Entrevista de Amós Oz por Niva Lanir
Entre os personagens do novo livro de histórias curtas de Amoz Oz, aparecem Zvi Provizor, um jardineiro pessimista; David Degan, professor e marxista devoto, que reserva seu amor para a chazanut (canto litúrgico) e mulheres; Henya Kalish, cujo rico irmão quer bancar estudos na Itália para seu filho Yotam, enquanto este se pergunta se teria coragem para deixar o kibutz e partir para o mundo de mãos vazias; Nina Sirota, jovem de opinião, que não suporta ficar com seu marido nem por mais uma noite; e Martin Vandenberg, sobrevivente do Holocausto e sapateiro, cujo orgulho e alegria é o esperanto.
Alguns dos personagens de Entre Amigos (lançamento Keter Books, em hebraico) são reformistas crônicos do mundo, ainda que alguns deles entendem que tal tarefa está além de suas capacidades e apenas remendam o que aconteceu de errado nas suas vidas. Outros, como Nina, esperam que “nos próximos 10 ou 20 anos, o kibutz irá se tornar um lugar bem mais tranquilo. Agora, todas as cordas já estão esticadas até o limite e a máquina toda ainda está se agitando com muito esforço”.
Enquanto isto, no Kibutz Yikhat, ao final dos ‘50s, pessoas vagam pelas trilhas e suas vidas ficam emaranhadas e se partem. Amós Oz os observa – seus medos, agruras, esperanças e anseios com um olhar sóbrio, com toques leves e delicados, com empatia. Oferece aos seus leitores uma forma de homenagem ao seu próprio passado, ou talvez recordações e despedidas vindas de longe. Afinal, a máquina há muito parou de se agitar.
Em 1965, 47 anos atrás, Amós Oz publicou seu primeiro livro – Where the Jackals Howl [Onde os Chacais Uivam] – uma coleção de histórias tendo como cenário a vida de kibutz. Eventos sérios aconteciam nos campos da comunidade coletiva e por trás das portas fechadas das suas casas. Havia pouco folga, se é que havia alguma, no Jackals. As histórias de Entre Amigos foram escritas num tom diferente e com um tipo muito diverso de olhar.
“Fazia uns 40 anos que tinha escrito Where the Jackals Howl, diz Oz, que fará 73 anos em maio, “mas lembro que as histórias eram sobre paixões fortes. As histórias em Entre amigos são sobre renúncia e ansiedade. O kibutz é o mesmo kibutz. Existe uma cerca. O que está dentro da cerca é iluminado, o que está de fora – os pomares, os wadis [riachos secos] e as ruínas da aldeia árabe – ficam no escuro. No primeiro livro, o olhar era mais pelo lado de fora, enquanto aqui o foco é mais interior”.
1ª parte – Vida no kibutz
Yikhat é um nome estranho para um kibutz. Por que Yikhat?
Escolhi este nome por causa da associação distante [em hebraico] com algo preciso e enfadonho. O primeiro ideal do kibutz era preciso: transformar instantâneamente a natureza humana. Efetivamente, eles [os fundadores] assentaram-se como num acampamento de jovens, na crença inocente de que teriam para sempre 18 ou 20 anos.
Um acampamento de jovens que haviam se libertado dos pais, de todas as proibições e inibições do shtetl [aldeia de judeus na Europa Oriental] e da religião judaica – um acampamento no qual tudo é permitido, inundado por um êxtase permanente, onde a vida está sempre num pico. Você trabalha, discute, ama e dança até perder as forças. Era infantil, claro.
Com o tempo, tornou-se tedioso. E então, o que aflorou foram as constantes da natureza humana. A vulnerabilidade, o egoísmo, a ambição, o materialismo e a ganância. Foi um sonho abandonado, imaginando que seria possível triunfar sobre todas aquelas forças, renascer e criar um novo ser humano sem as limitações do velho.
Como em tudo que escrevo, a fonte de Entre amigos é a curiosidade. Levanto todas manhãs às 5 [em Arad], caminho por meia hora pelo deserto, volto para casa e tomo uma xícara de café, sento à mesa e me pergunto o que diria eu se fosse ele, o que faria se fosse ela.
Acho que uma pessoa curiosa é um pouco mais moral do que uma que não é, porque às vezes entra na pele de outra. Acho que uma pessoa curiosa é até uma melhor amante do que uma que não o seja. Mesmo a minha abordagem política para a questão palestina, por exemplo, saltou da curiosidade. Não sou um especialista em Oriente Médio, nem um historiador ou estrategista. Apenas me perguntava, desde muito jovem, como eu seria se fosse um deles.
Então, é isto o que faço – levanto de manhã e me pergunto: E se…? É assim que vivo e assim que escrevo. E é assim que também nasceu este livro. Da curiosidade que saltou em mim, sobre pesonagens que vêm de não sei onde e começa a me coçar.
O livro foi escrito como uma despedida do kibutz?
A verdade é que eu nunca deixei completamente [o kibutz] Hulda. Muitos dos meus sonhos acontecem ali, refletindo uma relação não resolvida com o kibutz.
Eu não saí abruptamente. Saí por causa da saúde do meu filho Daniel. Havia algumas coisas que não me agradavam na vida do kibutz. Mas sinto a ausência das coisas de que gostava. E neste livro procurei voltar e olhar para elas. Especialmente para a solidão de uma sociedade na qual (supostamente) não havia espaço para solidão. Em algumas das histórias, é retratada uma situação de “quase toque”. As pesoas quase que se tocam, mas algo as bloqueia. Como na pintura de Michelângelo onde as pontas dos dedos quase se tocam.
Tenho muita curiosidade sobre a solidão e o encanto, ou por momentos de encanto em meio à solidão, porque descrevem a condição humana. As histórias se desenvolvem num kibutz, mas falam de situações universais, sobre as forças mais básicas da existência humana. Sobre solidão. Sobre amor. Sobre perda. Sobre morte. Sobre desejo. Sobre renunciar e sobre ansiar.
Na verdade, sobre as questões simples e profundas familiares a qualquer pessoa.
Conheci um velho kibutznik – Ephraim Avneri. Eu gostava muito dele. Ephraim Avneri costumava dizer: ‘Durante os primeiros dias do kibutz, eu era sozinho como um dedo’. Eu não entendia isso. Afinal, o dedo é parte de um grupo. Até que entendi: quando um dedo está ereto e os outros dobrados, a solidão é dobrada.
É muito difícil escrever sobre gente boa. É muito mais fácil escrever de pessoas que são perversas, perturbadas ou depravadas. Este livro é sobre gente comum que perdeu alguma coisa. Que não sabe o que, nem onde, mas está procurando. Também há histórias sobre a ambição que muda o mundo. Sobre os que querem reformar o mundo e sobre a tragicomédia de reformadores do mundo. Gente que acredita que se apenas segurassem um cordão de sapato e o puxassem, seriam capazes de mudar o mundo.
No enterro de Moshe Hess, um dos veteranos de Hulda, com o túmulo cercado por ‘gente velha’ dos ’60 e ’70, rostos com as cabeças cobertas, um dos jovens explodiu – ‘Vocês tem de saber que são os judeus mais maravilhosos que produzimos desde a destruição do Templo. Nenhum judeu antes carregou em seus ombros o que vocês carregam e nenhum o fará despois de vocês’. Em Entre amigos, olho para essa gente mais uma vez. Não apenas para a carga que carregaram. Também para o seu fanatismo, seu dogmatismo e sua devoção quase-religiosa.
Em Um Conto de Amor e Escuridão você escreve: ‘Aí, na idade de 14 e meio, alguns anos após a morte da minha mãe, matei meu pai e todos de Jerusalém, mudei meu nome e fui sozinho para o kibutz Hulda para viver ali sobre as ruínas’. Como um menino de 14 anos e meio toma uma decisão tão complicada? E como lembra sua chegada a Hulda?
Fui para Hulda para me rebelar contra meu pai. Queria ser tudo aquilo que ele não era e não ser o que ele era. Ele era um estudioso, decidi ser motorista de trator. Ele era de direita, tornei-me um socialista. Ele era baixo, decidi ser muito alto. Esta não funcionou.
Cheguei sozinho, com uma grande mochila que eu mal conseguia carregar, e fui procurar Ozer Huldai, o diretor da escola. Era assustador morar num quarto com dois estranhos e sair da cama às 5:30 da manhã para trabalhar
Havia um campo de beterrabas em Hulda, e tínhamos que arrancá-las da terra. As beterrabas eram grandes e eu era pequeno. Imaginava que seria duro vencer um dia de trabalho, mas não tanto. Perigo de vida. Martírio. Após 10 beterrabas, sabia que não ia conseguir, mas eu me dizia: tenho que fazer. Ficava atrás da linha [dos trabalhadores] porque todos eles eram grandes e bronzeados e robustos, enquanto eu era fraco e pequeno. O mais duro é que eu ficava atrás até das meninas. É difícil em qualquer lugar ser o menino fraco, mas é ainda pior numa sociedade que exalta a resiliência e a resistência. Foram tempos duros. As pessoas caçoavam de mim. Faziam graça, me agrediam.
Você era o que se conhece na linguagem do kibutz como ‘garoto de fora’…
Eu era um garoto de fora, mesmo antes de chegar a Hulda. Ser um garoto de fora é uma condição existencial, não uma condição no kibutz.
Como você escolheu o nome “Oz” [no lugar do sobrenome original Klausner] ?
Aos 14 anos e meio, Oz [“força” ou “poder” em hebraico] era exatamente o que me faltava. A escolha do nome foi um assobio no escuro, para me encorajar.
Foi correta sua decisão de viver em Hulda “sobre as ruínas”?
Não me arrependo disto nem por um segundo. Lamento algumas das experiências que meus filhos tiveram no kibutz. Houve algumas ocasiões duras, mas deixei Hulda sem raiva. Para mim, o kibutz foi a universidade mais avançada sobre a natureza humana. Passei 30 anos com 300 pessoas numa proximidade íntima.
Eu via tudo – eles e suas vidas – e conhecia seus segredos. Se eu tivesse passado 30 anos em Tel Aviv ou New York, não teria tido a menor chance de me tornar tão intimamente ligado a 300 almas. O preço é que eles sabiam sobre mim mais do que eu gostaria que eles soubessem. Mas este é um preço razoável. Em termos do que escrevo, ou aprendi no kibutz muito do que sei sobre a natureza humana.
Existem algumas descrições impiedosas em Entre Amigos. A culpa é do kibutz?
Alguém que vive numa sociedade comum e tem uma infância nojenta culpará os pais. A mesma pessoa, se viver no kibutz com as mesmas crianças nojentas, culpará o kibutz. Alguém que viva numa sociedade regular e não satisfaça suas ambições culpará a si próprio ou o patrão. Se viver no kibutz, irá culpar o kibutz.
Diferentemente de outros, eu não mato mais vacas sagradas. Houve um tempo em que o fazia. Não hoje. Em qualquer estábulo existe uma velha vaca doente cercada por um rebanho de animais exultantes. Eu fico sempre do lado da vaca. Não é por que eu não saiba do fedor que a vaca põe para fora. Tampouco porque eu a cultue. Mas entre a vaca e e os açougueiros que ficam em volta – eu prefiro a vaca. Eu estou falando de sionismo, de kibutz e de movimento trabalhista.
Em seu livro de memórias Um Conto de Amor e Escuridão, Oz descreve suas ansiedades como escritor novato. Ler Hemingway e Remarque elevou seu espírito, mas também o encheu de receio. Não havia tido as suas experiências tumultuadas de vida, de guerra e de luta pela liberdade. “Ninguém que não tivesse experienciado aquele mundo poderia receber nem meia autorização temporária para escrever histórias ou romances”, escreveu. Mais ainda, um escritor precisava viver num “lugar de verdade” Paris, Madrid, New York, Monte Carlo. “Mas aqui, no kibutz, o que havia? Um galinheiro, um celeiro, casas de crianças”…
Oz encontrou a solução para este problema em Winesburg, Ohio, uma coletânea de histórias de Sherwood Anderson publicada em 1919. Em Um Conto de Amor e Escuridão, Oz observa que o trabalho de Anderson “era uma sequência de histórias e episódios que nasciam umas das outras, conectando-se entre si, particularmente porque todas elas se davam numa única pequena cidade provinciana, pobre e esquecida. Era habitada por gente simples: um velho carpinteiro, um jovem sem compromisso, um dono de hotel e uma camareira. As historias também se conectavam umas às outras porque os personagens passavam de história em história: Os personagens centrais de uma história reapareciam como coadjuvantes em outra”.
Os personagens e eventos em Winesburg, Ohio eram o que Oz “supunha não terem lugar na literatura”. Eles ficavam, pensava até então, abaixo de uma faixa de aceitabilidade”.
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