaram sem uma reposta. Quando juntei coragem para ligar de novo, ela pediu que eu fosse a Lisboa – três horas de trem desde o Porto. Dois dias depois, quando cheguei ao seu escritório, a primeira coisa que ela disse foi. “O que você gostaria de ver na capa”?
Como meu português era pobre, achei que não tinha entendido bem a pergunta. “Isto significa que você quer publicar o meu livro”? perguntei.
Ela sorriu afirmativamente. “Sim, nós o adoramos”, disse.
Não me lembro de nada do resto da nossa conversa, porque estava tonto de excitação. Chorei no trem de volta ao Porto.
Aproximando-se a data da publicação, Maria da Piedade me avisou que meu romance poderia não vender mais do que algumas dezenas de exemplares. Ela temia que um grande potencial de leitores poderia se ressentir comigo, um estrangeiro, por expor um crime contra a Humanidade cometido em Portugal e quase completamente esquecido. Mais ainda, era um pogrom fomentado por padres dominicanos e uma grande parcela dos leitores potenciais era de católicos praticantes.
Surpreendentemente, O Último Cabalista de Lisboa chegou ao topo da lista de bestsellers duas semanas após seu lançamento. Por quê? A posteriori, acho que os leitores estavam curiosos sobre a História judaico-portuguesa, um tópico que foi tabu no país antes da Revolução Portuguesa de 1974 e o desenvolvimento de uma democracia estável. Antes da Revolução, Portugal foi uma ditadura repressiva de direita por quase 50 anos.
E assim, minha carreira de escritor começou de uma maneira singular, com meu primeiro romance publicado originalmente numa língua estrangeira.
Graças ao sucesso do livro em Portugal, consegui achar uma nova agente literária, que foi capaz de vender direitos na Itália, Brasil, Alemanha e França. Os editores americanos para os quais enviamos o livro o ignoraram – alguns pela segunda vez. Mais tarde, vendemos direitos para um bom jornal independente em New York, assim como para uma promissora editora nova na Inglaterra. Por fim, o livro se tornou um bestseller em ambos os países. O romance já foi traduzido para 23 línguas e me levou a dar palestras ao redor do mundo. Em Portugal, onde um bestseller costuma vender 5 mil cópias, vendeu quase 100 mil e mudou toda a perspectiva da nação para com a sua própria História judaica.
Mais importante que o sucesso comercial do livro, entretanto, é o que ele me ensinou: eu estimo a chance de escrever sobre pessoas cujas vozes foram sistematicamente silenciadas. Em Portugal, onde me tornei um escritor conhecido, sou frequentemente convidado a falar em escolas e bibliotecas. Uma das palestras que mais gosto de dar se chama “Falando pelos Silenciados”. Ao longo dos últimos 20 anos, descobri que falar da perspectiva de gente que foi sistematicamente perseguida, brutalizada e esquecida me dá a energia – a lenta queima da raiva de que necessito para atravessar os dois ou três anos para escrever um novo romance. Também me faz sentir lutando no lado certo da história, que parece ser o melhor lugar para estar.
Em quatro dos meus romances subsequentes, escrevi sobre diferentes ramos e gerações da família Zarco, que apresentei em O Último Cabalista de Lisboa. Meu objetivo era criar o que chamo de meu Ciclo Sefaradi, uma série de romances independentes – para ser lida em qualquer ordem – que explora as vidas de homens e mulheres da longa diáspora Sefaradi, que se estende do Brasil e ilhas do Caribe até a Índia.
Como diz o ditado, nenhuma boa ação fica impune, e embora esses livros tenham sido geralmente bem recebidos em Portugal e Inglaterra, tive muitas vezes grandes dificuldades em publicá-los nos Estados Unidos e em outros países. E também ganhei minha cota de correspondências de ataques e ódio.
O livro que me rendeu os maiores ressentimentos, de leitores de tão longe como a Índia, foi o Guardião da Aurora, que explorou como os portugueses exportaram sua Inquisição para Goa, colônia na costa Malabar, a cerca de 250 milhas ao sul de Mumbai.
A Inquisição foi introduzida em Portugal em 1536. Seu propósito? Perseguir judeus que haviam sido forçados a se converter ao cristianismo em 1497. (Embora “cristãos novos” seja o termo aceito para essas desafortunadas vítimas da intolerância religiosa, um epíteto usado em Portugal por muitos séculos era “marrano”, que, conforme historiadores, significava originalmente suíno).
Qualquer cristão novo suspeito de continuar praticando sua fé tradicional em segredo seria preso pela Inquisição, interrogado e torturado. Nenhuma infração era pequena o bastante para escapar da ira dessa ditadura religiosa. Por exemplo, um judeu convertido poderia acabar na prisão por simplesmente murmurar uma oração hebraica. Ou por limpar sua casa na tarde da sexta-feira, antes do início do Shabat. O objetivo dos torturadores era obrigar suas vítimas a denunciar os nomes dos seus amigos e membros da família que também pudessem estar praticando o judaísmo em segredo.
Prisioneiros frequentemente passavam dois anos ou mais em celas pequenas, quase sem luz, em prisões especiais da Inquisição. Se recusassem a aceitar Jesus como o Messias e fizessem uma confissão completa de suas práticas judaicas – mesmo que tivessem se tornado, de fato, fiéis católicos – seriam queimados em cerimônias públicas conhecidas como auto-da-fé.
Apesar dos riscos de praticar o judaísmo em segredo, os mais tenazes cristãos-novos continuaram a fazê-lo. Dezenas de milhares deles foram presos e torturados durante todo o período até os 1770s, quando a Inquisição foi finalmente desmantelada.
Muitos milhares também fugiram sempre que possível para a Turquia, Itália, Marrocos e vários outros países onde podiam praticar abertamente o judaísmo, criando a Diáspora Sefaradi. As grandes comunidades sefaradis de cidades como Istambul, Salônica, Ferrara e depois Amsterdam e Londres geraram muitos estudados filósofos, médicos, cientistas e financistas, que continuavam a falar português em casa. Entre eles, Baruch Spinoza, Uriel da Costa, Gracia Nasi e Amato Lusitano.
[NT : Lembre-se ainda o desenvolvimento de um dialeto completo, o Ladino – uma mescla de português, espanhol e hebraico – que grafado no alfabeto hebraico, deixou uma rica biblioteca religiosa e secular, além de um cancioneiro que ainda é ouvido nos nossos dias em locais tão longínquos como Brasil, Turquia e Israel].
Em 1560, Portugal impôs esta mesma ditadura religiosa sobre suas colônias na Índia, o que significou que um hindu convertido podia ser encarcerado por algo como uma simples oferenda, dentro de sua casa, a Ganesha, o Deus da Sabedoria com cabeça de elefante, ou a qualquer divindade do panteão hindu.
Em Goa, dezenas de milhares de hindus convertidos e seus descendentes foram presos e torturados – e centenas queimados vivos – pela Inquisição – de 1560 a 1820.
A Inquisição foi também uma diabolicamente eficaz máquina de fazer dinheiro, pois todas as propriedades de suas vítimas eram confiscadas e entregues à Igreja.
Goa ou o Guardião da Aurora (Guardian of the Dawn) tornou-se a história de um Tiago Zarco, bisneto de Berekiah Zarco, o narrador de O Último Cabalista de Lisboa. Quando o pai de Tiago – um iluminador de manuscritos do Sultão de Bijapur – é preso numa visita a Goa, Tiago tenta e fracassa em salvá-lo e acaba ele mesmo aprisionado. Anos depois, quando libertado, faz sua vingança, mas esta o leva a imprevistas – e trágicas – consequências.
Após a publicação do romance, recebi várias cartas cheias de ódio de Portugal e da India, em parte porque havia dado uma entrevista a um jornal de Lisboa no qual eu disse que canonizar Francisco Xavier – o missionário espanhol que peticionou ao rei português para estabelecer a Inquisição em Goa – era como canonizar Goebbels ou Göering. Uma declaração demasiado provocadora? Talvez, mas ainda é o que acredito.
Ainda mais problemático, dois correspondentes de Goa me xingaram de “judeu sujo” e me disseram que meu livro era uma grande mentira; argumentaram que os portugueses não exportaram a Inquisição para suas colônias na India. Após ler suas cartas enraivecidas, percebi que há católicos hindus que negam a existência da Inquisição na India, assim como existem alguns indivíduos doentes e desonestos que negam a existência do Holocausto.
Outro livro meu sobre descendentes de Berekiah Zarco, A Sétima Porta (The Seventh Gate) [ed. Record, 2013] também me rendeu mensagens de ódio, desta vez de neonazistas dos Estados Unidos e Inglaterra. É um romance que explora um crime contra a Humanidade que poucas pessoas, até hoje, parecem querer tomar conhecimento: A esterilização e morte por Hitler de cerca de 300 mil deficientes físicos e intelectuais. A narradora, Sophie Riedesel, é uma jovem cristã, cujo irmão mais novo, Hansi, é autista. Quando sua amada Berlim é tomada pelos nazistas, ela jura fazer todo o possível para minar os regulamentos antissemitas e proteger seu irmão dos planos para esteriliza-lo. Para fazer valer seu juramento, ela se arrisca unindo-se a um grupo clandestino de resistência chamado O Anel, chefiado por seu idoso vizinho Isaac Zarco.
Curiosamente, quando fui a Estocolmo e Gotemburgo em 2008 para promover a edição sueca de The Seventh Gate, a mídia sueca se recusou a publicar qualquer resenha do livro ou artigos sobre minha visita. Conforme o meu editor, isto se deu porque a Suécia havia embarcado em seu próprio programa de eugenia para aprimorar a “pureza racial”, desde 1934. Mais de 60 mil indivíduos foram esterilizados com aprovação estatal, 90% deles mulheres. O programa foi mantido ativo até 1976. À época da minha visita, o assunto da eugenia era ainda um grande tabu.
Apesar de todas dificuldades, 99% dos milhares de cartas e e-mails que recebi nos últimos 23 anos foram enormemente positivos e generosos, e tal retorno me dá a coragem que preciso para seguir adiante quando um livro meu é rejeitado por algum editor ou recebe uma crítica negativa. As cartas mais suportivas que já recebi? Muito possivelmente a meia dúzia de mensagens que recebi de leitores israelenses, agradecendo por À Procura de Sana – [ed. Relume Dumard, 2007] (The Search for Sana), que publiquei na Inglaterra mas para o qual não encontrei editor nos Estados Unidos, Uma porção de editores de lá me disseram que temiam uma reação negativa, porque é um romance que retrata israelenses e palestinos em formas que não vemos comumente na mídia. The Search for Sana trata de duas mulheres – Sana, palestina e Helena, israelense – que crescem no mesmo bairro de Haifa e cuja maravilhosa amizade foi minada e destruída pelo conflito entre os dois povos.
Uma das mensagens que recebi foi de uma israelense chamada Dana:
“Minha jornada através do seu livro foi cheia de dor, desapontamento, raiva e frustração, mas saí do outro lado sentindo força em minhas convicções e no meu lugar no mundo. Identifiquei-me com todos os seus caracteres – com Sana, Helena, Samuel, Rosa, Zeinab, Mahmoud e Jamal. Percebi que eu era um ser humano e é a isso que devo me ater, deixando de lado quaisquer outras identidades. Você contou a história da tragédia israelense-palestina da maneira mais honesta. Você colocou no papel tudo o que eu estava carregando comigo. Não mais terei que explicar, simplesmente indicarei o seu livro para as pessoas”.
Eu também sempre guardarei como tesouro os três emails que recebi de sobreviventes do Holocausto que me agradeceram pelo Os Anagramas de Varsóvia (The Warsaw Anagrams) [ed. Record, 2011] , a história de um idoso psiquiatra judeu que vivia com sua sobrinha, Stefa, no Gueto de Varsóvia e cuja vida é desfeita quando seu filho mais novo, Adam, é assassinado. Um sobrevivente idoso que cresceu próximo a capital polonesa escreveu: “Eu tinha 14 anos quando junto à minha família entrei no Gueto de Varsóvia. Tinha 16 quando escapei e fiquei escondido na Polônia até o fim da guerra. Lamentavelmente o restante da minha família não sobreviveu. Fiquei muito emocionado pelos detalhes das suas descrições da vida diária no gueto, que me recordaram de muitas experiências que vivi. Chorei ao ler a descrição do comportamento de Stefa aquando descobriu o corpo de Adam. Ela e outros personagens foram tão vívidos para mim que me senti como se os tivesse conhecido a todos. Fiquei tão envolvido emocionalmente que quando terminei de ler o livro havia esquecido de que eles tinham vivido 70 anos atrás e estariam hoje todos mortos. Obrigado por sua óbvia conexão emocional com o Holocausto.”
Talvez porque jamais sonhara em encontrar leitores em lugares longínquos, me causa uma sensação especial receber e-mails e cartas que chegam de lugares como Austrália, Brasil e África do Sul. Uma mensagem remetida por uma jovem turca chamada Eda me é particularmente cara, porque confirmou que romances podem mudar as vidas de pessoas que eu provavelmente jamais encontrarei. O livro que ela leu, Meia-Noite ou o Princípio do Mundo (Hunting Midnight), conta a história da amizade entre um jovem português-escocês, John Zarco, e um africano Bosquímano (San) apelidado Meia-Noite, que vem morar em sua casa no Porto no início do Século XIX. Através desses dois personagens, o livro explora o desastroso efeito emocional e espiritual da escravidão em vidas individuais e na sociedade como um todo. Eda escreveu, “Sou uma garota turca de 15 anos. Estou lendo um dos seus livros, ‘Hunting Midnight.’ Deixe-me dizer que este é o romance mais impressionante que já li. O livro mudou de fato minha vida, minha visão. Mesmo um livro de História não poderia me ensinar tantas coisas, com tanto prazer. Antes de ler o seu romance, eu estava um tanto cansada de ouvir sobre judeus e negros. Agradeço a Deus pelo dia em que vi e comprei o seu livro”.
Você pode pensar que escrever alguns bestsellers e romances com boas críticas ao longo de 23 anos tornaria relativamente fácil para mim garantir bons editores nos Estados Unidos e Inglaterra, mas encontrar tomadores para meu último romance, O Evangelho Segundo Lázaro (The Gospel According to Lazarus) [ed. Globo Livros, 2018], mostrou-se bem difícil. Este romance se baseia na história de Lázaro e sua ressurreição narrada no Evangelho de João.
Um dos meus objetivos no livro, narrado pelo próprio Lázaro, foi devolver a ele e a Jesus seu judaismo. Em consequência, Jesus é conhecido por seu nome hebraico Yeshua ben Yosef e Lázaro é Eliezer ben Natan. Além disto, caracterizei Yeshua como um místico e curandeiro da Galiléia, consistente com sua época.
O Evangelho Segundo Lázaro é uma história sobre os sacrifícios que fazemos para ajudar as pessoas que mais amamos e como encontramos a coragem para prosseguir após sofrer um trauma profundo. Começa com Eliezer despertando em sua tumba talhada em pedra, inseguro de si e desorientado. Pior de tudo, sua fé se tinha quebrado porque não lembra nada sobre uma vida após a morte. Frágil e vulnerável – preso entre a vida e a morte – ele pede ajuda a Yeshua, e os dois homens embarcam numa nova fase de sua longa amizade.
Em flashbacks, conhecemos o primeiro encontro de Eliezer com Yeshua – durante sua infância em Nazaré – e descobrimos com ele chegou a ganhar a confiança e gratidão de seu amigo. De volta ao presente – durante a Semana da Paixão – Yeshua lhe diz, porém, que seu encontro quando crianças não tinha sido um acidente e oferece uma explicação surpreendente da razão de estarem juntos.
Após a prisão de Yeshua no Jardim de Guetsemani, Eliezer conclui que toda a sua vida havia sido um teste para esta chance de salvar seu amado amigo da crucificação. Apenas muitos anos depois, porém – após Eliezer ter sido forçado a fugir de Jerusalém – ele começa a entender o verdadeiro papel que desempenharia na vida de Yeshua.
Tornei-me apaixonado por este projeto em parte porque há muito tempo me pareceu que tanto os pensadores cristãos como os judeus foram injustos em suas caracterizações de Yeshua ben Yosef. Em particular, as interpretações dos Evangelhos muitas vezes disseminadas por líderes religiosos cristãos tiveram consequências desastrosas para comunidades judaicas ao longo do mundo. E continuam criando ódio contra judeus em países como Polônia e Hungria. Tais interpretações também me parecem completamente inacuradas porque deixam de reconhecer que Yeshua era um líder espiritual judeu que abraçava as práticas e crenças do seu povo. Quando aos pensadores e autoridades religiosas judaicas, poucos deles estiveram dispostos a abraçar Yeshua como líder espiritual. Até onde sei, o único renomado filósofo judeu que propôs a incorporação de Yeshua ao cânone judaico foi Martin Buber.
[NT] Ressalve-se o romance “Judas”, do recentemente falecido escritor Amós Oz, onde o escritor faz uma caracterização semelhante de Jesus e seus discípulos e revê o papel tradicional de Judas, muitas vezes utilizado como estopim de ondas antissemitas através dos séculos.
Em nenhum lugar do Evangelho de João consta nenhuma indicação de que Yeshua teve qualquer intenção de renunciar ao seu judaísmo. Assim, ao apresentá-lo como um místico curandeiro galileu que faz uso das práticas espirituais judaicas, como eram conhecidas há cerca de dois mil anos, pareceu-me um projeto intelectualmente válido e coerente. Estarão os leitores dispostos a aceitar esta saída das leituras tradicionais cristãs e judaicas para a missão de Yeshua? Não tenho nenhuma bola de cristal, claro, mas já recebi vários e-mails de leitores da Inglaterra – onde o romance já foi lançado, dizendo-me que minha narrativa os libertou de noções pré-concebidas sobre Yeshua e Eliezer e lhes deu uma nova perspectiva do antigo judaísmo e dos primórdios do Cristianismo.
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POSFÁCIO
No outono de 2005, quando o 500ºh aniversário do Massacre de Lisboa de 1506 se aproximava, perguntei a membros da comunidade judaica local como eles planejavam rememorar este evento trágico e marcante. Quando me disseram que não tinham plano, me ofereci para trocar ideias sobre possibilidades ou participar em qualquer evento que organizassem.
Líderes judeus fizeram uma cerimonia solene num hotel central em 29|04|2006. Ali falei sobre a importância de recordar aqueles que foram esmagados pela intolerância religiosa e étnica, fossem judeus em Portugal, indígenas na América, aborígenes na Austrália ou qualquer outro povo em qualquer outro país. E por quê? A meu ver, para criar um ethos de justiça e evitar futuros crimes contra a Humanidade. Numa nota mais pessoal, também falei sobre como me foi gratificante dar voz a gente que havia sido sistematicamente silenciada.
Alguns meses depois, foi construído um monumento aos judeus assassinados numa pequena praça – o Largo do São Domingos – defronte da Igreja Dominicana, onde o Massacre de Lisboa começou. Fiquei muito emocionado quando autoridades da Prefeitura de Lisboa me disseram que o monumento jamais teria sido erguido não fosse a atenção que atraí para o pogrom em meu romance, O Último Cabalista de Lisboa.
Nos últimos anos, o monumento se tornou um ponto de peregrinação para visitantes judeus e outros desejosos de honrar a memória dos dois mil judeus forçados a se converter, cujos corpos foram queimados diante da Igreja Dominicana.
Em 2014, o governo português também aprovou um projeto pelo qual eu me empenhara muito: dar cidadania a judeus sefaradim vivendo em qualquer lugar do mundo, que pudessem mostrar evidências de que seus ancestrais eram de Portugal. Até maio deste ano, mais de 7 mil judeus de Israel, Turquia, Brasil e outros países já tinham seus pedidos aprovados, ganhando a nacionalidade de seus ancestrais – homens, mulheres e crianças que haviam sido torturados e assassinados pela Inquisição ou forçados a fugir da perseguição religiosa para outros países.
[ por Richard Zimler | conheça mais em www.zimler.com ]
– original em inglês publicado em jul|19 na Revista Tikkun (www.tikkun.org) ]
– traduzido ao português e editado por Moisés Storch para os Amigos Brasileiros do PAZ AGORA (www.pazagora.org), com revisão do autor ]