Judeu sem religião

Yoram Kaniuk, 81, publicou mais de 20 livros em sua premiada carreira, mas nunca ocupou tantas manchetes. O motivo foi a ação para apagar o judaísmo de sua carteira de identidade e ser registrado como “sem religião”. Ele espera que a inédita vitória judicial seja um passo para acabar com o monopólio religioso em Israel.

Escritor israelense que ganhou na Justiça o direito de ter carteira de identidade sem registro de crença ataca a não separação entre religião e Estado e o uso do judaísmo por ‘fascistas’

Tomei a decisão por que não queria ser minoria em minha própria família [risos]. Sou casado há 50 anos com uma americana não judia. Minhas filhas nasceram aqui, serviram o Exército, são cidadãs israelenses, mas não são consideradas judias. Ganhei um neto e ele foi considerado “sem religião”, por ser filho de não judia. Decidi que quero ser como o meu neto.

Cansei do controle da religião neste país. É um ciclo perigoso: os religiosos se fortalecem politicamente e impõem mais e mais a religião sobre nós. Até o calendário e o horário de verão são impostos pelos religiosos. Há um controle inaceitável sobre a vida das pessoas. Querem transformar Israel num Estado religioso.

Lutei pela criação deste país. O objetivo não era um Estado judeu. [David] Ben Gurion [fundador de Israel] não sonhou com isso, ele não acreditava em religião. O que ele queria era um lar nacional para o povo judeu.

Decidi que quero ter a nacionalidade judia, não a religião. Mas Israel não reconhece isso. Bibi [premiê de Israel, Binyamin Netanyahu] fala o tempo todo que os palestinos devem reconhecer o caráter nacional judeu de Israel, mas o próprio Estado não reconhece a nacionalidade judia sem a religião.

A decisão judicial é histórica. O juiz abriu uma brecha que, espero, levará à separação entre Estado e religião. Ainda não é uma revolução, mas pode ser o começo.

Esse veredicto pode começar a quebrar o monopólio político dos religiosos. Se houver separação entre Estado e religião, eles não terão mais o mesmo poder político. Hoje, nosso modelo lembra a Idade Média. Quando a religião tem o controle, a vítima é sempre a liberdade.

Minha mulher e minhas filhas nunca sofreram por não serem judias. Vivemos em Tel Aviv, uma cidade muito liberal. Mas é humilhante, porque não são como os outros.

Todas as reações que recebi até agora foram muito boas. Milhares de pessoas esperam por isso há anos, e acho que muitas seguirão o meu exemplo. Ninguém me atacou ainda, mas espero que isso aconteça [risos]. Sou um lutador. Israel tem de decidir: pode ser país democrático ou país judeu religioso. Não pode ser os dois. Religião é dogma, não aceita a democracia.

Se em um ou dois anos não acontecer uma mudança, este país está perdido. Se tornará um Estado religioso e sem mão de obra, sem soldados para defendê-lo nem gente capacitada para desenvolver alta tecnologia. Sustentamos centenas de milhares de parasitas. Hoje quase 50% dos alunos de classes primárias são ortodoxos, e a maioria não se integrará ao Estado.

Além de tudo, a falta de separação entre Estado e religião permite que o fascismo se espalhe. O incêndio criminoso da mesquita no norte de Israel é só um exemplo.

Há fascistas nos assentamentos que fazem o que querem e o governo não faz nada. Atacam árabes, arrancam suas oliveiras, vandalizam mesquitas e o governo faz vista grossa, pois teme perder seu apoio político.

Chegamos a um beco sem saída. Por isso o veredicto que me foi concedido é tão importante: cria uma brecha histórica para mudarmos isso, para acabarmos com a legitimidade dos fascistas que usam a religião.

Se Israel for mais democrático e menos religioso, o Estado poderá agir contra esses hooligans.

 

Vitória de escritor é vista como um passo histórico

Um passo histórico na luta pela separação entre Estado e religião em Israel.

Assim está sendo considerada por organizações de direitos civis do país a inédita decisão de uma corte de Tel Aviv de conceder ao escritor Yoram Kaniuk o direito de ser registrado como “sem religião”, no lugar de judeu.

O veredicto criou enorme polêmica e reacendeu a eterna discussão em torno de um dos principais dilemas do Estado de Israel desde sua fundação -como ser ao mesmo tempo judeu e democrático.

Para os entusiastas do veredicto favorável a Kaniuk, a resposta é simples: democracia significa, por definição, separação total entre Estado e religião. Para os religiosos, é preciso preservar a influência dos tribunais religiosos.

O que mais incomoda os laicos é o monopólio religioso sobre temas civis, herança do sistema vigente durante o domínio do império otomano na antiga Palestina e também fruto de barganha política com os poderosos partidos judeus ortodoxos.

O exemplo mais gritante é a ausência de casamentos civis no país. Atualmente, judeus israelenses só podem se casar sob os auspícios das autoridades religiosas.

Uma lei aprovada no ano passado, considerada um importante marco jurídico, reconheceu as uniões civis como casamento para todos os fins. Mas a permissão só é dada a pessoas registradas como “sem religião”.
Segundo a organização Nova Família, que luta contra o monopólio religioso, cerca de 3.000 israelenses viajam todo ano ao Chipre para casar-se no civil.

[ por Marcelo Nínio – publicado na Folha de São Paulo em 06|10|2011 ]

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