Paz sem voz não é paz, é medo…
(Quarto relato da viagem, agora à Palestina)
Hoje foi o dia da visita a campos de refugiados na Cisjordânia, Palestina, já prevista no programa da viagem, para conhecê-los de perto e por dentro e conversar com alguns de seus moradores sobre os sofrimentos a eles impostos pela política de colonização dos territórios palestinos por parte do governo de Israel.
Antes do início da viagem de carro, uma tempestade se armava no céu, intensificando o frio de congelar os ossos, e, por isso, fui aconselhado a desistir desse item do programa porque as tempestades costumam prejudicar a visibilidade nas estradas.Mas como não sou homem de desistir fácil de coisa alguma, arrisquei-me a viajar mesmo sob ameaça de tempestade.
Um carro conduzido por dois dos meus anfitriões israelenses nos levou até a fronteira entre Jerusalém e Belém, onde uma placa com um texto em letras garrafais escrito em hebraico, árabe e inglês avisa que, a partir dali, nenhum israelense pode passar porque estará pondo em risco a própria vida além de violando as leis do país. Ali, conhecemos o palestino Jamil Kassas e pulamos para seu carro, já que carros com placas israelenses em campos de refugiados árabes são inadmissíveis porque podem ser atacados a qualquer momento. Seguimos.
A primeira parada foi num restaurante árabe, mas boa parte do relato do Jamil foi durante a viagem. Algumas histórias ele preferia não contar em um lugar público.
Jamil atravessou na sua vida por diversas tragédias inimagináveis que mudaram sua visão de mundo e seu objetivo da vida. Participou da primeira Intifada, jogando pedras na polícia israelense, como aprendeu dos meninos mais velhos, viu seu irmão mais novo ser morto pelo tiro de um soldado de Israel, acompanhou o luto da sua mãe e a morte do seu pai, foi preso, conheceu Yasser Arafat na prisão, onde também aprendeu hebraico, conseguiu trabalho em Jerusalém – para o qual devia passar todos os dias pelos controles humilhantes na fronteira – e viu muitos amigos morrerem por causa do conflito.
Mas teve três fatos que mudaram tudo para ele. O primeiro foi o assassinato do irmão. O segundo, tempo depois, foi um atentado terrorista de um grupo palestino em Jerusalém, com várias vítimas civis. Ele estava em sua casa, no campo de refugiados, e viu sua mãe chorar enquanto assistia às notícias.
– Por que você chora, mãe? Isso foi do lado de lá… Os mortos não são palestinos, mas judeus – ele questionou.
– Choro porque outras mães perderam seus filhos pela violência, como eu. A dor é a mesma – respondeu ela.
Essa frase mudou sua visão de mundo.
Quando sua mãe morreu de um ataque ao coração, o terceiro fato que o levaria a ser quem ele é hoje, ele se questionou tudo. Lembrou do choro da mãe naquele dia e entendeu que essa guerra precisava acabar. Hoje ele diz, orgulhoso, que é um ativista pela paz e trabalha incansavelmente por ela junto a palestinos e israelenses que querem a mesma coisa.
“Eu defendo a resistência pacífica à ocupação e acredito que a única solução para todos nós é a negociação e o diálogo para que Israel e Palestina possam coexistir. Os dois”. Ele é contra os atentados, a violência e a política do “boicote” e diz que ambos os lados devem retomar as negociações tempo atrás frustradas.
Mas isso é possível? Jamil assegura que a maioria do povo palestino quer a paz, mas o fracasso dos acordos de Oslo e a política do governo Netanyahu e dos extremistas do lado palestino impedem que aconteça. Diz que ambos terão que ceder algumas coisas: “Os assentamentos judeus no território palestino devem ser desmontados e nós devemos negociar condições para a questão do retorno. Eu sei que não vou voltar à região onde nasci e abro mão disso, outras regiões serão negociadas. E a ocupação nos territórios anexados na guerra de 1967 tem que acabar”.
Ele também fala do cotidiano e diz que as humilhações que passam no check-point e o abandono dos seus bairros aumentam o ressentimento. Há também uma questão econômica e social: para conquistar a paz, também precisamos melhorar as condições de vida do nosso povo. Para o irmão mais novo de Jamil, muito mais duro em sua posição, a chave está só nas mãos de Israel: “Se a maioria do povo israelense quiser acabar com a violência, não pode continuar votando em Netanyahu e tem que olhar para nós como pessoas, não como terroristas. Eu não sou terrorista: trabalho, estudo, estou fazendo mestrado, também quero paz, mas isso depende deles”.
Jamil diz que a morte de Arafat mudou muitas coisas. “Não vai ter outro como ele: Arafat falava com todos. Seus herdeiros políticos estão envolvidos na corrupção e não têm capacidade para governar”. Também acha que foi uma tragédia a morte de Rabin, o ex-primeiro-ministro israelense assassinado por um extremista judeu contrário aos acordos. A violência, ele diz, só piora as coisas e se retroalimenta.
Cada atentado palestino contra civis israelenses fortalece eleitoralmente Netanyahu e cada palestino morto pelo exército de Israel fortalece os extremistas do seu lado. “Eu conheço o povo judeu, convivo há muito tempo com eles – diz Jamil e, surpreendentemente, repete algo que, quase com as mesmas palavras, ouvi ontem à noite do escritor israelense David Grossman; o que mais uma vez me mostrou a coincidência entre gente de ambos os lados -. Desde a Shoá, eles vivem com medo, e Netanyahu é mestre em manipular essa emoção. Precisamos que ambos os lados deixem de ver o outro como inimigo. Tem muitos israelenses e palestinos que trabalham para isso”.
O problema, para ele, é que a dirigência política de ambos os lados não quer a solução pacífica e isso dificulta a interlocução, mas mesmo assim ressalta a diferença entre a Cisjordânia, sob o controle do Al-Fatah, e Gaza, controlada pelo Hamas: “Aqui tem liberdade, lá não. Nem eleições, nem liberdades civis ou religiosas”. Ele fala da questão religiosa: “Aqui a minoria cristã e a maioria muçulmana convivem sem problemas e a sociedade árabe é muito mais secular. Em Gaza e Hebrón, onde os fundamentalistas são fortes, é muito diferente”.
A conversa é em hebraico, inglês e português. Na mesa, nossos amigos israelenses e palestinos dialogam sem problemas e o resto dos clientes não se estranha. “Em Gaza não poderíamos estar falando em hebraico em um lugar público, seria perigoso”, diz Jamil. Aproveitamos para perguntar pela situação dos homossexuais em Gaza e ele simplesmente ignora a pergunta e muda de assunto. Esperamos e, tempo depois, perguntamos novamente. Ele diz que, pessoalmente, não tem problemas com isso, “mas o meu povo tem seus costumes”. Pergunto se eu poderia ir a Gaza ou Hebron sendo gay. “Não, impossível, seria muito perigoso”.
Saímos do restaurante e fomos para a casa dele, no campo de refugiados Deheisha. No caminho, as paredes estão cheias de pichações e imagens de Yasser Arafat e dos rostos de jovens assassinados pelo exército. Perto do campo, um grupo de jovens joga pedras nos soldados e o ar está contaminado de gás lacrimogêneo.
Já no “campo de refugiados”, a expressão que denomina o local se mostra confusa para nosso olhar brasileiro. O que encontramos é um lugar semelhante às favelas da Rocinha ou Cantagalo, mais pobre, semi-urbanizado e sem morro. Não é muito diferente dos bairros palestinos de Jerusalém. Na casa de Jamil, fomos recebidos com café arabe e continuamos a conversa.*
Jamil nos levou à sua casa e nos apresentou à sua família (a esposa, Fatma, três filhas e um filho). Numa sincronicidade que só Jung explica, Fatma trabalha como doula em Belém e milita informalmente pelo parto humanizado e contra violência obstétrica, temas que fazem parte de minha agenda parlamentar.
Fatma é fascinante e demonstrou particular interesse pela situação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres brasileiras, já que as palestinas pobres não gozam plenamente desses direitos (nem de outros!), seja por questões culturais, seja pela situação de injustiça social imposta aos palestinos pela não-solução do conflito árabe-israelense.*
Enquanto eu concluía essa viagem, recebi, de uma amiga, uma intelectual do Rio cujo nome vou preservar para poupá-la dos insultos e outros ataques vis por parte da legião de imbecis de direita e de “esquerda” que vigora na internet; recebi, dela, um texto de Paulo Sérgio Pinheiro tecendo considerações sobre minha vinda a Israel que são quase um ataque pessoal e gratuito. Só estive na presença de Paulo Sérgio Pinheiro uma única vez, de modo que não existe, entre nós, nenhum episódio específico que justifique sua atitude.
Embora afirme que leu as crônicas anteriores e as chame de “constrangedoras”, está claro que Paulo Sérgio Pinheiro não leu nada, uma vez que, se tivesse lido, saberia que o programa da viagem ainda não se encerrou e que este incluía a viagem de hoje para além dos muros erguidos por Israel. Sendo assim, então a que interesses corresponde esse ataque de Paulo Sérgio Pinheiro? Quais forças o movem? É algo a se investigar…
Ora, um intelectual da envergadura de Paulo Sérgio Pinheiro não se prestaria a se ocupar da viagem de um parlamentar como eu de modo tão vulgar e desonesto intelectualmente se não houvesse motivo maior (e oculto!) que o aparente!
Até porque, ao meu lado na atividade da Universidade Hebraica, estavam dois intelectuais que Pinheiro conhece bem (James Green e Renato Lessa), mas sobre os quais não teceu qualquer comentário. Fico até lisonjeado de um intelectual como Pinheiro se prestar a me patrulhar ideologicamente pelo Facebook (Ele, que recentemente integrou a Comissão da Verdade, que teve, por objetivo, resgatar a memória da patrulha ideológica, assédio moral, censura e violências físicas perpetradas pela Ditadura Militar contra intelectuais, ativistas e parlamentares como eu entre 1964 e 1985;
Aliás, o que seriam dessas pessoas se os intelectuais e artistas europeus e americanos não aceitassem, à época, convites das universidades e intelectuais de esquerda brasileiros para saberem o que se passava de fato no Brasil? É no mínimo curioso que, hoje, Pinheiro exija que eu me negue a aceitar convite semelhante da esquerda israelense e chame minha viagem de “turismo histórico deslumbrado”!). Fico lisonjeado, mas não deixo de lamentar que um intelectual da envergadura de Paulo Sérgio Pinheiro suje sua biografia com texto tão constrangedor (este adjetivo agora cabe de fato!) porque eivado de má fé, desonestidade intelectual e inveja.
O lamento se estende às posturas de Milton Temer e de Emir Sader (este perdeu várias oportunidades de se posicionar acerca das posturas equivocadas de parlamentares petistas em suas alianças com fundamentalistas religiosos no Brasil, da mesma forma que nunca critica alguns governos autoritários latino-americanos, mas foi diligente em opinar sobre minha viagem, em relação à qual nada sabe).
Embora eu sempre tenha defendido Milton Temer das acusações de antissemitismo (não porque eu não ache horrorosas algumas de suas expressões a respeito, mas por acreditar que fossem por ignorância e não por maldade), ele preferiu julgar precipitadamente minha viagem, exortando uma horda de homofóbicos de “esquerda” a me insultar, do que me enviar uma mensagem me pedindo informações sobre os objetivos e o programa da visita. Eu me pergunto: se a minha posição sobre o conflito israelense-palestino sempre foi equilibrada, se nessa viagem dialoguei com diferentes setores, se eu me posiciono contra a violência e a favor da solução pacífica e da coexistência de dois estados – Israel e Palestina -, se eu, como muitos israelenses e palestinos, sou contrário à política de Netanyahu e do Hamas, se procuro tender pontes, dialogar, ouvir, aprender, por que essa over reaction (que não houve, por exemplo, quando Paulo Abraão veio a Israel)? É homofobia? É antissemitismo? Tem alguma outra coisa que não sabemos?
Em tempos de internet, a burrice motivada e/ou a má fé não poupam sequer as velhas raposas da política e da academia!*
PS: Agora estou entrando em uma reunião com judeus brasileiros que moram em Tel Aviv. Depois eu conto a vocês.
[ postado pelo deputado feceral (PSOL) no Facebook em 08|01|2015 ]