Pela primeira vez desde a criação do Estado de Israel, o Shin Bet [ Serviço Secreto de Israel] usou o que chama de “métodos especiais” para investigar judeus. Ativistas da extrema direita dizem que essas ferramentas incluem tortura.
Uma longa investigação, feita pelo Shin Bet e a polícia de Israel, descobriu um plano para destruir o Estado de Israel e levou à incriminação de dois “jovens das colinas” como suspeitos do assassinato da família palestina Dawabsha .
O propósito desse grupo secreto nacionalista-religioso é a eliminação do Estado de Israel, o fim do sionismo e o fomento de um caos regional que facilitaria o estabelecimento de um reino messiânico judeu no lugar de Israel.
O meio para destruir o Estado Judeu, conforme a doutrina desse grupo, é matando árabes, provocando o mundo árabe e voltando a comunidade internacional contra Israel. Minar a autoridade do governo central e criar um caos que levaria a uma revolta.
Durante a revolta, os poderes do governo seriam colocados nas mãos dos que acreditam na supremacia da Torá sobre a democracia.
Os primeiros atos após o golpe seriam a nomeação de um rei e o restabelecimento do Reino bíblico da Judéia, que se conduziria apenas pela Halachá [lei religiosa judaica] . No primeiro estágio, todos os árabes e não judeus seriam advertidos a sair imediatamente do território do Reino. Numa segunda etapa, todos que se recusassem a sair, incluindo mulheres e crianças, seriam mortos. Não há lugar para não judeus na terra sagrada da Judéia.
Qualquer similaridade com as leis aplicadas pelo califado do Estado Islâmico não é mera coincidência. Isso ocorre quando a religião é tomada por extremistas, tornando-se uma ferramenta messiânica.
Uma intensa investigação do Shin Bet e da polícia finalmente desvendou o caso e revelou o que agora é chamado de “Grupo da Revolta”. Os seus membros, algumas dezenas de jovens, entre 15 e 24 anos, se autointitulam “Givonim” (“Jovens das Colinas”).
Eles são os responsáveis pelo assassinato chocante da família Dawabsha no vilarejo de Duma, Cisjordânia, em 31|07|2015. Três membros da família foram queimados até a morte enquanto dormiam. Ali (18 meses) e seus pais, Riham e Saad. O filho Mohammed, 4, foi o único que sobreviveu ao inferno.
Em 3 de janeiro, Amiram Ben Uliel, 21, de Jerusalém, foi incriminado por triplo assassinato. Conforme a acusação, Ben Uliel jogou um coquetel Molotov dentro da casa da família, após ter grafitado as paredes. Depois, fugiu pela escuridão e caminhou 10 quilômetros, a mesma distância que tinha andado para chegar lá. Outro jovem foi também indiciado por envolvimento no atentado.
Junto com os dois, outros seis suspeitos foram detidos, levando ao esclarecimento de uma série de atos violentos contra árabes, realizados nos últimos dois anos por membros da célula.
O assassinato em Duma foi o primeiro ataque da série que levou a perda de vidas humanas. Como consequência, o Shin Bet acordou. O procurador-geral autorizou o uso de “métodos especiais” pelos serviços de segurança, pela primeira vez contra judeus, passando a realizar detenções administrativas e a aplicar métodos duros contra terroristas judeus. Antes disto, na investigações de judeus israelenses não era permitido o uso de tais medidas. Já o terrorismo árabe era investigado de acordo com regras totalmente diferentes.
Num outro artigo para o Al-Monitor, fiz um quadro geral dos outposts [postos avançados ilegais de assentamentos] no Vale de Shiló. Minha interpretação era de que tais postos avançados poderiam ter gestado os assassinos da família Dawabsha em Duma. A hipótese se provou verdadeira.
A origem do núcleo duro do grupo de Givonim está na juventude revoltosa das colinas, espalhados pelo Vale de Shiló e na colina Baladim (outro assentamento ilegal), que se desenvolveram como campos de cultivo de um extremismo religioso maligno, que se espalhou através da Judéia e Samária [nomes bíblicos da Cisjordânia].
O Shin Bet apreendeu “documentos da revolta” e outros que descrevem a teologia e a metodologia dos membros dessa seita, compartimentada em células terroristas de 3 a 5 membros cada.
As células operavam secreta e independentemente uma da outra. Cada célula não sabia nada sobre as atividades das outras. Infiltrar esta gangue com agentes do Shin Bet é quase impossível, lembrando as tentativas de inserir agentes em organizações terroristas de extremistas islâmicos.
Os membros desses grupos compartilham uma ideologia messiânica extremista. São muito íntimos uns dos outros, cresceram juntos e se radicalizaram juntos. Suspeitam de todo o mundo exterior e são bem treinados para enfrentar interrogatórios e esforços para rastreá-los. Vivem em postos avançados da Cisjordânia, sabem como sobreviver na natureza e encontram refúgios em cavernas e casas abandonadas. São capazes de viver em território selvagem, desconectados da civilização, por muitos dias.
Ben Uliel cresceu no bloco de assentamentos de Gush Etzion, filho de um rabino do assentamento Karmei Zur, que é visto como líder moderado. Viveu por um tempo no outpost [posto avançado ilegal] de Geulat Tzion. Foi interrogado por várias semanas, até que confessou o assassinato da família Dawabsha. Reconstituiu o crime perante interrogadores do Shin Bet no meio da noite, no mesmo local onde o assassinato havia ocorrido.
Agora a sua família e amigos reclamam que a sua confissão foi extraída mediante tortura e não teria valor. O Shin Bet enfrenta uma complexa batalha legal para validar essa confissão e adicionar outros testemunhos, como detalhes ocultos que Ben Uliel forneceu, relativos ao local do crime e o depoimento de um menor que trabalhou com ele no planejamento do atentado.
A ruptura da “célula revoltosa” desencadeou uma controvérsia política aguda em Israel. A direita extremista defende tratamento diferenciado entre o terror árabe e os judeus que perpetram crimes. Argumenta que a tortura não pode ser usada contra cidadãos israelenses judeus. Mas a vasta maioria do mapa politico apóia a decisão de usar tortura contra tais suspeitos.
Mesmo o ministro da educação Naftali Bennett e a maioria de seus colegas no partido HaBait HaIehudi [ultranacionalista] dizem que “terror é terror.” Eles são bem conscientes de que esses frutos venenosos que cresceram no seu jardim põem em perigo o Estado de Israel. Não menos (e talvez mais) que o inimigo árabe.
A doutrina ideológica é exposta em detalhe, numa série de documentos apreendidos pelo Shin Bet. De acordo com eles, o Estado de Israel — que é tratado com “reino do mal” — “não tem direito a existir e é preciso trabalhar para destruí-lo e construir um reino judeu”.
Membros da célula se comprometem a nomear um rei que governará a nação, forçando-a a comprir os preceitos religiosos mais estritos. Os documentos apreendidos contém instruções detalhadas de como incendiar mesquitas ou igrejas.
O Shin Bet identificou o momento no qual o grupo fez a transição da etapa de provocar prejuízos e incendiar bens materiais [plantações, casas e automóveis] a incendiar casas com árabes vivendo dentro e criar o maior caos possível, para promover sua agenda.
O Serviço Secreto Geral declara que há entre 30 e 40 membros no núcleo duro da quadrilha, envolvidos em atos efetivos de terror.
A segunda linha inclui aproximadamente 100 jovens, que apóiam a doutrina religiosa e são parte de células terroristas espalhadas pelos outposts e colinas da Judéia e da Samária [ Cisjordânia ocupada ].
Ao redor, há outra camada de várias centenas, talvez milhares, que apóia a idéia geral de substituir o Estado de Israel pelo “Reino da Judéia”. Esses membros servem de rede logística, fornecendo apoio aos participante das células ativas.
Como resultado de investigações intensivas pelo Shin Bet nos últimos dois anos, alguns dos atos de violência e danos à propriedade foram esclarecidos, incluindo o incêndio de mesquitas e igrejas. Vinte e três suspeitos foram presos até agora.
Acredita-se que o grupo não foi totalmente identificado e desmantelado. Ainda existiriam muitos fanáticos dispostos a dar sua vida pela causa.
Após o assassinato em Duma, o foco prioritário do Shin Bet é abortar eventos similares.
Os serviços de segurança consideram que o incidente em Duma foi uma das causas da erupção da “intifada das facas”, onda de terror palestino que irrompeu em outubro, há cerca de dois meses.
A percepção de que Israel se apressa a esclarecer atos de terror árabe, mas não é capaz de combater o terrorismo judeu trouxe muita agitação entre os palestinos e também ampla crítica interna em Israel.
O Shin Bet removeu esta carga dos seus ombros, usando todos os meios à sua disposição. Ao fazer isto, Israel teve uma mudança de consciência, ao compreender que as ameaças existenciais que enfrenta não vem apenas do seu entorno, mas também de dentro de si.
[ publicado no Al-Monitor (*) em 04|01|2016 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]
> Leia também “Meir Ettinger – O rosto de terrorismo judeu” (19|12|2015)