Cristãos em meio à Primavera Árabe

Cristãos participaram ativamente das manifestações na Praça Tahrir

Cristãos participaram ativamente das manifestações na Praça Tahrir

O medo é um sentimento expresso com frequência hoje em dia pelos cristãos árabes, uma triste ladainha para uma comunidade antiga, que durante muito tempo foi uma força política e cultural no mundo árabe.

Milhões de cristãos – distribuídos principalmente por Egito, Líbano, Síria, Jordânia, Iraque e territórios palestinos – viraram pouco mais do que meros espectadores de fatos que estão remodelando um lugar que essa comunidade ajudou a criar, e às vezes são vítimas da violência desencadeada por tais fatos. Em meio a tantas narrativas que as revoltas árabes representam – de dignidade, democracia, direitos e justiça social-, muitos cristãos se limitam a uma versão mais sombria: a de que seu tempo pode estar se esgotando.

“Não sou um cristão fanático”, me disse um amigo. “Não vou à igreja. Respeito todas as religiões. Mas, pelo que vejo agora, em 30 anos não restarão mais cristãos aqui.”

Os temores quanto ao destino dos cristãos do Oriente Médio costumam entrar de forma desconfortável no conflito entre o Ocidente e o mundo islâmico. Mas focar nesse conflito, e nos fanatismos que o cercam, é ignorar as nuances daquilo que os cristãos representam para esta região, e as lições que a sua história em outras épocas de tumulto podem oferecer.

“Há uma parte do islã em cada árabe cristão”, me disse certa vez em Beirute o jornalista, diplomata e intelectual Ghassan Tueni.

A sua sugestão para a sobrevivência dos cristãos é simples: que eles e os muçulmanos imaginem uma identidade que possam de alguma maneira partilhar. Essa ideia já foi debatida mais de cem anos atrás. Quando a língua árabe passou por um renascimento, no século 19, os cristãos tiveram um papel decisivo.

O idioma sacudiu o seu torpor e se tornou um meio de expressão moderna, e o eixo de uma identidade coletiva.

Algumas das figuras mais notáveis daquele renascimento foram homens como Butros al Bustani e Nasif al Yaziji, escritores e acadêmicos cristãos daquilo que hoje é o Líbano, e que vivenciaram uma carnificina religiosa. O idioma árabe, sugeriu Al Bustani, poderia permitir a superação das diferenças. Essa terra, afirmou, “não deve se tornar uma Babel de línguas, pois já é uma Babel de religiões”.

Essa foi uma ideia que já teve muitas encarnações, mas que, em sua essência, se baseava numa cidadania – seja síria, egípcia, árabe ou outra – independente de credos.

Nas décadas posteriores, surgiram ideologias laicas, frequentemente comandadas por cristãos, cujo objetivo era em parte encontrar um lugar para os cristãos e eventualmente para os judeus numa região onde eles estavam fadados a serem minorias. Mas, agora, o ideal laico subjacente a tais ideologias – seja a unidade árabe, o comunismo ou o nacionalismo pan-sírio – começou a se esmaecer.

Egito - Cristãos precisam de direitos humanos!

Egito - Cristãos precisam de direitos humanos!

O mundo árabe é hoje bem mais conservador do que há uma geração. As vozes laicas parecem periféricas em relação ao discurso religioso. Raro é o político árabe atual que apoie especificamente o secularismo; em árabe, essa palavra é praticamente sinônimo de ateísmo. Numa viagem pelo norte da África – que foi triunfal exceto por isso -, o premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, atraiu críticas de todas as correntes islâmicas ao manifestar seu aval a uma versão bastante atenuada do secularismo, a saber, a tese de que o Estado deve tratar todas as religiões de forma igualitária.

Em toda a região, o ambiente parece ter se tornado mais inóspito. Na sangrenta reação militar a um protesto de cristãos em outubro no Cairo, a TV egípcia se referia aos coptas como se fossem agitadores estrangeiros, convocando os “cidadãos honrados” a defenderem o Exército.

No ano passado, um dia depois de um atentado contra a igreja de Nossa Senhora da Salvação, em Bagdá, no que foi uma espécie de “pogrom” em versão iraquiana, Bassam Sami, 21, me disse: “Eles vieram para matar, matar, matar”. Dentro da igreja, o sangue manchava as paredes, e pedaços de carne humana continuavam entre os bancos. No lado de fora, muitos lamentavam o que o massacre de 51 fiéis e dois padres significaria para um país onde outrora se misturavam crenças, costumes e tradições.

Os judeus do Iraque foram embora há bastante tempo, muitos deles intimidados por um governo xenófobo. Os cristãos do Iraque minguaram – de 1,4 milhão, mais de metade foi embora, refletindo o que ocorre em todo o mundo árabe. “Perdemos parte da nossa alma agora”, disse o cristão Rudy Khalid, 16. Ele balançou a cabeça, sugerindo algo inevitável. “Ninguém tem nenhuma resposta para nós.”

Os cristãos, me disse um amigo, foram marginalizados no mundo árabe por não terem líderes capazes de articular uma identidade que fosse além da religião e criasse uma comunidade mais ampla de cristãos e muçulmanos. A tendência das minorias no Egito, no Iraque, no Líbano e em outros lugares, qualquer que seja a sua inclinação ideológica, é a de se aglutinarem em partidos que fazem reivindicações simplesmente como minorias. Eles persistiram na menor das identidades, organizando-se pela fé, e não pela cidadania.

“É preciso encontrar a identidade em outro lugar”, me disse esse amigo.

Foi a mesma questão com a qual Al Bustani se deparou há 150 anos. Como um povo que compartilha terra, costumes, história e língua encontra um fim comum?

As sociedades podem simplesmente ter mudado demais para que se imagine uma reconciliação entre fé e secularismo. Há muito poucas vozes dentro das minorias oferecendo tal visão, e muito poucos líderes para articulá-la.

Mas, há tantos anos, Al Bustani teve uma ideia que era tão simples quanto elegante: cidadania.

 

Anthony Shadid é correspondente do New York Times em Beirute, Líbano

[ Publicado no caderno do ‘New York Times’ da Folha de São Paulo em 28/11/2011 ]

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