Nós, muçulmanos, devemos combater o culto à morte

 

Escrever no jornal israelense Haaretz sobre a necessidade de uma reforma islâmica, talvez possa desacreditar estes argumentos aos olhos de muitos correligionários muçulmanos. A despeito do fato de quase um quarto dos israelenses professar a nossa fé.

A cada nova atrocidade perpetrada em nome do islamismo, a nossa religião se torna mais associada à barbárie, que acaba se parecendo inerente a ela. Isto é uma lástima, mas à luz da insanidade de muitos indivíduos, organizações e governos que invocam o Islã, é tristemente compreensível.

 

Terrorismo não é Islã

Muçulmano se solidariza às vítimas dos atentados em Paris

 

Para sermos levados a sério pelos não-muçulmanos, a primeira coisa de que precisamos é reconhecer, como muçulmanos, que esta conotação negativa, rotulada sobre a nossa fé  na consciência coletiva contemporânea,  é previsível.

Ironicamente, muito do conservadorismo hoje associado ao Islã vem de práticas beduínas pré-islâmicas que o nosso Profeta contestou por toda a sua vida. E de hábitos culturais locais que, de fato, nada tem a ver com a fé islâmica. Ao contrário, o que caracteriza a revelação Qurânica é sua natureza inovadora em termos espirituais e éticos. E até o seu dinamismo épico que, na verdade, está longe de ser normativo e prescritivo.

Lamentavelmente, a vasta maioria das instituições muçulmanas do mundo destila e aceita, atualmente,  valores e idéias obsoletos.

A argumentação encontrada após cada atentado nas redes sociais –  de que “esses atos violentos de terror não tem nada a ver com o Islã” –  muitas vezes lastreada em trechos do Alcorão, precisa ser contrastada com a reverência que fazem acadêmicos e universidades respeitados a livros como o ‘Min Haj el Talibin’ (do renomado jurisconsulto Araf el dine el Nawawi), que recomenda o apedrejamento de adúlteros, ou o ‘Es sarim el maslul ala chatim el rasul’ (de Ibn Taymiyya) e o  ‘Es seyf el maslul ala men sabba al rasul‘ (de Taqi al-Din al-Subki ). Os dois últimos títulos podem ser traduzidos como “A espada será empunhada contra aquele que fala mal do Profeta”.

As prescrições precisas que tais livros contêm sobre como punir a blasfêmia, a apostasia e o adultério são base não apenas para os argumentos do ISIS. Tal tipo de islamismo é apenas uma versão mais vigorosa de interpretações adotadas por vários países muçulmanos conservadores.

Na virada do século XX, o ensaio do “intelectual” francês Joseph de Gobineau sobre a desigualdade das raças humanas era considerado como “ciência” por muitos conservadores na Europa. Mas, desde então, foram removidas das prateleiras de “História” ou “Antropologia” das bibliotecas.

É hora de fazer o mesmo com boa parte dos clássicos do currículo islâmico.

Simultaneamente, a tradição islâmica precisa se reconectar com o seu espírito inovador original.  Não por transformação ou reinvenção, mas tendo como foco os fins originais da revelação Qurânica:

– o primado do conhecimento, educação, ciência, estética, dos princípios fundamentais da liberdade, justiça social e do respeito à Lei.

A divisão binária de todas as coisas e ações entre halal e haram, como a prática do Islã contemporâneo prega, está em contradição profunda com o seu espírito.

O empobrecimento estrutural do pensamento islâmico e a ausência do recurso ao ijtihad  – o esforço pessoal de interpretação –  elementar e saudável, estão diretamente ligados à falta de liberdade observadas na maioria das sociedades islâmicas.

– a abertura ao mundo e ao Outro, especialmente às outras religiões.

É chocante que mesmo os mais prestigiosos centros de estudos no mundo islâmico, não aprofundem seu conhecimento sobre os fundamentos das outras religiões e tradições. E que não forneçam aos seus alunos uma compreensão sólida sobre elas.

– O respeito à vida e sua celebração.

É hora de substituir a sacralização da morte e o culto mórbido, onipresentes em grande parte das sociedades majoritariamente muçulmanas, por um saudável amor ao ser humano.

– Uma igualdade ontológica entre homens e mulheres

Que nos estimule a quebrar a falocracia ultrapassada que caracteriza as nossas sociedades e ponha um fim à discriminação religiosa e secular e à marginalização sobre elas imposta.

Como cidadãos muçulmanos do século XXI, precisamos nos propor três objetivos principais:

Primeiro, é hora de questionarmos a legitimidade e a influência arrogante de certos países, política e socialmente atrasados, na definição do que é islâmico e do que não é, quem é bom muçulmano e quem não é.

Vamos nos reunir em algum lugar em 2016 para definir os contornos de uma interpretação progressista do Islã, firmemente arraigada no Século XXI, dando um papel particularmente importante ao Islã asiático, por razões elementares de demografia e representação democrática, mas também para muçulmanos da África sub-Saariana, Europa e Américas.

Segundo, é hora de parar de projetar paroquialismos culturais sobre dogmas religiosos: os muçulmanos em todo o mundo deverão ser capazes de entender, de forma bem mais clara, onde é que o Islã termina e onde a prática cultural nativa começa. Um website divulgado apropriadamente poderia ser um bom lugar para começar a ensinar aos nossos filhos esses limites.

Terceiro, vamos elaborar um documento que reflita os princípios acima, que as mesquitas e instituições islâmicas em todo o mundo possam conhecer e optar por adotar ou não.

Neste momento, atordoados pelos atentados de 13|11 em Paris, a nossa determinação deve ser inabalável.

 

FeFelix Marquardtlix Marquardt, francês e muçulmano, nasceu em 05|01|1975. É um dos oito fundadores da Al-Kawakibi  (Fórum Mundial por uma Reforma Islâmica) e do think tank Youthonomics.  Siga-o no Twitter: @feleaks

 

[ artigo publicado no Haaretz em 16|11|2015 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]

 

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