UM MENINO E DUAS MÃES
Resenha do psicanalista Dr. Davy Bogomoletz
Imagine um menino que tem uma mãe. A mãe fala, e o menino obedece. A mãe cala, e o menino obedece. A mãe reclama, e o menino se submete. A mãe briga, e o menino estremece. Agora imagine um menino que tem DUAS mães. Tudo que lhe acontece é em dobro. Tudo duas vezes maior. Imaginou? Agora, no entanto, imagine algo ainda mais difícil de acontecer: as duas mães são boas.
Nenhuma das duas briga sem motivo, nenhuma das duas ralha por má vontade, nenhuma das duas dá bronca porque está zangada. De ambas as mães esse menino só ouve palavras amáveis, agradáveis, amistosas – mesmo quando ele faz alguma “arte”.
As duas mães se preocupam com o seu crescimento, com a sua aprendizagem, com quem ele será quando crescer. As duas mães o veem como um menino que será “alguém” algum dia. Para isso elas duas trabalham, para isso elas duas não têm férias nem descanso, para isso ambas se esforçam muito, muito mesmo.
Mas… Há sempre um problema. E no caso desse menino é: as duas mães têm, cada qual, a sua ideia do que o menino deve aprender, do que o menino deve saber, e como ele irá crescer.
E agora? Como fica o menino, com essas duas mães puxando-o cada uma para o seu próprio lado? Pois bem: O menino em questão, esse que escreveu o maravilhoso livro de que estou falando – Mentch – que significa, literalmente, homem, mas não um simples homem, como qualquer outro, mas sim um homem de verdade, que merece esse título, adora a ambas.
Eu já disse, em outro contexto, que o termo “ser humano” pode ser usado de dois modos: Ou como substantivo, e nesse caso engloba toda a população da Terra, ou como adjetivo, e nesse caso só pessoas muito especiais fazem parte desse restrito grupo. Mentch, obviamente, significa “ser humano” como um adjetivo – altamente meritório.
Uma das mães, a “verdadeira”, é uma guerreira, uma heroína, que briga (e vence) até bandidos, que reúne em sua casa, em plena era do Estado Novo, um grupo de comunistas, desafiando Getúlio e sua polícia secreta, e procura ensinar a seu filho a arte de tornar-se um consertador de mundos.
A outra mãe, que na verdade é a avó, é uma santa, sempre com um livro sagrado em suas mãos, que conhece ciências ocultas e decide, com suas orações, até o destino de certas pessoas, e reúne, em sua casa – em dia diferente – um grupo estranho de pessoas que, como ela, são adeptos de uma seita secreta, e procura sempre, sempre, fazer o neto compreender os sentidos ocultos das coisas, para melhor conhecer as verdades do mundo.
Sua filha, a mãe “verdadeira”, acha que a sua mãe está perdida em superstições da Idade Média, e a avó, a outra mãe, acha que a filha está perdida em ideias vazias, em idolatrias vãs. Mas o curioso é que as duas amam desesperadamente uma à outra, e tomam todo o cuidado para falar com o filho-neto de modo que a outra não ouça. E então, dirá você, o filho se vê esticado, repuxado, entre duas conspirações antagônicas, cada qual mais poderosa que a outra. E terá razão. Menos num ponto: o menino, nosso herói, não vê as duas doutrinas como conspirações, mas como ferramentas utilíssimas para entender o que se passa no mundo dos homens.
As aventuras do menino são inimagináveis, pois onde mora ele, num dos afluentes da rua de Santana, no Rio de Janeiro, entre a Candelária, de um lado, e a Zona do Meretrício do Mangue, do outro, lugar de concentração da comunidade de imigrantes judeus, quase todos refugiados do inferno europeu à época da Segunda Guerra Mundial, as duas mães e ele são seres muito estranhos, do ponto de vista da população cristã local. Não vou contar aqui tais aventuras, para não tirar de você o prazer da leitura. Este último parágrafo tem como objetivo apenas situar a história num tempo e num lugar específicos, para você saber de antemão que irá ler um livro absolutamente fora do comum.
Assim é o livro que estou aqui me esforçando por elogiar o menos possível. E você está desafiado a lê-lo e me dizer, depois, o que achou. Aposto o que você quiser que depois você me dirá que minha resenha não fez jus ao livro, muito melhor do que eu consegui descrever. Boa leitura.