A Alberto Dines pelos oitenta e por não ter permitido esquecer Zweig.
Manhã de carnaval do ano 2012. Dia ensolarado e quente em Petrópolis, bem perto do lugar onde está enterrado Stefan Zweig e, ao seu lado, Lote Altman, nascida em Katowice, neta de um rabino de Frankfurt que, refugiada em Londres, apaixonou-se pelo escritor a quem se entregou pelo resto da eternidade. Entre cruzes e jazigos em forma de catedrais góticas, perto do túmulo dos príncipes da casa dos Habsburgos e longe da Europa que sonhava unificada, Stefan foi enterrado em Petrópolis apesar de preferir o rio de janeiro como expôs por escrito ao seu editor.
Seria uma referencia ao cemitério judaico?
Em 22 de março de 1942, uma semana depois do carnaval, a algumas quadras daqui, no bairro do Valparaiso, Stefan Zweig, o escritor mais lido das primeiras décadas do século 20, sofrendo intensamente a guerra que destruía seus sonhos humanistas, apressado em conhecer a paz, havia decidido tomar o atalho do suicídio para sair da Historia uma vez mais. Avesso a qualquer tipo de nacionalismo, desprezava a diplomacia internacional que iludia os cidadãos construindo guerras por baixo das finas toalhas de linho e, horrorizado frente ao destino do seu povo por quem sofria, decidiu partir. Numa manhã como a de agora, há setenta anos, ele ultimava os preparativos, organizando cartas e documentos como um hóspede que deixa o quarto arrumado para não dar trabalho ao anfitrião.
Ao meio do dia de um sol quente da terça-feira engordada de blocos, fui visitar Stefan Zweig em companhia do amigo Jaime Leibovitch. Jaime se protegia em baixo do chapéu de Panamá enquanto eu caminhava ao seu lado usando o gorro colorido que me serve de kipá, querendo redescobrir o caminho até o túmulo do escritor. Lembrava que era perto de um terreno coberto de capim com uma cruz fincada, parecendo o quadro da primeira missa do Brasil. Avançando no labirinto, encontrei um retângulo negro que destoava da diversidade arquitetônica dos mausoléus dos mortos locais. Espremido entre sepulturas plantadas em solo próprio, despontavam as letras estrangeiras da grafia hebraica de minha infância. Eram eles. Stefan e Lote em seu último exílio.
Meu segundo olhar percebeu sobre o mármore as pedrinhas que indicavam outras visitas. Surpresa. No paraíso tropical ainda existe quem se lembre de Zweig a ponto de inclui-lo na contagem dos que contam. Doze pedrinhas. Três pessoas no mínimo. Um bom número em se tratando do Eldorado da hospitalidade sem discriminações que Stefan via através de seu olhar de perseguido. O que ele não sabia é que temos a memória curta, característica que nos ajuda a construir a ilusão do país sem preconceitos. Em seguida percebi que só havia pedrinhas do lado de Stefan. E para Lote, nada? Apagada na morte como em vida? Ninguém para se lembrar de inclui-la? Comentei com Jaime e continuei fotografando, até que reparei que ele se aproximava com três cascalhos recolhidos do caminho e os colocou sob o nome de Lote, trazendo-a de volta ao rol dos que contam em Israel. Momento supremo, como pensava Zweig. Emocionei-me com o gesto poético, simbólico, único, decisivo. Jaime se limitou a um sorriso quase invisível enquanto eu, entusiasmado, lhe falava sobre o candelabro enterrado que ele acabara de acender num gesto despretensioso.
O Candelabro Enterrado é uma “lenda” que Stefan publicou em 1936 e na qual narra a saga imaginária do candelabro sequestrado do templo de Jerusalém por Tito, o construtor daquele arco que os turistas contemplam de passagem quando vão a Roma. Com a queda do império, roubado sucessivas vezes pelos vitoriosos da vez, o candelabro, Menorah em hebraico, passa de mão em mão e é seguido por judeus de Roma que não querem perde-lo de vista. Metáfora desvendada pelo próprio autor, os judeus sobrevivem aos impérios graças ao seu desapego da terra e do nacionalismo fanático e destrutivo. Mantendo-se unidos pelos ideais humanistas que moram nos pensamentos e alimentam o sentimento de pertencimento a um povo à margem da política, eles se tornam indestrutíveis apesar dos alemães queimarem os livros de Zweig em praça pública. Permanecendo ao largo da Historia, os judeus se transformam num exemplo de como é possível viver sem fronteiras e fanatismos, como ele diz em carta a Martin Buber.
Salvo das mãos bárbaras dos povos que só vêm o seu ouro sem perceberem o brilho da sua luz humanista, o candelabro, afinal, retorna à terra de Israel levado por um herói de noventa anos que, menino, viu a Menorah sair de Roma no navio dos conquistadores. O judeu Idoso chega a Yafa trazendo o tesouro disfarçado dentro de um caixão a ser enterrado na Terra Santa segundo o antigo costume. Junto a outros mortos ele aguardaria a hora mágica em que um agricultor pudesse descobri-lo em seu ataúde de tempo, fazendo-o “ressuscitar” num nova era sem nacionalismos enlouquecidos e radicalismos embrutecedores. Ideia que remete ao Talmud, quando num debate de sábios um deles afirma que a diferença entre o mundo em que se vive e o tempo messiânico é tão somente a dominação dos impérios. Os impérios, as guerras e a opressão de um povo pelo outro marcam a diferença entre este mundo e o que há de vir. Sábia percepção daqueles sábios hebreus de bendita memória.
Sete ramos do candelabro leio mais de uma vez no livro com cheiro de mofo, até que a palavra salta das folhas amareladas e me convoca a enxergá-la. Ramos são “zweigen”, me diz uma voz interior recordando a palavra dita em Yidich pela mãe, mandando o menino apanhar o Zweigale, um galhinho solto para rabiscarmos letras na terra arenosa do Campo de Sant’Anna. Malka foi a primeira pessoa a me falar em Zweig: “ele se matou porque não aguentava mais a sujeira do mundo”. E se Zweig fosse um ramo do candelabro? Comento com o Jaime pensando na mãe e na carta de despedida do escritor que apostava no humanismo num tempo em que esta palavra ainda tinha valor real.
“… seriam necessárias forças excepcionais para um recomeço, e as minhas mãos estão esgotadas pelos anos de errância sem fim. Assim, julgo preferível dar fim, no momento certo e de cabeça erguida, a uma vida para a qual o trabalho intelectual sempre representou a mais genuína alegria, e a liberdade individual, o bem supremo na Terra. Saúdo a todos os meus amigos! Que ainda possam ver a aurora após a longa noite! Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes¨
Impaciente, ele parte e nos precede. Como o candelabro, Stefan anuncia a luz da alvorada após a longa noite que um dia, ele sabia, teria fim. Como judeu sem pátria e sem fronteiras, só palavra e ideais como Jeremias, com quem se identificava a ponto de comentar, em carta a Buber sobre a obra em que retratava o profeta durante a destruição de Jerusalém, que era “a integralidade de minha profissão de fé”. Derrotado na guerra, mas vencedor nos princípios resta ao profeta a mesma crença nas palavras que permitiram a Zweig desfrutar da “liberdade absoluta entre as nações”.
Sonho de um judeu vienense que escreveu essa peça teatral durante a Primeira Guerra, num tempo em que ainda podia afirmar a sua liberdade nômade. Mas, desta vez era diferente. Errante, mas esgotado num caminho que vinha de longe, resolveu partir na frente, de tão ansioso que estava por encontrar a paz sem morte que sobreviveria em sua herança de palavras. O seu trabalho intelectual. Nosso legado de leitores. Seus amigos.
Impaciência. Detalhe que quase escapa a quem lê a frase de despedida: “eu, demasiadamente impaciente vou-me antes”. Zweig não parte como quem quer matar a vida insuportável. Zweig anuncia que a sua ida apressada se refere á impaciência em aguardar o dia em que luz triunfará. Ele não foge, vai ao encontro. Quer vê-la primeiro e por isto, parte de maneira individual como sempre queria, fora do tempo coletivo da espera. Como o candelabro ele se recolhe para despertar no final do exilio, quando Israel se reencontrar a si mesmo. Um acerto final com as suas posições contrarias ao nacionalismo judaico? Um novo olhar sobre a história judaica ao considerar o fim do exilio como uma solução contraria ao seu sonho internacionalista igualmente inspirado no destino judeu?
Reconhecendo no gesto de Stefan o suicídio de um mártir que se mata para afirmar o resto de vida que ainda possui ao tomar conhecimento do suicídio, o Rabino Tzekinosky, do Grande Templo na Rua Tenente Possolo, convoca os membros da Hevre Kadisha, a Santa Irmandade que administrava o cemitério e juntos seguem para Petrópolis com a intenção de resgatar o morto e enterra-lo no cemitério judaico de Vila Rosali sem as exclusões que o ritual reserva aos suicidas. Influenciado pela leitura do Candelabro Enterrado, como narra Alberto Dines, o rabino estava disposto a quebrar a prática judaica de enterrar os mortos “junto ao muro”, ou seja, fora da comunidade.
Mas a ditadura Vargas desejava o corpo do escritor. Pressionando com ameaças antissemitas de reações de rancor por parte da população, o chefe da policia local forçou o rabino a desistir e comentar na saída com sabedoria talmúdica: “não tem importância, onde um judeu está enterrado torna-se um campo santo” Enquanto isto, o Rabino Lemle da ARI, sinagoga de Yekes, os judeus de origem alemã, também chegava ao local, aceitando fazer o enterro no cemitério da cidade. Sobrepondo-se às circunstâncias, Lemle recitou o mesmo kadish que Jaime e eu fizemos ouvir entre o mar de cruzes ao lado de Stefan e Lote, por puro impulso de não deixar os que contam caírem no esquecimento de uma terça gorda de carnaval.
Petrópolis, quarta feira de cinzas de 2012.
Referências:
Alberto Dines: Morte no Paraiso, Nova Fronteira, 1981, RJ.
Donaldd Prater: Stefan Zweig, biografia, Paz e Terra, 1991.
Stefan Zweig: Ed. Koogan, 1941 e 1942, Rio de Janeiro.
Jeremias
O candelabro enterrado.
O momento supremo
Correspondance, Grasset, Paris, 2000.
Paulo Blank, membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA, é Psicanalista, doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. É pesquisador independente do pensamento judaico, autor do livro “Cabala: O mistério dos casais”. ED relumedumará 2005, entre outros estudos. Representa no Brasil a Comunidade do Judaísmo Humanista.
[ publicado em judaismohumanista.ning.com em 29/02/2012 ]