Discurso do escritor israelense David Grossman, veterano ativista do Movimento PAZ AGORA e principal orador na manifestação popular pacifista realizada em Tel Aviv, 16/08/2014
Estive nesta mesma praça há dois dias, na manifestação em apoio aos moradores do Sul. Quis estar com eles, ouvir sobre suas vidas duras. Havia muitos oradores por aqui e a maioria dizia palavras fortes e comoventes. Todos diziam algo como: “As coisas não podem continuar assim!”
Eu os escutava enquanto outros diziam coisas como “Deixe o Exército vencer!” e “Deixe o Exército acabar com eles!” e “Chegou a hora de eliminar o Hamas!”
Pensava que essas seriam pessoas experientes e sofisticadas, do tipo que sabe que nas atuais circunstâncias tal desejo não é verossímil – o que é comprovável por tudo o que aconteceu nesta guerra. Mas, ninguém lhes está mostrando outro caminho ou oferecendo esperança por um futuro melhor. Não restara nada a eles a não ser gritar numa desesperança crescente: “Deixe o Exército vencer!”
Não existem imagens de vitória nesta guerra. Em nenhum dos lados. Não há imagens de vitória, apenas visões de destruição, de morte e de sofrimento indescritível. Cada imagem deste campo de batalha miserável é a da profunda derrota de dois povos, que pouco aprenderam a falar um com o outro, mesmo após um século de conflito, em alguma linguagem fora da violência.
Nas atuais circunstâncias, sob os limites existentes – os limites da força, da moralidade, da pressão internacional – não há solução militar para o conflito entre Israel e Hamas!
Não existe solução militar que traga fim ao sofrimento dos moradores do Sul, ao terrível medo em que vivem. Não há solução militar para a angústia dos palestinos em Gaza.
Em resumo: até que não se solucione o sufocamento do povo de Gaza, nós em Israel tampouco seremos capazes de respirar livremente.
Não mais um cessar-fogo limitado, local e restrito, mas um esquema para uma mudança nas relações entre as partes – um plano grande e generoso, de visão ampla, contendo propostas para uma melhoria genuína nas vidas dos moradores de Gaza, para reviver suas esperanças por um futuro melhor e oferecer um sentimento de auto respeito e dignidade humana.
Claro que é possível barganhar sobre cada pequeno parágrafo, sobre dez caminhões a mais ou a menos atravessando a passagem, sobre um quilometro a mais no espaço autorizado para a pesca em Gaza. Mas o que precisa mudar, após esta guerra, é a forma de encarar as coisas.
Para mim, esta é uma das principais razões pela qual estamos reunidos aqui nesta Praça Rabin. Para recordar aos que negociam em nosso nome com os palestinos no Cairo que, mesmo que as pessoas de Gaza sejam inimigas hoje, serão sempre nossos vizinhos.
Nós sempre viveremos lado-a-lado e isto tem significado especial, pois a derrota de meu vizinho não é necessariamente a minha vitória. E o bem-estar do meu vizinho não implica no fim do meu bem-estar.
Mas, acima de tudo, reunimo-nos aqui nesta noite para demandar que o principal dispositivo, no acordo ora discutido no Cairo, seja o seguinte: que após a estabilização do cessar-fogo, Israel e a Autoridade Palestina, representada pelo governo de unidade palestino, abrirão conversações diretas com o objetivo de trazer a paz entre os dois povos.
É como tem que ser, sem hesitação, sem gaguejar, sem pesares. Porque se, após uma guerra como esta, após seus terrores e seus resultados, Israel não promover tal passo, existirá apenas uma explicação: que Israel prefere a certeza de repetidas guerras aos riscos envolvidos nos compromissos que possam trazer a paz. E saberemos que o atual líder de Israel não está disposto, não arrisca entrar na trilha da paz porque teme pagar o preço, especialmente o da retirada da Cisjordânia e de evacuar os assentamentos.
Amigos, este momento de decisão pode chegar amanhã ou talvez no dia seguinte, ou daqui a um mês. Mas, de repente, talvez descubramos que está muito próximo. Será um tipo de teste que nos mostrará, da forma mais cristalina, se Israel está, com toda vontade, tentando chegar à paz ou se procura uma nova guerra.
82 mil soldados de reserva participaram da guerra. Alguns deles talvez estejam aqui, hoje, como civis. Inúmeras vezes nós os ouvimos dizer às câmeras e microfones: “voltaremos a nos ver em um ou dois anos…”
Tais declarações são muito tristes. É claro para esses jovens, com uma horrível certeza, que cedo ou tarde serão sugados novamente para este inferno. É terrível, terrível escutar jovens com toda a vida pela frente, gente com coragem para entrar em casas e túneis minados, ouvir que estão dispostos a aceitar, como um mandamento divino, que sua própria vida só lhes está emprestada até a próxima data de vencimento.
Não é menos terrível ver como tantos israelenses permanecem passivos, com um governo que por anos não fez praticamente nada para solucionar o conflito. Como é, diga-me, como é que nós, os filhos e cidadãos de um Estado que em todas outras áreas de sua vida é empreendedor, criativo e inovador…. Como é que concordamos, nesta área mais fatídica de nossa existência, em ser colaboradores da desesperança e do fracasso?
Caros amigos, chegou a hora de acordar. Esta guerra expôs, talvez mais claramente do que nunca, os processos perigosos que estão caindo sobre Israel por causa da desesperança, por causa do medo, por causa de sentimento de que não haja saída.
O tempo chegou para que despertemos e entendamos que, enquanto nós dormíamos, coisas más estiveram acontecendo aqui. Irromperam o chauvinismo, o fanatismo e o racismo. Sem vergonha. De uma vez. Conseguiram impor uma ditadura do medo sobre amplas faixas do público.
Nenhuma palavra de condenação veio da boca do primeiro-ministro nem de qualquer outro ministro de destaque… Será muito difícil dominar as forças da escuridão. Elas já estão aqui.
Estas forças fascistas são acompanhadas por outras que as nutrem e se nutrem delas. Grandes diferenças sociais, pobreza, anos de discriminação e corrupção.
Amigos, todas estas coisas criam uma atmosfera de desintegração dos laços que deveriam manter uma sociedade saudável. São túneis que minam a frágil democracia de Israel.
São precisamente os fenômenos e processos que possivelmente muito em breve, mais breve do que pensamos, podem transformar Israel de um Estado progressista, com a face voltada ao futuro, em um lugar extremista, militante, xenofóbico, num país pária.
Quero dizer aqui algo para os que passaram o último mês exaltando a “força interior de nossa nação”. A força interior da nossa nação significa, entre outras coisas, entender que os cidadãos árabes de Israel estão sofrendo atualmente uma severa e intolerável aflição. Eles veem sua gente – às vezes seus próprios familiares – ser morta e ferida aos milhares. Às vezes, a pessoa que atira no seu parente é o filho do seu próprio patrão ou algum trabalhador vizinho.
E aquele que se gaba de que nós judeus israelenses somos a nação mais humana, os mais sensíveis aos problemas dos outros humanos, por favor explique como é que negamos a cidadãos árabes de Israel – médicos e enfermeiras que cuidam de nós em nossos hospitais, trabalhadores, mecânicos e estudantes, cozinheiros, artistas e trabalhadores de construção, que conosco vivem e com os quais viveremos, – como recusamos permitir-lhes, ao menos, o direito de protestar? Nossa nação está tão fragilizada que não tem espaço para tais expressões humanas de ódio e pesar?
Amigos, vocês que vieram em grande número a esta praça, e que estão em número ainda maior em casa. Vocês, com todos os seus pontos de vista, todos os partidos, todas orientações religiosas. Suas vidas estão coladas e entrelaçadas com a vida do Estado de Israel. Aos seus olhos – como aos meus – este é o lugar mais significativo para viver e para criar nossos filhos!
A vocês que talvez pertençam à maioria política hoje dominante, mas que sentem que um grande equívoco está tomando forma aqui, numa escala histórica – todos vocês que percebem como, pelas nossas próprias mãos, estamos perdendo o nosso lar para o fanatismo e o ódio que nos deixou paralisados, num impasse de 55 anos que impede de nos salvarmos – eu lhes digo:
Os alarmes que soaram em nossos ouvidos nesta última guerra nos impelem a forjar novas parcerias para quebrar o impasse, superando os interesses estreitos de nossos campos.
Eu acredito que ainda existe uma massa crítica de gente aqui, pessoas da ampla maioria israelense, pessoas da esquerda e da direita, religiosos e seculares, judeus e árabes, de todas comunidades e classes, gente que não suporta mais violência e extremismo, com sabedoria e compromisso com a vida, moradores de Tel Aviv e Ofra e Ashkelon e Jerusalém e Sakhnin e Be’er Sheva, que ainda são capazes de se unir – com inteligência e sem ilusões – em torno de três ou quatro pontos de acordo.
Por exemplo, que Israel é o Lar Nacional do Povo Judeu e um Estado Democrático, onde todos os seus cidadãos têm direitos absolutamente iguais. E que fará todos os esforços para resolver o conflito com os seus vizinhos.
Três ou quarto pontos que são o coração do assunto, um tipo de teste que todo cidadão israelense pode responder para si mesmo quando define onde se situa e a qual campo pertence.
Se esta noite produzir tal chamado, que este seja recebido por ouvidos atentos. Que junte forças e mobilize cada vez mais pessoas.
Esta é a nossa opção!
Esta é a nossa esperança!
Discurso do escritor israelense David Grossman, veterano ativista do Movimento PAZ AGORA e principal orador na manifestação popular realizada em Tel Aviv, 16/08/2014 – tradução livre de Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR.
Veja a íntegra em hebraico >
Somos muitos mais do que pensamos, mais do que acreditamos
Fonte: http://www.ynet.co.il/articles/0,7340,L-4559271,00.html