O Inferno dos Outros – 50 anos após a Guerra dos 6 Dias

 

Meio século após a Guerra dos Seis Dias, falo sobre meu encontro com o escritor israelense David Grossman e as reflexões dele sobre o conflito, extraídas de nossas conversas, do debate que mediei com ele, de uma entrevista e da leitura de seus livros.

É um ângulo raro, que enxerga o impacto profundo da ocupação na vida não só dos palestinos, mas dos israelenses. “Como uma nação inteira, uma nação iluminada, é capaz de se treinar para viver como conquistador sem tornar sua própria vida miserável? O que aconteceu conosco?”, questiona o autor, que perdeu o filho de 19 anos na guerra contra o Líbano, em 2006.

A resposta vem no que ele define como parte da tragédia de seu povo: “Ao longo de nossa história, o povo judeu sobreviveu para poder viver sua vida. E agora vive para sobreviver apenas”. O prolongamento do conflito e o fracasso das sucessivas tentativas de acordos de paz levou a uma apatia “catastroficamente perigosa”.

“Sem esperança, nos voltamos para os que oferecem soluções fáceis, a dicotomia entre mocinhos e bandidos”. Mas essa forma de olhar, que requer uma abordagem exclusivamente combativa contra o “inimigo”, proporciona apenas “uma falsa aparência de segurança”, não a paz.

A paz exige mudar mais em nós mesmos do que no outro”, Grossman diz. Isso serve a ambos os lados. “Busco a solidez de nossa existência sem muros.”

A coluna de hoje de Adriana Carranca no jornal O Globo:

O inferno dos outros

David Grossman em Manifestação do PAZ AGORA - 16|10|2014

David Grossman em Manifestação do PAZ AGORA |  Tel Aviv 16|10|2014

Ele escrevia as últimas linhas do romance, quando foguetes do grupo xiita Hezbollah atingiram as fazendas de Shebaa, controladas por Israel, dando início a um novo conflito com o Líbano em 2006 (onde ele servira, em 1982). Às 2h40m do domingo, 13 de agosto, Grossman recebeu em casa a notícia da qual tentava fugir. Uri, de 19 anos, estava morto. O cessar-fogo entrou em vigor um dia depois. “Nós já perdemos esta guerra”, ele disse no funeral do filho.

Há um entendimento fundamental na frase de Grossman: a de que neste conflito ambos os lados estão perdendo. Conheci-o no ano passado, quando ele esteve no Brasil a convite da Fronteiras do Pensamento, e suas palavras ressoam agora.

Tropas israelenses avançam no Egito na Guerra dos Seis Dias jun|67  – AP

 

Antes de “A mulher foge”, Grossmann escreveu sobre um menino que para de crescer às vésperas da Guerra dos Seis Dias, como se não quisesse se tornar adulto em um mundo de violência e mortes. Como o personagem, 1967 foi para Grossman o ano do bar mitsvá, e a explosão dos hormônios se misturou ao sentimento “tentador de conquista e rendição do inimigo” que “intoxicou a nação”.

“Eu não conseguia entender como uma nação inteira, uma nação iluminada, é capaz de se treinar para viver como conquistador sem tornar sua própria vida miserável”, refletiu Grossman, mais tarde, em “The yellow wind”. “O que aconteceu conosco?”

Para muitos israelenses, era a primeira vez que encaravam de maneira mais profunda a realidade da ocupação, disse Amos Oz, sobre o livro do colega à revista “The New Yorker”.

Nos anos 1990, Grossman era parte de um grupo de escritores que se encontrava secretamente (na época, israelenses eram proibidos de ter contato com representantes da Autoridade Palestina) em consulados estrangeiros em Jerusalém ou Ramallah, por julgar essencial ouvir um ao outro e encontrar pontos de convergência. “Eu entendia mais dele, de nós, da natureza do conflito.” Dois anos depois, o grupo se desfez — os autores palestinos foram acusados de normalizar a relação com Israel e assim “camuflar os horrores da ocupação”.

O fracasso dos sucessivos processos de paz distanciou-os mais e isso, por sua vez, afastou progressivamente essa opção. É um círculo vicioso. Nos conflitos prolongados, torna-se cada vez mais difícil reconhecer “O inferno do outro”, título do livro mais recente de Grossman (Companhia das Letras). Mais do que isso, ao enxergar o inferno dos outros, reconhecemos nossos próprios demônios. O “inimigo”, acredita o autor, nos revela o que já não ousamos reconhecer, como um espelho.

No livro, Dóvale, um comediante de stand up, atrai a plateia com piadas apenas para revelar uma verdade mais profunda. De repente, ele começa a contar algo terrível sobre seu passado. O público percebe e começa a deixar o lugar. “Gostamos de olhar o sofrimento do outro apenas por um instante e voltar à nossa vida protegida”. Mas os que ficam e se dispõem a encarar o inferno de Dóvale aos poucos enxergam naquele homem rude e agressivo a ternura e fragilidade que ele teve de negar para sobreviver. “Talvez aí você encontre uma camada política de nós, como um Estado.”

“Somos especialistas em sobrevivência”, diz. E isso é parte da tragédia. “Ao longo de nossa história, o povo judeu sobreviveu para poder viver sua vida. E agora vive para sobreviver apenas”.

É inegável a necessidade de Israel manter um Exército forte, numa região em chamas. “Veja Síria, Iraque, Líbia e o que fazem com seus próprios irmãos muçulmanos. Imagine o que não fariam com Israel, se pudessem.” Mas Grossman entende também que um Exército forte traz apenas uma falsa aparência de segurança e não a paz. É uma diferença fundamental.

LUTANDO PELO FUTURO DE ISRAEL

Lutando pelo Futuro de Israel  |  Amós Oz e David Grossman

 

A segurança deve ser acompanhada de mudança de atitude em relação ao “outro”. “A maioria dos israelenses diz que nada pode ser feito, estamos fadados a viver dessa maneira. Isso é catastroficamente perigoso.

Desesperados, voltamo-nos para os que oferecem solução fácil, à dicotomia entre mocinhos e bandidos. Isso simplifica o mundo e nos dá a sensação de sermos justos. Mas a paz exige mudar mais em nós mesmos do que no outro.” Isso serve a ambos. “Busco a solidez de nossa existência sem muros.”

 

[ por Adriana Carranca | publicado no  jornal O Globo ]

 

 

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