O nome de Amós Oz ressoa política. Mas, se a História dos judeus e de Israel está grudada em sua literatura, suas obras, como ele não se cansa de afirmar, são sobre famílias. Famílias infelizes.
Em “O monte do Mau Conselho” – que a editora Companhia das Letras lança no Brasil esta semana, mas publicado pela primeira vez em 1976 -, as expectativas e frustrações são refletidas sobretudo pelos olhos de um menino ingênuo e sensível, que ouve os pais falarem da Europa com melancolia e tem fantasias delirantes de expulsar os britânicos que ainda ocupam Jerusalém em 1947.
Um menino parecido com o Amós Oz dos anos 1940, que era “um pequeno fanático” e hoje é um defensor da divisão de dois Estados, para israelenses e palestinos. Mesmo reconhecendo que ninguém ficará feliz com essa solução.
Com tradução do hebraico de Paulo Geiger, “O monte do Mau Conselho” reúne três histórias, nas quais o escritor de 72 anos capta com melancolia e humor a atmosfera de suspensão de um período que viveu quando criança: o momento entre o Holocausto e a formação do Estado de Israel, em que os sonhos eram grandes e as frustrações estavam por vir.
Oz esteve no Rio para lançar o livro e fazer uma conferência, que repete nesta quarta-feira em São Paulo, no Sesc Pinheiros, às 20h, encerrando as comemorações dos 25 anos da Companhia das Letras. Ele falou ao GLOBO sobre o desapontamento que, acredita, é consequência de todo sonho – e que marca tão profundamente a história de Israel porque o país nasceu não da política ou da geografia, mas dos sonhos.
Nascido em Jerusalém e tendo lutado na Guerra dos Seis Dias (1967) e na Guerra do Yom Kippur (1973), Oz conta sobre sua própria infância e como a literatura o ajudou a ouvir outras vozes e superar o fanatismo de menino. E são as vozes das pessoas comuns – e não as dos líderes políticos, presentes em seus artigos – que o escritor busca levar à tona na literatura. Com a ambiguidade que ele diz ser inevitável num povo cuja vida cotidiana é marcada pelo conflito.
Entrevista de Amós Oz para O Globo
O senhor escreveu “O monte do Mau Conselho” logo após ter lutado em duas guerras. Como esse momento influenciou o livro?
AMÓS OZ: Nunca escrevi diretamente sobre a guerra porque é impossível traduzir em palavras a experiência do campo de batalha. No livro, queria voltar às origens, por isso escrevi sobre Jerusalém em 1947, após o Holocausto e antes de Israel se tornar uma nação. A Guerra da Independência já estava no ar.
Como em outras obras suas, este livro está centrado na família e numa mistura de nostalgia e sonhos. O que há da sua infância nele?
Meus pais estavam chocados com o Holocausto na Europa e apavorados com a ideia de que outro Holocausto pudesse acontecer em Jerusalém quando os britânicos saíssem. Achavam que os árabes viriam e nos matariam. Eles costumavam discutir isso em russo e polonês para que eu não entendesse, quando eu era criança. Mas eu podia sentir no ar a expectativa por algo maravilhoso e o medo de algo terrível.
O senhor vê o livro de forma diferente depois de tanto tempo?
Este livro ainda está vivo em Israel. Ele traduz algo em que acredito profundamente: literatura provinciana. Quanto mais provinciana ela é, mais
universal pode se tornar. É assim em Tchekhov, Faulkner, García Márquez. Vivemos numa vila, mesmo nas grandes cidades como o Rio. Vivemos entre alguns blocos de apartamentos, vamos à mercearia na esquina e à farmácia na próxima rua, conhecemos alguns vizinhos.
Em “O monte do Mau Conselho”, dou a meus leitores no Brasil uma passagem para uma Jerusalém que não existe mais, e eles vão conhecer
essa cidade melhor do que qualquer turista poderia.
A expectativa é algo constante em toda a narrativa, essa sensação de que algo está no ar.
Todos são refugiados judeus, sobreviventes. Eles são assombrados pelo passado terrível, mas têm uma esperança divina no Estado judeu.
Alguns acham que com ele a vida mudará completamente, a era dos milagres vai começar, todos serão ricos e felizes. Haverá um Estado judeu, e eles ficarão desapontados. Isso não está no livro. Mas, porque os seus sonhos são tão grandes, o leitor sensível sabe que eles estão prestes ao desapontamento.
E os sonhos continuam grandes em Israel?
Não só em Israel, mas no mundo todo, as pessoas ainda sonham grandes sonhos.
Quando se casam, mudam de cidade ou emprego. Está na essência da vida: sonhamos e nos frustramos. Todos nós, não só em Jerusalém e não só nos anos 1940. Mas outros países nasceram da História, da geografia, da política, da demografia.
Israel nasceu dos sonhos. E tudo que nasce dos sonhos está fadado à frustração. O desapontamento não está na natureza de Israel, está na natureza dos sonhos.
Os seus sonhos também eram grandes quando menino?
Eu era um pequeno fanático. Eu e meus amigos construímos um foguete com uma moto quebrada e restos de uma geladeira. Íamos lançá-lo no Palácio de Buckingham, em Londres. Pretendíamos enviar uma carta ao rei da Inglaterra: “Saia do nosso país ou vamos atingir Londres”. Os britânicos foram espertos, saíram a tempo.
A literatura o ajudou a superar o fanatismo?
Sim, porque ela desenvolve curiosidade. E pessoas curiosas não são fanáticas.
A curiosidade é um imperativo moral. Uma pessoa curiosa é melhor, porque ela pode imaginar os outros. Acredito até que curiosos são amantes melhores. Mas está muito cedo para discutir esses aspectos (risos).
Há muita nostalgia, mas também humor em todo o livro.
O humor é outro antídoto para o fanatismo. Nunca vi um fanático com senso de humor. Comédia e tragédia são duas janelas diferentes pelas podemos ver a mesma realidade. Escrevo meus livros com melancolia, humor, empatia e compaixão.
Na última história do livro, a necessidade de contar é muito evidente. O senhor sente isso como uma necessidade?
As histórias nos modificam, todos precisamos ouvi-las e contá-las desesperadamente. Quando era menino, era um pequeno contador de histórias. Eu não era bom na escola, não era bom em esportes, não era bonito. Então inventava histórias para impressionar as garotas. Talvez seja o que estou fazendo agora, 60 anos depois (risos).
Que autores foram importantes para o senhor?
Lia histórias de outros países, traduzidas, li sobre os índios nativos nos EUA, sobre a vida das crianças na China.
Com uns 13 anos, comecei a ler os grandes escritores russos do século XIX: Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov. Eles me influenciaram muito, especialmente Tchekhov, que me ensinou como apagar a linha entre comédia e tragédia. Como o mesmo episódio pode ser desolador e engraçado ao mesmo tempo.
Como o senhor vê a cena literária hoje em Israel?
Quase toda tendência da cena literária mundial se reflete hoje em Israel. Mas ela continua sendo a literatura dos imigrantes e dos filhos e mesmo netos de imigrantes.
[ Publicado em 09|11|2011 no Globo.com ]