Entre o Caetano que não cedeu ao BDS e o que chorou pela tragédia dos palestinos, ficamos com os dois.
Os milhões de israelenses que desejam a paz – e condenam a Ocupação – precisam da voz e da energia de Caetano e Gil.
Os milhões de palestinos que desejam a paz – e rejeitam o terrorismo – precisam da energia e da voz de Gil e Caetano.
O caminho para o entendimento não passa por boicotes, mas sim pelo diálogo e o conhecimento mútuo.
A palavra e a melodia de ambos são um antídoto importante ao ódio e à violência que tomam aquela região.
Que sua próxima tournée seja compartilhada em cidades como Tel Aviv (Israel) e Rawabi (Cisjordânia ocupada).
E que possamos assistir, em breve, a um novo show inesquecível numa Jerusalém compartilhada entre 2 Estados soberanos e independentes – Israel e Palestina.
O verdadeiro sionismo não tem nada a ver com a manipulação que Netanyahu faz do Holocausto.
A política cega de Ocupação é a grande culpada pelo isolamento de Israel e pelo aumento do antissemitismo no mundo todo.
Caetano, mesmo os pessimistas nunca dizem nunca
[ por Alberto Dines em 10/11/2015 – edição 876 do Observatório da Imprensa ]
O texto de Caetano Veloso publicado na “Ilustríssima” da “Folha de S. Paulo” (domingo, 8/11) é um documento maior, intenso, a começar pela forma, em seguida pela entonação.
Radicais — tanto de direita como de esquerda — já não sabem escrever, ou talvez nunca souberam. Tropeçam nas fúrias, atrapalham-se com a exaltação, incapazes de concatenar e fazer sentido. Sem serenidade, perdem o jeito para se esmerar, polir e lustrar — frases, ideias, sentimentos, ações. Ao contrário do relato quieto e inquietante de Caetano Veloso.
Não se trata de um “discurso de ódio” como os fanáticos de plantão prontamente tentaram desqualificar esta peça corajosa e sofrida, escrita com o coração partido e a alma inteira.
Igualmente respeitosa, a “Folha” ofereceu à comunidade judaica no Brasil, em especial às suas novas gerações, uma reflexão – e certamente a oportunidade de um debate — que dificilmente encontrarão em vernáculo. Uma visão humanista que o dogmatismo religioso, a intolerância política e uma equivocada noção de pertencimento teimam em sufocar não apenas aqui, também nos quatro cantos do mundo. Assim como a diplomacia dos americanos e europeus tenta tirar Israel do bunker onde acabou metido, a Diáspora que alimentou sua criação precisa oferecer-lhe outras convicções.
Caetano Veloso certamente não o planejou, mas dentro de aproximadamente duas semanas, no dia 29 deste mês, será lembrado o 68º aniversário da aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Resolução 181 que determinou a Partilha da Palestina em dois estados, um árabe, outro judeu, mais a internacionalização de Jerusalém e o início de uma série de iniciativas de cooperação não muito diferentes das que a França e a Alemanha adotaram anos depois na preparação da futura União Europeia.
O que Caetano Veloso propõe com exemplar candura e extraordinário senso de justiça é completar a legitimação do Estado de Israel com a legitimação do Estado Palestino. Nada mais, nada menos. Não importa quem (na ocasião e nas décadas seguintes), tentou impedir a ferro e fogo a concretização integral da partilha do território. O que importa neste momento é a remoção do único obstáculo para consolidação final do projeto aprovado pela mais alta instância da comunidade internacional: o irredentismo da coalizão religiosa-direitista-nacionalista que governa Israel há mais de duas décadas.
O texto de Caetano Veloso não tem qualquer traço de antissemitismo, ao contrário, é afetuoso, reverente. As fontes e anfitriões na visita que ele e Gilberto Gil fizeram a Israel, eram israelenses (majoritariamente filhos de sionistas brasileiros que se estabeleceram no país), seus guias serviram nas forças armadas, portanto são reservistas – o que não os impede como cidadãos de assumir forte militância oposicionista.
Uma lástima que o radicalismo e a brutalidade de Benjamin Netanyahu os tenha contagiado a ponto de não distinguirem as enormes diferenças entre o atual premiê e o ex-presidente, Shimon Peres, o último dos “founding-fathers” do Estado de Israel.
O aniversário da partilha da Palestina pode ser a oportunidade para retornar e completá-la. O estadista gaúcho Oswaldo Aranha foi o artífice da histórica votação da ONU. Os poetas baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil podem ser os artesãos que ajudarão a transformar partilha em compartilhamento.
Único senão do histórico texto é a promessa final, categórica, definitiva, de jamais retornar a Israel. Espere, Caê, entre tantas perdas que hoje choramos restaram algumas esperanças, uma delas proclamada por um deprimido escritor, refugiado de guerra, que este observador encontrou uma única vez, há cerca de 75 anos e com ele convive há pelo menos 40. Stefan Zweig acreditava na inexorável convergência entre humanos. Suicidou-se por impaciência, porém nunca disse nunca
> leia também de Alberto Dines: “Sou Sionista”.
Segue a reprodução do artigo de Caetano Veloso:
Caetano Veloso: Visitar Israel para não mais voltar a Israel
fonte: “Visitar Israel para não mais voltar a Israel, por Caetano Veloso“, copyright Folha de São Paulo, suplemento Ilustrissima, 8/11/2015
Pressionado a não se apresentar com Gilberto Gil em Israel, Caetano Veloso visitou, com o amigo, áreas da Cisjordânia. Neste texto, ele relata a visão que teve da opressão aos palestinos. Um trecho de uma letra de Marcelo Yuka (“A Paz que Eu Não Quero”) sintetiza o sentimento que ficou da visita.
Chegar a Tel Aviv vindo da Europa é como voltar ao Brasil. A cidade tem o aspecto de uma das nossas capitais nordestinas, e o seu povo, o ar altivamente desencanado do carioca.
Desde a primeira vez que fui a Israel, o contraste da capital do país com as cidades europeias, expresso na arquitetura moderna indefinida e no jeito sensual de seus habitantes, me conquistou. Senti imediata familiaridade com a cidade praieira e ensolarada no verão mediterrâneo. Essa identificação me deixava totalmente vulnerável à força histórica que a cada passo eu era convidado a encarar. A consciência de que estávamos na Terra Santa, as marcas da fundação do país depois da Segunda Guerra Mundial, as experiências socialistas dos kibutzim, o renascimento do hebraico falado, a tensão da ameaça permanente de ataques de homens-bomba.
Voltei a Israel umas poucas vezes, com um intervalo muito maior entre a penúltima e essa de agora do que entre as anteriores. A primeira foi nos anos 1980. Nessa última, senti diferença desde a saída da França: nada das revistas minuciosas nem da separação em salas especiais dos passageiros que iam para lá. E, no aeroporto Ben Gurion, nem de longe houve a acolhida nervosa das primeiras visitas. Tel Aviv nos recebeu sem caras desconfiadas e, já nas ruas, sem os outrora indefectíveis (e, apesar de tudo, charmosos) soldados, dos dois sexos, cuidando de cada esquina. Essa ausência de sinais de defesa crispada fazia a cidade parecer-se mais com uma Fortaleza habitada por cariocas do que parecera anos antes. A sensação de estar “em casa” foi mais forte e comovente do que nunca.
Era difícil reconhecer que essa paz refletia o maior poder adquirido pelo Estado de Israel, sua certeza de que a cúpula de proteção construída por sua defesa está firme. Será, como diz Marcelo Yuka, a paz que não quero?
Essa pergunta não surgia facilmente em minha cabeça na noite de minha chegada. No dia seguinte, no entanto, ela não me abandonava. Acordei o mais cedo que pude para não me atrasar para o encontro com um grupo de israelenses críticos da política oficial, o Breaking the Silence, que me fora indicado por Jorge Drexler quando da apresentação do show com Gil em Madri. Drexler ouviu quão interessado eu estava em ver o que se passa na Cisjordânia e, filho de pai judeu, não só me deu dicas como prometeu pôr-me em contato com membros do movimento.
Dessa conversa em Madri surgiu o plano de uma visita guiada a partes da Cisjordânia onde se pudesse sentir o peso da ocupação israelense. Contei a Gil e ele disse que queria ir junto. Fomos todos, nós dois e as duas equipes de produção. Na van espaçosa, conduzida por um palestino, íamos nós mais o jornalista argentino Quique Kierszenbaum e Yehuda Shaul, o guia.
Yehuda falava com muita clareza, num inglês fluente de israelense filho de pais anglófonos. Disse ter crescido numa família conservadora. Fora soldado do Exército de Israel, um veterano da ocupação de territórios palestinos. Depois de vivenciar muitas situações de opressão, segregação e cotidianas monstruosidades, não pôde mais seguir vivendo sem denunciá-las e sem se opor publicamente a elas. Juntou-se a alguns colegas e com eles iniciou o movimento de permanente protesto. Ele chamou a atenção para o quipá que usa, disse-se judeu religioso e, à medida que a van começava a varar desertos, narrou atrocidades e explicou a situação geográfica e histórica da violência de seu país contra as populações da margem ocidental do rio Jordão.
Respondendo a uma pergunta de um dos nossos sobre como via a reação anti-Israel de outros grupos de muçulmanos, além da resistência palestina, Yehuda disse que continua disposto a matar e morrer por sua pátria, sempre que esta seja ameaçada por fanáticos que não admitam sua existência, mas que não aceita a ocupação de territórios palestinos porque ela “não é kosher”. Comparou a ocupação a um câncer que matará o Estado de Israel se não for extirpado a tempo.
Alguns apoiadores do BDS, movimento internacional de boicote a Israel, tinham nos procurado, a Gil e a mim, na tentativa de dissuadir-nos de ir a Tel Aviv. Pelo que ouvi da boca de Yehuda –e de Nasser, o palestino de Susiya que por ele nos foi apresentado– todas as queixas dos participantes do BDS são fundadas. O que os radicais desse movimento dizem sobre o Breaking the Silence é que este, embora crítico do governo de Israel, permanece sionista. O que Yehuda diz é que os do BDS, embora protestem contra o que ele próprio odeia, têm como pano de fundo a erradicação do Estado de Israel. O único comunicado que Gil e eu recebemos que sugere tal coisa foi o do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos. Eis uma amostra do tom do documento: “Nossa luta é por justiça, liberdade e igualdade. Nosso sindicato se soma ao movimento BDS por entender que esta é uma importante ferramenta pelo fim do Estado de Israel”. Izhar Patkin, um artista plástico israelense, me disse, em Tel Aviv, que acha boa a existência de qualquer um desses movimentos: eles fazem o barulho que a questão merece, gritam para o mundo o que ele já ouvia nos discursos de Yeshayahu Leibowitz há muitos anos.
COLETIVA
Antes de sairmos do Brasil, fui procurado por um cidadão israelense de origem brasileira, chamado Davi Windholz. Ele lera anúncio de nossa ida a Tel Aviv em minha página do Facebook e procurou entrar em contato via e-mail. Dirige uma escola para crianças palestinas e judias, posiciona-se à esquerda do establishment político, e queria marcar um encontro nosso com estudantes e grupos dissonantes da política oficial do país. Depois que já estávamos na Europa –na verdade já às vésperas de ir para Israel– chegou-nos um e-mail do promotor local propondo que déssemos uma entrevista coletiva à imprensa na Fundação Shimon Peres.
Eu, já interessado nas propostas de Drexler e de Windholz, não estava inclinado a aceitar o que o promotor propunha. Consultei Windholz por e-mail. Ele respondeu que Peres “é mainstream”. E concluiu: “Certamente tentarão usar vocês a favor de Israel, mas vocês saberão driblá-los”.
No entanto Gil, que, quando era ministro da Cultura, já tinha tido um encontro marcado com Peres que não se concretizou, decidiu-se pela aceitação da coletiva no prédio da fundação do ex-premiê, ex-ministro da Defesa e prêmio Nobel. Peres tinha sido o companheiro de Yitzhak Rabin (1922-95) nas mais avançadas tentativas de negociação com os palestinos, interrompidas pelo assassinato de Rabin por um jovem israelense fanático. Combinamos, então, que uma reunião com Windholz se seguiria à coletiva com Peres.
Mas a ida à Cisjordânia precedeu tudo isso. Na coletiva, a única pergunta realmente pertinente nos foi feita pelo jornalista brasileiro Rodrigo Alvarez, correspondente local da TV Globo. A ele pude responder que tinha ido a Susiya, levado por um ex-soldado do Exército israelense, e que isso tinha me abalado. A menção a Susiya (que estava nas manchetes dos jornais de todo o mundo por estar sofrendo agressões do Exército israelense, o que gerou comentário pouco amigável a Israel feito por um membro do Departamento de Estado americano) provocou um silêncio incômodo na sala.
O fato é que me senti triste nesses momentos na Fundação Shimon Peres. Saímos dali e fomos para a sala de recepções do hotel onde estávamos hospedados e lá encontramos Davi Windholz com sua turma de críticos das políticas israelenses. Lá estavam um grupo de mulheres judias e árabes que jejuariam por 50 dias em protesto contra os ataques a Gaza, que em julho faziam um ano; o músico David Broza; e uma plateia de pessoas (sobretudo jovens) que aplaudiram fortemente ao apenas ouvirem a palavra Susiya –o que contrastava com o silêncio incômodo dos presentes à coletiva na Casa Shimon Peres. E ovacionaram as palavras “parem a ocupação, parem a segregação, parem a opressão”, que finalizaram minha narrativa da ida à Cisjordânia.
CARTAS
Desde as cartas que nos enviaram Roger Waters e Desmond Tutu –e as visitas de dois jovens brasileiros também ligados ao BDS– comecei a procurar mais e mais coisas para ler sobre a questão israelo-palestina. Eu estava ainda fazendo apresentações do show “Abraçaço” e precisava usar o tempo restante em ensaios com Gil que permitissem a criação de um espetáculo minimamente profissional. Mas achava tempo para ler e ver vídeos. Com a carta de Windholz, redobrei as pesquisas.
Ao voltar ao Brasil, recebi e-mails com atualizações do Breaking the Silence. Numa das mensagens estava anexado um vídeo em que Nasser, o palestino com quem conversamos em Susiya, era surrado com pedaços de pau por jovens israelenses moradores de um assentamento.
É uma imagem brutal. Soldados do Exército de Israel assistem à cena impassíveis. Agora que uma terceira Intifada se esboça –e que Netanyahu se vê isolado não só pela oposição mas também por correligionários que o acusam de não conseguir proteger Israel– constato, de longe, que a paz que eu julgava ver dentro de Tel Aviv –e que começava a pensar ser a paz que eu não quero– era, como no entanto eu sabia o tempo todo, frágil, superficial e ilusória.
GAROTOS
Antes da viagem, eu tinha dito a Pedro Charbel e a Iara Haazs, os jovens do BDS com quem conversamos, que eu tinha sempre gostado tanto de Israel que me sentia como um israelense que se opõe às políticas de Estado do seu país. Iara é, ela mesma, israelense (judia brasileira criada em Israel), mas mesmo ela não se sentia à vontade com essa minha colocação. São garotos militantes, o que pode dar em formas altivas de intolerância.
Um amigo deles, Gabriel, estava em Susiya no dia em que fomos lá. Esquivo e de olhar inquisidor, exibia silenciosa impaciência com a sutileza de nossa situação de visitantes: eles nos queriam na luta clara dos que boicotam Israel e deploravam qualquer nuance, qualquer sugestão de complexidade. Eu quero a paz que se mostra desde sempre impossível. Mas agora eu a quero sentindo-me muito mais próximo dos palestinos do que jamais me imaginei –e muito mais longe de Israel do que suporia meu coração há apenas pouco mais de um ano. E quero que Gabriel, Iara e Pedro saibam disso.
Ao sair do Brasil, escrevi e-mail a Hany Abu-Assad, o grande cineasta palestino que nos deu “Paradise Now”, avisando da nossa ida e contando sobre a pressão que sofremos por parte do BDS. Ele respondeu que ficaria contente de poder nos ver: o tempo que passou no Rio lhe parecera um dos melhores de sua vida. Mas que preferiria que atendêssemos às exigências do BDS: “São meus amigos”, ele disse. No entanto afirmou que, se fôssemos assim mesmo, ele iria assistir ao show. Quando afinal fomos, ele mandou e-mail dizendo que já não poderia comparecer: estaria na Europa finalizando um novo filme. É um homem que, quando, em Salvador, lhe perguntei se era religioso, respondeu: “Nunca fui, não tenho fé, mas hoje me considero religioso muçulmano por razões políticas”.
Antes de entrar no palco em Tel Aviv, pensei em dedicar o show a Hany. Pensei também em reiterar a homenagem à memória de Franklin Dario, o judeu pernambucano que compôs “Ana Vai Embora”. Mas no palco, ao lado de Gil, diante da imensa plateia, decidi que deixaria o show falar por si mesmo. Na van em que fomos a Susiya, eu tinha perguntado a Yehuda o que ele acharia se eu gritasse “Break the Silence” durante o show. Ele ficou mudo por uns momentos e finalmente respondeu: “Não sei. Pode ser interessante; eu gostaria de saber como o público reagiria”. Na hora, fazendo grande esforço interno, optei por total silêncio político.
SEGREGAÇÃO
A lembrança da canção do Rappa veio habitada por cenas da segregação informal (e não poucas vezes formalizada “ad hoc”) que se exerce no Brasil. Quem estava vendo aquele acampamento palestino com bandeiras elevando-se acima das moradias provisórias era um grupo de brasileiros, capaz de achar a cena parecida com um assentamento do MST.
Três filhas de Nasser, duas ainda crianças, uma na puberdade (o que a levava a ter de usar véu) brincavam ao redor. Eu precisava ir ao banheiro e perguntei a Paulinha Lavigne o que fazer. Ela já estava muito mais enturmada com as meninas do que me seria possível calcular. Sem que houvesse nenhuma língua em que pudessem se comunicar com as palestinazinhas, as mulheres do nosso grupo já tinham conseguido dialogar com elas, que eram bonitas e sorridentes. Fui orientado a um banheiro isolado no relento. Gabriel, o jovem ligado ao BDS, contribuiu na indicação do caminho até lá.
Nasser tinha saído de carro para resolver alguma coisa não longe dali e, ao voltar, reuniu-se conosco sob uma tenda. Narrou as cenas de destruição de habitações pelo Exército de Israel e explicou os casuísmos legais usados pelo Poder Judiciário para a continuidade da violência da ocupação.
As favelas brasileiras ocupadas me vinham à mente. Eu não queria fazer um reducionismo político e usar um esquema único para avaliar questões brasileiras à luz da situação palestina, mas as imagens de fracassos pontuais das UPPs no Rio (não apenas o caso Amarildo) vinham à cabeça. Nós, os visitantes, não éramos estranhos às desumanidades que testemunhávamos no Oriente Médio. Era impossível não fazer paralelo com situações que vivemos no Brasil.
LOUCURA
Na internet vi discurso de um filho de general judeu, herói da Guerra dos Seis Dias, cheio da mais violenta oposição não só à política israelense mas à própria existência de Israel, fundando sua argumentação não naquela guerra mas na Nakba, a catástrofe que foi, para os árabes da Palestina, a fundação do Estado judeu. Vi uma mulher que dizia que não é razoável trocar paz por terra: troca-se paz por paz, ela repetia, querendo dizer um não às teses de acabar com a ocupação e os assentamentos. Vi muita loucura de ambos os lados.
Vi um desenho animado que expressava a proposta de dois Estados num único território (“2 States, 1 Homeland”), em que se sugere que toda a extensão que vai do Jordão ao Mediterrâneo seja compartilhada por árabes e judeus igualmente, cada grupo com seu governo. Há muitos israelenses conservadores dizendo que isso significaria afogar a população judia na imensa multidão árabe. Mesmo assim, é essa hipótese que Davi Windholz anuncia vir defender em palestras aqui no Brasil.
Mas o mestre que falou em judeo-nazismo, Yeshayahu Leibowitz (1903-94), um cientista que era também religioso, ao bradar contra o ministro da Suprema Corte israelense que tinha tornado legal a tortura de indivíduos árabes para fazê-los falar e, assim, manter Israel protegido, me impressionou mais do que todos.
Leibowitz não apenas foi um religioso que defendeu a separação entre religião e Estado e se antecipou aos inimigos de Israel ao detectar aspectos nazistas na política do país mas também, mantendo-se sionista, opôs-se violentamente à Guerra dos Seis Dias e, mais ainda, à invasão do Líbano. Foi também pioneiro em fazer o paralelo Israel/África do Sul. Eu teria dedicado nosso show à sua memória.
Gosto de Israel fisicamente. Tel Aviv é um lugar meu, de que tenho saudade, quase como tenho da Bahia. Mas acho que nunca mais voltarei lá.
CAETANO VELOSO, 73, é músico, compositor e autor de, entre outros, “O Mundo Não É Chato” (Companhia das Letras)