Israel como Estado judeu – esta é a legitimidade internacional que recebemos em 1947 do Plano de Partilha da ONU. Este é o princípio subjascente da Declaração de Independência, Lei do Retorno, Lei da Cidadania e uma longa relação de leis, regulamentos e costumes. Todos governos israelenses – de esquerda ou direita – seguiram-no e a realidade social de Israel é dele imbuída. Após algumas horas no país, um visitante de Marte não teria dificuldade de perceber que aterrissou num Estado judeu.
Qual então é a lógica para o projeto de lei recentemente apresentado com o nome de ‘Lei Básica sobre Israel como Estado Nacional do Povo Judeu’, capitaneado pelo deputado Avi Dichter (Kadima)? Os propositores da lei dizem na sua exposição de motivos que a lei é “necessária ainda mais agora quando existem aqueles que querem abolir o direito do povo judeu a um lar nacional em sua terra e o reconheimento de Israel como Estado Nacional do povo judeu”.
É verdade que há tais grupos, especialmente às margens da extrema-esquerda acadêmica (muitos dos quais, por acaso, são judeus ou antigos israelenses). Mas nenhum país democrático e nenhum partido politico em qualquer país democrático questiona a legitimidade de Israel. Mas alguns direitistas israelenses preferem ver quaisquer críticas às políticas de Israel como ataques à própria existência de Israel.
A direita israelense prefere fazer vistas grossas para o o que realmente ameaça o caráter judeu de Israel: nosso prolongado controle de milhões de palestinos nos territórios ocupados. A maior parte dos propositores da lei se opõem ao estabelecimento de um Estado Palestino ao lado de Israel, enquanto outros se uniram à iniciativa, provavelmente por um enganoso populismo (ou podem não ter lido o texto com atenção).
É claro que se o projeto for aprovado como uma Lei Básica, não mudará muito na realidade de Israel enquanto Estado nacional judeu. Mas, se perguntarem qual a necessidade de tal lei, responderão que, quem sabe, uma dia os árabes poderão se tornar maioria em Israel e, então, poderão procurar mudar o status do país de uma maneira ostensivamente democrática. Daí a necessidade de salvaguardar o caráter de Israel como um Estado Nacional judeu, mediante uma Lei Básica, que só poderia ser modificada por uma maioria absoluta.
Isto é um absurdo por duas razões: os árabes só poderão se tornar maioria em Israel se o país não deixar os territórios. E é preciso ser muito ingênuo para acreditar que, se algum dia os árabes se tornarem maioria, uma lei evitaria que eles tomassem o controle do país.
A lei tem outras conseqüências, todas danosas. Como não existe um consenso judaico sobre o que significa um “Estado judeu”, a lei apenas aumentaria os desacordos entre a própria população judaica. Afinal, esta divergência foi uma das grandes razões para até hoje não ter sido acordada uma Constituição.
Em segundo lugar, e mais ameaçador, a lei apenas aprofundaria o afastamento da minoria árabe e exacerbaria as complexas relações entre os cidadãos judeus e árabes.
Alguns exemplos:
– O parágrafo 4 abole o status do árabe como segunda língua oficial de Israel;
– O parágrafo 10 eleva o calendário lunar hebraico ao status de “calendário oficial do país”;
– O parágrafo 13 sustenta que a “Lei Judaica servirá como fonte de inspiração para a legislação”, abrindo a porta para uma legislação problemática como nunca [ NT- a supremacia das leis religiosas (halachá), ameaçaria o caráter secular do Estado].
– Conforme o parágrafo 9b, “o Estado poderá autorizar uma comunidade, incluindo uma nação ou religião, a se manter separada de outras comunidades”, uma clara tentativa de se sobrepor a casos como o de Ka’adan, onde a Justiça proibiu a Autoridade de Terras de Israel (ILA) de discriminar não-judeus. E a linguagem ambígua do projeto de lei torna possível não se autorizar comunidades árabes e muçulmanas separadas.
Obviamente, alguns dos patrocinadores da lei não acompanham a imprensa internacional e ignoram claramente o quanto ela iria dar argumentos a qualquer um que acuse Israel de ser um país racista. Por outro lado, podem pensar que o apoio à lei poderia ajudá-los nas primárias de seus partidos.
Se esses deputados realmente se preocupam com o futuro de Israel enquanto Estado nacional judeu, deverão se concentrar na necessidade de tomar decisões políticas difíceis vis-a-vis os palestinos e não fazer propostas desnecessárias que apenas prejudicam Israel, o sionismo e o povo judeu.
Shlomo Avineri é professor de Ciências Políticas da Universidade Hebraica de Jerusalém. Produziu vasta bibliografia em temas como marxismo, sionismo, queda da URSS e Oriente Médio. Seu título acadêmico mais recente é o de PhD Honoris Causa do Instituto Weizmann, em 2010.
[ Publicado no Haaretz em 24/10/2011 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]