É impossível não se sensibilizar com o júbilo em Israel e na Palestina pelo cumprimento da primeira etapa do acordo para a libertação de um soldado israelense, Gilad Shalit, sequestrado pelo Hamas há cinco anos na fronteira com Gaza, em troca de 1.027 dos cerca de 6 mil ativistas palestinos que cumprem penas em Israel. Na terça-feira, foram soltos 477, escolhidos pelo Hamas, com vetos israelenses. Outros 550 sairão em dois meses. Em todo o mundo, chefes de Estado saudaram o acordo com declarações apropriadas à ocasião. “Há lugar para a esperança mesmo nos momentos mais difíceis”, entoou, por exemplo, o presidente da França, Nicolas Sarkozy. “Gostaria de acreditar que isso permitirá a retomada das negociações de paz.” Mas não há por que acreditar.
Em meio ao entusiasmo popular, líderes do Hamas reiteraram a sua recusa a aceitar a existência de Israel e pregaram a captura de outros soldados para reaver militantes condenados pelo inimigo. Em Israel, onde 79% da população se disse favorável ao acordo, a aparição de um Shalit pálido e emaciado reavivou o ódio aos seus captores. A palavra paz não circulou. A libertação do soldado, na realidade, resultou de cálculos de conveniência que pressupõem, ou se destinam, a manter o impasse israelense-palestino, apesar da nova conjuntura regional. O Hamas, que jamais se dispusera a negociar a libertação de Shalit – nem sequer permitiu que a Cruz Vermelha tivesse acesso a ele alguma vez -, mudou de ideia por duas razões fundamentais.
Uma, o imperativo de desviar os holofotes que deram evidência mundial à figura do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, desde que ele assomou à tribuna da ONU, no mês passado, para pedir o reconhecimento e a admissão do Estado que busca criar por meios pacíficos dentro das fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Para os radicais que controlam Gaza e o antagonizam, isso é anátema porque legitima a “entidade sionista”. A segunda razão para o Hamas mudar de ideia é a perspectiva de ter de transferir da Síria o seu reduto no mundo árabe, caso caia o regime de Bashar Assad que abriga a organização. O seu destino natural seria o novo Egito que tomou distância de Israel depois de derrubada a ditadura de Hosni Mubarak.
Era a hora de mostrar respeito pelos militares egípcios, convidando-os a patrocinar as tratativas com Israel que o Hamas até então se recusava a endossar. O que chama a atenção nesse jogo é que o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, também tinha motivos para ofuscar Abbas e valorizar o papel do Egito. No que diz respeito a Abbas, porque a iniciativa do líder palestino na ONU aumentou as pressões sobre Israel para cessar a expansão das colônias nos territórios ocupados – o obstáculo por excelência para o reinício das conversações de paz. Quanto ao Egito, o reconhecimento de que continua a ser a principal potência política árabe era a coisa certa a fazer para fortalecer os generais do Cairo diante da novamente desafiadora Irmandade Muçulmana, que defende a “revisão” do tratado de paz de 1979 com Israel.
Disso, Netanyahu não fez segredo. Ao anunciar as negociações em curso para a troca de Shalit por intermédio do alto comando egípcio, secundado por diplomatas alemães, declarou que as novas circunstâncias regionais criaram uma oportunidade que talvez não se repetisse para o resgate do soldado – um imperativo moral para os israelenses. E deixou claro que os 550 presos a serem libertados em breve, escolhidos por Israel, representam “um gesto para o Egito”. Além disso, com a volta de Shalit agora, Netanyahu espera neutralizar os recentes protestos – os maiores da história do país – contra a política econômica do seu governo.
O Hamas, Netanyahu e o Egito são, portanto, os óbvios beneficiários do fato histórico desta semana. Abbas, o grande prejudicado, como os inimigos da paz queriam. Ontem, o New York Times se perguntava em editorial por que o primeiro-ministro israelense é capaz de negociar com quem quer acabar com Israel, mas não negocia a paz com quem aceita o seu país e o ajuda a reprimir os extremistas na Cisjordânia.
A resposta é que isso ele não quer.
[ Editorial d’O Estado de S.Paulo em 20/10/2011 ]