Eu sou parte de você, mesmo que você me negue
(crônica da viagem de Jean Wyllys a Israel|Palestina)
Um dos aprendizados mais importantes dessa jornada – e particularmente das atividades programadas para o dia de hoje, mais quente que os anteriores – foi concluir que a esquerda brasileira precisa conhecer Israel e, mais especificamente, precisa muito conhecer a (e interagir com) a esquerda israelense.
Muitas pessoas de esquerda no Brasil têm a equivocada impressão de que a sociedade israelense é ideologicamente homogênea e tem uma mesma e única posição em relação ao conflito entre Israel e Palestina e sua história. Esta postura, contudo e estranhamente, não se repete em relação a outros países: governos de outros países (inclusive o do nosso) são responsáveis por diferentes violações aos direitos humanos, mas, nesses outros casos, essa parte da esquerda brasileira à qual me refiro não costuma responsabilizar nem estigmatizar as populações desses países em função das violações perpetradas por seus governos.
Ora, se, em todos os países (inclusive no nosso), existem contradições na sociedade e esta é composta por uma diversidade política que inclui diferentes movimentos sociais, partidos, organizações da sociedade civil, entidades religiosas, ativistas e políticos, por que, no caso de Israel, seria diferente?
Cumprindo o programa da visita, hoje ao meio-dia encontrei, na praça Yitzhak Rabin, no centro de Tel Aviv, o jornalista e o principal porta-voz da causa LGBT em Israel, Nitzan Horowitz, membro do Meretz (um partido de esquerda muito semelhante ao PSOL). Aliás, Horowitz tem um perfil público bastante parecido com o meu, já que atua em e articula todas as outras agendas dos Direitos Humanos. Depois de ter exercido dois mandatos de deputado e obtido 40% dos votos nas eleições para prefeito de Tel Aviv, Horowitz decidiu dar um tempo do parlamento e está concentrado em fazer política por meio da comunicação. O local de nosso encontro não poderia ser mais significativo. A praça leva o nome do primeiro-ministro israelense assassinado ali (onde hoje há um memorial em sua homenagem) por um extremista religioso judeu contrário aos acordos de paz com os palestinos.
Nitzan Horowitz me falou, com clareza, algo que eu já tinha percebido em minhas conversas com os ativistas do Ir Amim, com o pesquisador Avraham Milgram, do museu do Holocausto, com o escritor David Grossman e com parlamentares de partidos de esquerda e centro-esquerda: além do conflito entre palestinos e israelenses, existe outro tão importante quanto e cuja solução vai definir o rumo daquele: trata-se do conflito entre esquerda e direita; laicidade e religiosidade; estado de bem-estar social e neoliberalismo; e entre os que acreditam na solução pacífica da questão palestina e os que pretendem que ela seja resolvida pela força militar.
Nitzan Horowitz é categórico: Israel deve desocupar os territórios palestinos; retirar, destes, seus assentamentos ou colônias e firmar, com os representantes dos palestinos, um acordo de paz que parta do reconhecimento mútuo de dois estados soberanos, Israel e Palestina! Ele é fortemente crítico do governo Netanyahu – em sua opinião, um péssimo primeiro-ministro que promove a “fascistização” da sociedade israelense – e lamenta que a esquerda em Israel não tenha, hoje, um bom candidato para enfrentá-lo e vencer as próximas eleições. O cenário é difícil para a esquerda também porque, desde a morte de Yasser Arafat, não há um interlocutor no lado palestino com o qual seja possível estabelecer uma negociação da paz, já que a representação política desse povo se encontra fragmentada pelas disputas entre o Hamas, Al-Fatah e outros grupos.
Outro elemento importante da cena política israelense apontado por Horowitz é a disputa entre o que ele chama de “Estado Tel Aviv” – que corresponde aos modos de vida dessa cidade, mais cosmopolita, laica, liberal e de esquerda – e o conservadorismo de Jerusalém e outras regiões, onde o peso dos setores religiosos e da direita política é bem maior.
O fundamentalismo religioso está presente nos dois lados em conflito: entre os palestinos, sua maior expressão é o grupo Hamas; já entre os israelenses, ele emerge sobretudo dos colonos ortodoxos que se recusam a sair das terras palestinas por acreditarem que aquelas são terras santas que Deus reservou para os judeus (por exemplo, na Hebron israelense, 800 colonos judeus vivem protegidos pelo exército entre 25 mil palestinos muito mais pobres e, mesmo assim, recusam-se a deixar local como parte de um acordo de paz).
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Horowitz não é o único membro da esquerda israelense e ativista do movimento LGBT empenhado numa crítica contundente ao primeiro-ministro Nethanyahu, cujo capital político se deve ao apoio da direita e da extrema-direita e ao recurso à propaganda enganosa. Mickey Gitzin, vereador de Tel Aviv pelo Meretz e diretor da ONG Israel Chofshit (“Israel Livre”) – com quem também me encontrei como parte do programa da visita – repudia, assim como eu, o conceito de “Pink Wash” pelo que este tem de antissemita e homofóbico (parte da ideia equivocada de que os judeus só fazem uma coisa boa para esconder outra ruim e minimiza as conquistas políticas dos movimentos e comunidade LGBT israelenses). Mas admite e denuncia que Nethanyahu costuma, em eventos internacionais e principalmente em visita aos EUA, se referir aos direitos e liberdades civis desfrutados pela comunidade sexo-diversa israelense graças ao Poder Judiciário como se fossem realizações de seu governo. “E isso é propaganda enganosa, pois tanto ele quanto a maioria dos parlamentares de direita e de extrema-direita que o apoiam são contrários à cidadania LGBT e não aprovaram leis que a efetivem”, acrescentou. Para Gitzin, o conceito de “Pink Wash” é também injusto pelo fato de partir do pressuposto de que os ativistas LGBTs em Israel não se importam com as violências perpetradas pelas ocupações dos territórios árabes. “Nós somos contra a colonização da Palestina e defendemos a existência de dois estados autônomos e que se reconheçam mutuamente e se respeitem; além disso, apoiamos e acolhemos homossexuais árabes que estejam em risco em territórios palestinos onde a homossexualidade é criminalizada”, afirmou.
De fato, conheci, logo depois, na Bina (uma yeshiva secular), Ellyot, um ativista LGBT que não só faz um trabalho de acolhimento e apoio a refugiados e pessoas que pedem asilo a Israel, como desenvolve, com estes e com israelenses, um estudo dos textos sagrados do Judaísmo de modo a mostrar que há, nestes, elementos suficientes para se concluir que eles não condenam a homossexualidade. Ou seja, como diz o verso da canção, “eu sou parte de você mesmo que você me negue”! O encontro com Ellyot, outros professores e alunos da Bina foi mediado por Uri Carmel, diretor de relações comunitárias da escola. Dele também fez parte Michal Biran, deputada pelo partido trabalhista Avoda. Ela também se opõe às ocupações dos territórios palestinos e disse que Nethanyahu manipula a seu favor os traumas e medos dos judeus israelenses, aproveitando-se dos atos terroristas praticados por árabes contra civis israelenses para levar parte expressiva da população a apoiar sua política belicosa e colonialista.
A última atividade do dia foi uma visita ao kibutz Zikim, perto de Ashkelon e da fronteira com a Faixa de Gaza, onde fomos recebidos por Mark Levy, um gaúcho e militante da esquerda sionista que mora em Israel desde a década de 1970. Os kibutzim fizeram parte do projeto fundacional do estado de Israel e funcionam como uma experiência de vida em pequenas comunidades cooperativas com uma economia quase socialista. Dentro do território do kibutz, além das casas dos moradores, há duas fábricas, um curral com vacas para a produção de leite, plantações de milho e abacate, refeitório, biblioteca, posto de saúde e escola. Todos os moradores entregam integralmente seus salários ao kibutz, que administra o dinheiro de todos e distribui o necessário para cada um – “o modelo se inspira na crítica ao programa de Gotha, de Marx”, explica Mark -, e as decisões são tomadas de forma democrática. Embora muitas características do início do projeto tenham sido flexibilizadas pelo avanço da sociedade capitalista, muitas outras se mantém. Quando Mark nos levou de carro para percorrer o bairro, o carro que usamos não era dele, mas do kibutz. “Todos os carros são de propriedade coletiva e tem um sistema computarizado que permite que cada um de nós se identifique com uma chave de segurança para usá-los”, ele explicou.
No kibutz Zikim, por volta de 80% das pessoas votam na esquerda. Antigamente, eram quase todos eleitores do Meretz (o partido do Nitzan Horowitz), mas, nos últimos tempos, pela polarização política em que o país mergulhou, uma parte do bairro começou a votar no Avodá (centro-esquerda) ou no Yesh Atid (centro liberal), que tinham mais chances de vencer Netanyahu, representante da direita e da extrema-direita israelense. Mark é pessimista sobre o presente do país e diz que o governo Netanyahu é uma catástrofe para Israel e um obstáculo para a paz. Da mesma forma que Nitzan Horowitz, Gitzin, Carmel e Michal Biran, ele é contra a ocupação dos territórios palestinos, a favor da criação de dois estados e contra o “boicote” a Israel.
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Todas as minhas conversas com ativistas, intelectuais, parlamentares, escritores e diversos representantes da esquerda israelense confirmaram o equívoco imperdoável daqueles setores da esquerda brasileira que tratam o conjunto do sionismo, da sociedade israelense e, em alguns casos, ainda pior, do povo judeu, como uma coisa só. Culpar e condenar o conjunto desse país e seus habitantes pela opressão contra o povo palestino é tão equivocado quanto culpar o conjunto do povo palestino pelos atentados terroristas do Hamas ou o conjunto do povo americano pelos bombardeios que os EUA fizeram no Iraque e pelas violações aos direitos humanos que eles perpetraram em Guantânamo.
Por isso, eu convido a esquerda brasileira que se solidariza com o povo palestino a abandonar a equivocada ideia do boicote a Israel – que prejudica um povo inteiro, detona as pontes e fortalece a direita e a extrema direita desse país – e começar a dialogar com a esquerda israelense. E quem puder visitar tanto Israel quanto a Palestina, como eu fiz, que o faça! A esquerda israelense luta pelas mesmas causas que nós e também é contra a ocupação dos territórios palestinos e defende a solução de dois estados. E há muitos ativistas palestinos e israelenses que trabalham juntos pela paz! Falar com eles ajuda a entender melhor e de fato um conflito sobre o qual muita gente no Brasil (e no Facebook) parece ter conclusões definitivas, mas pouca informação.
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A Folha de São Paulo informou hoje que Netanyahu desistiu de indicar, como seu embaixador no Brasil, o governador das colônias de Israel na Palestina – uma indicação que mais parecia uma provocação – e que, em troca, o Itamaraty vai se pronunciar contra o boicote a Israel. Será verdade? Se sim, será que o diplomata que me atacou de forma leviana e injusta em seu perfil no Facebook e por meio de sua network, estimulando, em parceria com os representantes do BDS frustados pela minha recusa a aderir ao boicote, um linchamento virtual eivado de ódio contra mim, será que ele fará o mesmo com a presidenta Dilma? Será que todos eles lincharão virtualmente o Ministro das Relações Exteriores como estão fazendo comigo? Ou será que o linchamento (não me refiro aos questionamentos honestos e críticas elegantes em relação à viagem, aos quais eu pude tranquilamente responder e refutar por meio das crônicas!) ou será que o linchamento virtual não passa de um meio de muita gente pôr pra fora seus ódios e inveja em relação à minha vida com pensamento e liberdade?
[ texto e fotos publicados originalmente na página de Facebook do autor ]